26 | Quase Doce
CLARICE
Falei com mamãe sobre Genevieve e ela concordou em fazer uma experiência. Eu não tive dúvidas de que minha nova amiga corresponderia às expectativas. Dito e feito. Mamãe se apaixonou não só pelo trabalho dela, mas também pela sua pessoa incrível e agora ela é oficialmente funcionária permanente na loja.
A única desvantagem de tê-la trabalhando para minha mãe é que ela não tem mais tanto tempo para frequentar o centro e eu tive que achar outro parceiro. Não posso reclamar, pois encontrei uma pessoa muito legal, mas não temos a mesma conexão que eu e Genevieve adquirimos logo de cara. Ela é quem continua me ajudando com o meu projeto.
Mostrei a ela o meu poeminha e pedi que fosse sincera, afinal, a professora já havia anunciado uma data. Ainda estava um pouco distante, mas eu não queria deixar nada para última hora. Genevieve tinha me dito que os versos eram bons, mas curtos demais para uma apresentação e, depois de me ajudar com o bazar na igreja, estamos aqui no meu quintal, comendo hambúrgueres preparados pela minha mãe, sentadas às escadas, pensando sobre o que eu deveria fazer. Uma faixa de luz reluz sobre um lado do rosto de Genevieve enquanto nos mantemos meio no sol e meio na sombra.
- Já sei! - Genevieve estala o dedo e sinaliza uma sugestão que levo um tempo para entender. - Eu disse compor - explica quando não me manifesto.
Para me ajudar melhor com os sinais, Genevieve tem apenas feito gestos e expressões, movendo os lábios sem emitir sons. Na maior parte do tempo, tenho me saído muito bem, mas ainda há sinais com os quais não estou habituada.
- Batom, eu não sei compor!
- Crie uma música. Você tem criatividade para isso - ela rebate, franzindo o lábio.
Ela está superestimando meus talentos.
- Não sou boa em criar letras de música - digo e gesticulo.
- Tenta, Cachos! - A testa dela se enruga quando ela une as sobrancelhas sem muita paciência.
Ela tem razão. Tentar qualquer coisa é melhor que não tentar nada, mas se vamos fazer isso, preciso anotar nossas ideias ou irei esquecê-las. Peço que ela espere e me levanto de um pulo. Aproveito para levar nossos pratos vazios para a cozinha e depois pego caneta e papel na mesinha da sala.
- Que tipo de música? - pergunto ao retomar meu lugar ao seu lado.
- Rap! - Ela parece empolgada. Movimenta as mãos para cima e para baixo e cruza os braços como os rappers geralmente fazem.
Quando me contou que era oralizada, eu não questionei, mas depois fiquei pensando sobre sua surdez. Eu não precisei perguntar, pois ela mesma se sentiu segura para me contar sua história quando nos aproximamos mais. Ela não nasceu surda, na verdade, os sons foram se perdendo conforme ela foi crescendo. Então Genevieve os conhecia, já tinha ouvido um pássaro cantar, o vento soprar, as canções nas vozes de seus intérpretes. Eu passei a admirá-la ainda mais pela sua força, porque se já deve ser difícil nascer ou perder a audição muito nova, para quem se lembra de como são os sons e os vê ir embora gradualmente deve ser muito mais difícil. Só que Genevieve é do tipo que está sempre sorrindo e levando tudo no maior astral. Gosto do jeito como ela não se abala e tem tanta fé. Ela tem sido uma inspiração para mim.
- Você é maluca - digo a ela.
Genevieve junta as mãos e as leva ao queixo fazendo uma carinha de inocente.
- Sou um anjo! - Ela se endireita e decreta, sinalizando: - Vamos começar.
Penso em alguma coisa, mas eu não sei quase nada sobre Rap. Não é o tipo de música que eu ouço com frequência, porém estou disposta a tentar ou pelo menos a me divertir enquanto componho.
- Precisamos de um tema.
Bato a caneta no queixo, pensando sobre o que deveria falar. Passamos um tempo apenas refletindo e eu gemo com a frustração, porque sinto que existe uma cancela na minha cabeça impedindo qualquer ideia minha de passar.
- Estou com bloqueio. Como isso pode ser tão difícil?! - Simulo um choro. - São apenas palavras! Não deveria dar tanto trabalho!
- Calma, Cachos. - Genevieve pega o bloco do meu colo e a caneta das minhas mãos. - Vamos fazer um mapa das ideias!
Um mapa das ideias pode ajudar e eu concordo.
- Pense em coisas que você gosta. Pode ser qualquer coisa.
- Gosto de ler. E gosto de milk-shakes. Com pedacinhos de cookies...
Começo a fazer uma lista bastante aleatória incluindo o que gosto de fazer, comer, vestir e dessa lista vamos achando coisas que podemos associar. É realmente muito divertido e quando nos damos conta, temos duas páginas e algumas frases vão começando a surgir. Anotamos todas até formarmos um rap que, sinceramente, é uma das coisas mais ridículas que eu já vi.
- Não tá tão ruim. - Mas o esforço que ela faz para conter a risada denuncia que ela está mentindo e muito mal.
- Tá brincando? É ridículo! Eu não vou traduzir isso aí - enfatizo, negando fortemente com a cabeça e fazendo uma careta.
- O que você não vai traduzir?
Eu me assusto ao ouvir a voz de Samuel. Eu e Genevieve nos viramos para ele, que dá risada e se aproxima, sentando-se entre a lacuna ao lado da prima. Eu me afasto um pouco para que ela e ele tenham mais espaço e não fiquem tão comprimidos.
- Como você entrou? - Minha sobrancelha alcança o topo da minha testa.
- Sua mãe me deixou entrar e me disse que vocês estavam aqui. Eu não invadi nada - ele garanta brincalhão. - Vim buscar essa aí. - Samuel aponta para Genevieve com a cabeça. - A gente vai encontrar nossos pais no shopping. - Ele então se inclina sobre a prima, olhando para o caderno em seu colo. - O que é isso?
- É o rap da, Cachos.
- Rap, é? - ele questiona, olhando para ela.
Observo como Samuel é cuidadoso com Genevieve, sempre se preocupando que ela o veja bem quando ele está falando, coisa que às vezes eu mesma acabo esquecendo. Ela me contou que desde que perceberam que ela estava tendo uma perda auditiva bilateral, ele foi seu melhor amigo e a ajudou, dando não só apoio emocional, mas se propôs a fazer as aulas de LIBRAS com ela. Eu sempre pensei que Samuel era só um rosto bonito e uma personalidade que não sabia falar sério, mas eu estava enganada. Na verdade, ele é como uma caixinha. Você as vê ali por fora e elas parecem apenas aquilo que o exterior exibe, e você acha que se abri-las elas serão ocas por dentro, mas quando você levanta a tampa, se surpreende ao perceber que há profundidade e beleza dentro delas.
- Ah, eu quero ver isso. - Ele abre um grande sorriso e há um brilho divertido em seu olhar. - Canta.
- Canta! - ajuda Genevieve.
Agora ambos estão formando um coro de "canta".
- Me dá aqui. - Pego o papel do colo de Genevieve e o transfiro para o meu.
Ambos comemoram e eu reviro os olhos. Começo a gesticular os versos, mas Samuel me interrompe.
- Nananinanão. - Ele se inclina sobre a prima e cutuca meu joelho, chacoalhando o dedo indicador. - É pra gesticular e cantar.
- Samuel, não! - digo categoricamente.
- Eu posso te perturbar a tarde toda.
- Ele pode mesmo - concorda Genevieve. - E tenho que dizer que também sou muito boa nisso.
- Vocês são horríveis. - Tento fazer cara feia para eles.
- Deixa a gente ser sua cobaia. - Samuel se estica, ficando meio deitado de lado, com um cotovelo sobre a escada superior, esperando.
Chacoalho os dedos para me aquecer como se estivesse aquecendo a garganta antes de um grande show, pigarreio e começo:
Eu jogo o jogo do contente
Mas gêmeos não é meu ascendente
Tomo uma taça de Milk-Shake
E logo sinto dor de dente
Porque a vida não é justa, irmão
Mas eu não faço cara de quem chupou limão
Limão, limão, limão
Faço uma limonada
E um castelo com as "pedrada"
Uso um vestido florido
E um tênis que não deixa meu pé dolorido
Eu jogo o jogo do contente
E não passo nos meus cachos o pente
O pente, o pente...
Não saio sem o casaco no frio
Que é pra não ficar doente
Samuel está segurando a barriga, o pescoço inclinado para trás, enquanto Genevieve se esforça para ficar séria, mas sem conseguir se segurar quando percebe como Samuel está morrendo de rir.
- Ei, parem com isso! - eu os repreendo e arremesso minha caneta em Samuel, que com seu bom reflexo consegue agarrá-la.
- Desculpa - Samuel pede, enxugando uma lágrima -, é que parece mais um texto de stand up.
- Não é uma ideia incrível para apresentação no Centro, primo? - Genevieve pergunta e, meu Deus, acho que ela está falando sério.
- Ô se é! - ele concorda ironicamente.
Estamos todos rindo muito até que mal conseguimos respirar. Eu sopro o ar tentando me controlar, mas quando volto a olhar para Samuel, ele já não está mais sorrindo. Eu e Genevieve nos viramos para descobrir o que tirou o sorriso do seu rosto e me deparo com Victor. Ele está parado no limiar da porta, um ombro encostado à parede, os braços cruzados, e mesmo que esteja usando um boné que faz sombra sobre seus olhos, dá para notar sua expressão estranha. Ninguém fala nada, pois o ar fica carregado de repente e a sensação é de ter sido pega fazendo algo errado. Alguma coisa afunda no meio do meu estômago, mas me recupero do mal-estar e me levanto para abraçá-lo.
- Que surpresa boa! - Ele retribui o abraço, mas sem nenhum calor, é mais como um gesto mecânico. Eu sorrio, só que ele continua quieto e sem expressão. - Aquela é a Genevieve. Eu te falei dela.
Victor acena sério com a cabeça e Genevieve devolve o gesto timidamente.
- A gente já tava de saída - Samuel pigarreia ao anunciar, levantando-se. Ele estende a mão para a prima para ajudá-la.
Quando se aproximam, Victor dá um passo para o lado para que eles possam passar. Samuel e ele se encaram, mas não dirigem uma única palavra ao outro. Sei que não se gostam, mas parece que a animosidade entre eles ganhou uma nova escala. Parecem dois pitbulls se rondando, quase posso ouvi-los rosnar um para o outro.
- Eu já volto - aviso para Victor.
Acompanho Samuel e Genevieve até o portão e quando volto, vejo que Victor está sentado na cadeira, mexendo no boné que agora está segurando. Seu olhar reto é reflexivo e estou tentando entender o que fiz de errado para deixá-lo tão enciumado com meu comportamento e minha cabeça fervilha, procurando formas de apaziguar seus sentimentos.
- Você não me disse que viria hoje, eu teria me arrumado melhor.
Os olhos dele passeiam sobre mim de cima a baixo. Estou vestindo uma calça jeans, camiseta e uma blusa de frio fina de botões.
- Para mim você parece bastante arrumada - afirma inexpressivo e sem emoção na voz.
Com um bolo na garganta, eu me aproximo dele e me sento ao seu lado. Victor fica mudo e eu fico em silêncio também, as mãos juntas sobre o colo, girando a aliança em meu dedo.
- Você quer hambúrguer? Eu posso fazer alguns para você - pergunto, procurando ser atenciosa.
- Não, obrigado.
Assinto. Um vento frio atinge meu corpo e eu me encolho. Observo Victor, seus olhos parecem translúcidos à luz do sol que os reflete. Seus cabelos loiros balançam com a brisa que volta a nos tocar e algumas mechas se espalham pela sua testa quando ela se vai. Quero estender a mão e ajeitá-las, mas sou impelida por um campo de força invisível ao seu redor, que me diz que serei rejeitada se tentar me aproximar demais.
- Eu vou encontrar a Bárbara hoje e ter um dia de garotas - conto, tentando puxar assunto.
Mas Victor não faz nenhuma pergunta ou comentário. Fecha ainda mais a expressão e balança a cabeça.
- Tá.
Ele se levanta como se eu o tivesse expulsado, coloca o boné de volta na cabeça e atravessa à minha frente, empurrando a porta e sumindo. Eu entendo por que ele está agindo assim e por que ficou tão de mau humor, mas ele sabe que Samuel é primo da Genevieve e que não temos nada. Eu não tenho culpa de eles serem parentes!
Vou atrás de Victor, pois não está certo ele ir embora sem a gente conversar.
- Ei! - eu chamo e ele para, mas percebo que não foi por minha causa.
- Já tá indo pra casa? - pergunta minha mãe a Victor, recém-vinda da cozinha, o pano de prato sobre o ombro, alheia ao clima ruim que está pairando entre nós dois.
- A Clarice tem compromisso - ele sorri e diz educadamente, acenando com a cabeça.
- Ah, é verdade, vai sair com a Bárbara! - ela se lembra. - Volte amanhã, Vitinho. Farei um belo almoço.
Minha mãe não espera pela resposta dele. Vai para a cozinha, dizendo que precisa mexer a carne que está refogando. Ao vê-la desaparecer no cômodo, Victor abre a porta e sai e vou ao encontro dele lá fora. Puxo seu braço.
- O que foi? - pergunto meio magoada e meio irritada.
- O que foi? - Ele engole como se também houvesse nós em sua garganta. - Você aqui com o Samuel de novo, porra! - Victor abre os braços e faz um gesto de negação com a cabeça.
- Por que isso? Você sabe que ele é primo da Genevieve! - Solto um suspiro angustiado. - Que droga, Victor!
- Que droga - ele repete com a voz fraca e sorri com desgosto. - Deixa pra lá. Você tem que sair, né? Vai lá curtir com a sua amiga.
- Assim? Você vai embora assim? - Não acredito que ele vai agir desse jeito comigo mais uma vez. - Então vai e não volta mais!
Victor respira fundo.
- Não é o que você tá supondo - ele diz. - Você não faz ideia da merda que tá minha cabeça.
- Então fala - exijo.
- Eu menti pra você - confessa.
- Me explica.
- Sobre aquele dia no restaurante quando fui encontrar o Ricardo. Aquilo mexeu comigo. - Vejo seu pomo de adão subir e descer como se houvesse uma pedra fechando sua garganta. - Os pesadelos voltaram, só que mais fortes, mais claros... Eu a vejo sangrando, eu escuto os estilhaços, é como se toda noite eu revivesse a maldita cena do acidente e morresse um pouco mais a cada dia. É um inferno esse looping infinito... Eu vou enlouquecer. - Ele se agacha e senta no chão, com as costas apoiadas à parede e segura as laterais da cabeça.
- Meu Deus, Victor. - Me abaixo e fico ao lado dele.
Ele une os dedos como em uma oração e se curva, descansado a testa ali.
- Saí da equipe. O treinador me tirou da liderança e sabe quem é o novo líder? - Victor solta um riso sem emoção e olha para mim.
Não pode ser. Ele não pode estar falando do Samuel. Mas está. Claro que está. E agora entendo ainda melhor porque para ele é tão difícil tolerar o garoto.
- O quê? Como é que você não me fala nada?
- Eu não queria te sobrecarregar, mas, Clarice - ele encosta à cabeça à parede aparecendo tão vulnerável, inquieto e infeliz -, quando vi ele aqui te fazendo rir daquele jeito, eu pensei: "é isso que ela quer e é tudo que você não pode dar a ela, porque você é a droga de um garoto quebrado". Eu sou um conjunto de dramas e problemas que você não tem que carregar. Eu não consigo te fazer feliz como você merece. - Ele estende o braço e seus dedos deslizam pelos meus cabelos. - Vai encontrar a Babi e relaxar um pouco - sua voz sai mansa e ele se esforça para abrir um sorriso que não alcança seus olhos. - Eu vou pra casa.
Reparando melhor, seu rosto parece cansado. Eu me sinto péssima por não ter percebido que ele está sofrendo tanto. Os pesadelos, perder o time pelo qual ele batalhou tanto. Foi a natação que o trouxe até mim e ele não consegue entender que ele é o meu sonho que se tornou real e que nenhum outro pode superar isso, não importa quantas vezes eu repita.
Faço com que Victor deite a cabeça em meu peito. Ele descansa em meu coração e eu tiro seu boné para fazer carinho em seus cabelos. Queria tanto protegê-lo dos sonhos ruins, das lembranças dolorosas do seu passado e da sua insegurança. Victor tem tudo que o dinheiro pode comprar, mas é a prova viva de que um trauma tratado com a falta de cuidado e amor te marcam para sempre e são como uma ferida aberta e não cicatrizada.
Deus, nos ajude, por favor, eu peço dentro de mim numa oração silenciosa. Me ajude a reparar essas feridas. Me ajude a deixá-lo inteiro.
- Me desculpa - Victor murmura. - Eu sou tão babaca. Não sei o que você vê em mim.
- Ei, menino riquinho - ele levanta os olhos para mim e eu afasto o cabelo da sua testa -, você não é um problema. Eu amo quando estamos juntos e não precisa pensar o contrário, porque ninguém me faz mais feliz do que você. Eu não sei mais o que fazer para provar que você é o único e não tem espaço para mais ninguém. Aceita de uma vez que eu te amo.
Ele se endireita, pega minha mão e a beija.
- Eu te amo tanto, Clarice, tanto.
Sorrio para ele e me inclinou para beijá-lo.
- Quer saber? Hoje o dia vai ser nosso. Vou te preparar aquele hambúrguer e você vai comer! A gente vai assistir a um filme juntinhos.
Seus olhos se iluminam com a minha proposta, mas ele hesita.
- Não quero estragar seu encontro com a Babi.
Ele ainda se importa e o fato de não ser egoísta só me faz querer ainda mais apreciar sua companhia.
- Vou ligar para ela e desmarcar. Ela vai entender.
- Tem certeza? -Eu meneio a cabeça. - Obrigado por ser a melhor namorada que um cara poderia ter.
*
Bárbara está de pé no corredor que leva à biblioteca, com as mãos juntas, impulsionando os calcanhares para cima e para baixo.
- Bom dia! - Eu abraço seu pescoço assim que me aproximo dela. - Me fala, o que você fez esse final de semana?
Bárbara me encara e dá de ombros, então olha para as próprias unhas pintadas de preto e responde:
- Nada de mais. E você? Tá tudo bem com seu bonequinho de porcelana?
Eu solto um suspiro longo e pesado enquanto jogo meu corpo para trás, sendo amparada pela parede.
- Ele tem tido alguns problemas de família.
- Sei... Papai não tá dando atenção pra ele? - Ela crispa os lábios e enrosca uma mecha de cabelo no dedo.
Pisco surpresa, porque apesar de ser sempre debochada, Bárbara nunca foi maldosa. Mas agora é desse jeito que está soando e não sei se gosto disso.
- Não são só problemas com o Clóvis - explico. - Tem muito mais coisas... Ele anda tendo aqueles pesadelos com o acidente e toda essa situação tem deixado ele muito sensível. Ele também foi expulso da equipe e ficar de fora acabou com ele.
- É mesmo?
Eu faço que sim e abraço meus livros.
- O Samuel ficou no lugar dele. O Victor pirou quando viu ele lá em casa sábado. Foi por isso que te pedi para adiar nossa saída. Ele tá um pouco paranoico com tudo isso, mas é compreensível.
- Como assim?
- Aquele dia na lanchonete quando eles brigaram e agora... Justamente o Samuel ter ficado no seu lugar. É uma coincidência tão horrorosa. Dá pra entender porque ele não gosta do garoto.
- Mas nada disso é culpa do Samuel. - Ela continua olhando as unhas, mas sua expressão não esconde o quanto ela acha absurdo tudo isso.
- Eu não disse que era - rebato, incomodada.
Ela decide me encarar. Não gosto de como ela me olha, porque parece que está diante de uma criança ingênua. Nunca senti isso com Bárbara, mas parece que ela está me julgando pra valer.
- Não têm coincidências. Nós vivemos numa cidade pequena, estudamos na mesma escola e Samuel já fazia parte da equipe antes de vocês namorarem. Ele não roubou o lugar do seu namorado. O Victor perdeu a liderança, porque não estava comprometido o suficiente. E mais - ela revira os olhos com desdém -, ele não foi expulso da equipe. Saiu porque não aguentou ser o número dois, foi muito para o ego dele. O Victor deixou a equipe na mão. Seu menino mimado é um covarde.
Ouvi-la falar assim de Victor sem nem tentar ver o lado dele me deixa com raiva. Ela tem pontos bons, mas está sendo um tanto injusta.
- Você é muito preconceituosa, Bárbara! Acha que sabe tudo sobre ele porque ele tem grana, mas você também não tá tão longe assim de ter tido uma vida ótima e jamais pensei menos de você por isso. Mas ao contrário de você, ele não teve uma família que o apoiou, então quando coisas assim acontecem, ele não sabe lidar como nós.
- É sempre essa mesma conversa, né, Clarice - sua voz sai alterada, apesar de ela não estar gritando. Seus braços se agitam no ar. - Você acha que só seu bonequinho de porcelana tem problemas e a única desculpa que você dá para si mesma pra aguentar a personalidade irracional dele é falar que "o pobrezinho cresceu sem mãe", como se isso fosse desculpa.
- Você tá falando do que, Bárbara? - Eu ergo a sobrancelha para ela. - Qual é a sua desculpa para continuar com o Gustavo? Você tá aí falando de mim, mas olha só pra você! Fica dando trela para o Téo e ao mesmo tempo não larga o Gustavo. Você não é ninguém pra me julgar.
Percebo que a magoei, mas ela também me magoou e eu estou tão surpresa e brava com ela, que minhas mãos tremem e mal consigo sentir qualquer coisa que não seja essa queimação intensa em meu peito.
- Você tem razão - ela explode. Seu rosto está vermelho e seus olhos escuros. - Eu sou uma vaca com V maiúsculo, mas pelo menos não sou burra como você. Não sou cadelinha de ninguém.
Mordo o interior da bochecha engolindo os insultos que estão na ponta da minha língua, ainda sendo capaz de ouvir aquela vozinha no fundo da minha cabeça, me dizendo que vou me arrepender, pois depois de ditas, as palavras não podem ser apagadas.
- Patética - ela diz baixinho, mas ainda alto o suficiente para que eu possa ouvir.
Bárbara pega sua mochila do chão, mas eu fico presa ali com as costas contra a parede, o coração acelerado, confusa sobre o que acabou de acontecer.
Nunca brigamos desse jeito antes e nunca achei que um dia pudéssemos dizer coisas assim uma para a outra. A adrenalina vai dando lugar a um sentimento de vazio enorme como se alguma coisa tivesse morrido hoje.
Mas, morreu, Clarice. Sua amizade com Bárbara, morreu.
Eu estou sozinha aqui, pois todos já foram para a sala de aula, mas eu não quero sair de onde estou. Não quero entrar numa classe cheia, não quero sentar à frente da Bárbara e não poder rir com ela ou reclamar de alguma bobagem, não quero ver a chateação em seus olhos, ou pior, saber que ela nem se importa, então eu vou até o banheiro, me tranco nas cabines e choro.
Choro porque ela tem razão sobre uma coisa.
Eu sou patética.
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