25 | Quase Doce

VICTOR

Hoje, antes de sair de casa, logo no café da manhã, mal consegui olhar nos olhos de Clóvis quando estávamos à mesa. É como Clarice tinha dito, o que eu ia fazer parecia errado e a sensação se intensificava cada vez que eu pensava mais sobre o assunto. Fui tomado pela certeza de que me encontrar com o homem responsável pela separação deles era como o apunhalar pelas costas. Acho que é por isso que, enquanto estou aqui sentado neste restaurante, após pegar um Uber para a cidade a quarenta minutos de Nova Vitória, meu estômago se revira como se eu tivesse ingerido algo que não caiu bem.

Faço um exercício de respiração, olhando para fora. Escolhi um lugar no fundo, ao lado de uma grande janela de vidro. A visão não é nada bonita. Engarrafamento de carros e ônibus, motos buzinando, pedindo os corredores livres para que possam passar. Uma chuva fina cai e mesmo ainda faltando duas horas para o horário que havíamos combinado, eu fico imaginando se isso será um empecilho para que ele venha. Acredito que vá me ligar e dizer que não pode aparecer, porque não tem um guarda-chuva. Muita gente desiste de sair quando está chovendo. O mais maluco de tudo é que a ideia chega a me deixar animado.

Eu não sei se já estive tão nervoso.

Uma atendente me cumprimenta, trazendo um cardápio. Aceito e finjo analisar os lanches até que ela se afaste para atender outro cliente que acabou de chegar, prometendo voltar quando eu tiver decidido. Sei que se comer algo agora pode ser que não consiga manter tudo dentro do meu estômago, então quando ela retorna alegremente, perguntando se já sei o que vou querer, eu opto por um suco simples de abacaxi com hortelã.

O lugar não tem mais do que três pessoas contando comigo e meu suco chega rápido. Eu rasgo o plástico que envolve o canudo e o mergulho no líquido gelado, mas o deixo intocado à minha frente. Tiro o celular do bolso da jaqueta e tento me distrair ao abrir um aplicativo de leitura, escolhendo retomar Blad Runner de onde parei. Acho que leio o equivalente a uma página e meia antes de desistir. Nem Philip K. Dick é capaz de ocupar minha mente.

Observo os passantes, tentando identificar se algum deles é o cara. A hora nunca vai passar assim. Pode ser que um jogo prenda mais minha atenção e dou uma chance ao Candy Crush enquanto tento manter um pouco da minha sanidade. Já passei um bando de fases quando sou pego por uma voz calma. Não é a da atendente que já voltou duas vezes, uma para me perguntar se o suco não estava bom e outra para trazer mais gelo. Essa voz é nitidamente masculina e pessoalmente muito mais sonora.

- Victor?

Não sei o quanto demoro para encará-lo. Um minuto, cinco ou dez, talvez tenham sido na verdade segundos. A única certeza que tenho é que estou paralisado feito um garotinho. Mas consigo fazer meu cérebro religar e encará-lo.

- Muito prazer. - Me levanto, estendendo a mão para apertar a dele.

- O prazer é todo meu - Ele retribui.

Sua aparência é exatamente como nas fotos. Magro, olhos castanhos e cabelos escuros, a barba rente, mas há rugas ao redor de seus olhos e algumas linhas nos cantos da boca. Ele parece menos clássico e muito mais comum com as roupas casuais que usa, mas sua postura denota um ar rebuscado como uma redação interessante escrita num papel amassado.

Soltamos as mãos e nos sentamos. A garçonete que me atendeu antes retorna à mesa para saber se Ricardo vai querer algo. Ele pede um café e eu apenas uma água. Ninguém diz nada, mas ficamos nos encarando. É embaraçoso pra caralho.

- Você lembra muito a sua mãe - Ricardo diz, cortando o pesado silêncio.

O comentário inesperado me pega de surpresa e eu ergo as duas sobrancelhas ao encará-lo.

- É mesmo? Porque dizem que sou a cara do meu pai.

- Você tem os traços do seu pai - concorda. - Mas posso ver que você tem muito da Elle como seus olhos. Não propriamente a cor, mas a maneira como você olha para as pessoas, a suavidade que carrega... Parece que eu a estou vendo aqui e agora. - Ele está falando sério, pois algo brilha em seu olhar como se a lembrança o emocionasse e acho que algo brilha em mim também. Nunca ninguém tinha me dito que eu a fazia lembrar desse jeito, como se uma parte da alma dela estivesse em mim.

O café é servido e uma garrafa d'água colocada à minha frente. Eu a abro e tomo um gole grande enquanto sou envolvido pela fumaça que sai da xícara de café e faz o gostoso aroma pairar pelo ar. Observo Ricardo afundar um quadradinho de chocolate no líquido e mexê-lo calmamente com uma colherzinha.

- É chocolate com hortelã - ele me diz quando pousa a colherzinha sobre o pires. - Quando ia com sua mãe à cafeteria e eles vinham com esses docinhos, ela costumava sempre roubá-los para ela. Nem acho que ela gostasse, mas acredito que isso a fazia se sentir mais íntima... - Ricardo divaga, olhando para a própria bebida. - Não sei se quer ouvir essas coisas, Victor. Seu pai sabe que está aqui? - Ele pousa a colher e levanta o olhar.

- Não. - A verdade tem um gosto ruim na minha boca e quase peço um gole do seu café para tirá-lo.

- Eu me sinto um pouco mal sobre isso - diz referindo-se a nós, a esse encontro, o que não alivia nada minha culpa. - Mas você é o filho da Elle, eu não poderia negar um pedido, apenas... conte para ele depois.

Sua preocupação é meio hipócrita se eu pensar no que ele fez, trair o melhor amigo. Só que eu estou ciente de toda a situação e fui eu quem o chamei aqui.

- Eu vou contar.

Acho que ele acredita, porque não insiste no assunto e voltamos ao desconfortável silêncio. Ele agora está olhando para fora distraidamente, como se estivesse bem longe daqui e me pergunto o que está se passando pela sua cabeça. Parece que esse encontro não mexeu só comigo, mas está bagunçando com ele também. Devo ter trazido muitas memórias à tona. Mas eu tenho um objetivo e mesmo que seja difícil, já estamos aqui e não vou desperdiçar esse tempo.

- Como foi que aconteceu? - mando direto e sem rodeios.

Voltando a me olhar, ele expressa dúvida.

- Vocês dois - explico.

Outras pessoas iriam preferir não saber. Não é comum querer os detalhes de como sua mãe se interessou por outro cara que não o seu pai numa situação tão incômoda como essa. Eu mesmo não acho que seja um assunto agradável, mas não estou aqui para julgá-la ou mesmo julgar esse cara. Eu quero entendê-la através desse homem. Quem sabe assim eu consiga tirar de mim essa pedra que afunda meu coração cada vez que eu penso que ela não me quis, porque a Clarice está certa. Remoer o passado não vai me deixar seguir em frente e eu quero crescer. Quero sair dessa prisão que se tornou minha cabeça e respirar livre disto.

- Eu e Elle compartilhávamos o amor pela música. - Ricardo arrasta sua xícara para o lado e se inclina sobre a mesa, pegando minha garrafa vazia. Ele começa a arranhar o rótulo e vejo que esse é seu jeito de conter o nervosismo que também está sentindo. - Ela amava tocar violino tanto quanto eu e seu pai nos apresentou porque achava que seríamos bons amigos. Começamos a conversar e nos ver para falar de música. Descobrimos muitas coisas em comum... E aconteceu. Não foi nada de caso pensado.

- Acha que foi pelas coisas em comum que ela trocou o Clóvis por você? - Me parece um argumento vazio, mas como eu disse, não estou aqui para julgá-la.

- Não sei bem o que a Elle viu em mim. Ela dizia que gostava de me ouvir e da maneira como eu prestava atenção a tudo relacionado a ela e que eu a fazia sorrir. - Os cantos dos lábios dele se erguem um pouco, mas ele não me encara enquanto fala. - E eu amava a arte que existia dentro e fora dela. Sua mãe era poesia, sonoridade e beleza. Não era possível ficar perto dela sem ser afetado ou tocado pela sua melodia.

Diferente do meu pai, um cara fechado e confiante, até agora Ricardo me pareceu tímido, mas sensível. Acabou de me mostrar o quão bem sabe usar as palavras e se ele conversava e dizia coisas assim para minha mãe, não me admira que ela tenha se apaixonado. Estou começando a compreender a profundidade de sua feição por ele.

- Eu tenho o livro que você deu para ela - comento. - E vi sua dedicatória.

Ele meneia a cabeça.

- Ela amava Anna Karenina. Acho que de alguma forma, ela se identificava e se compadecia da personagem. Não pelo que aconteceu a nós, não é isso. - Ele franze a sobrancelha, ainda lutando para tirar o papel que ficou grudado na garrafa. - Acho que tem mais a ver com viver uma vida que não era sua, imposta pelo que esperavam dela.

- Do jeito que você e Clóvis falam parece que vieram do século XIX - digo um pouco aborrecido.

- Pode parecer absurdo, Victor - Ricardo suspira, largando a garrafa e se recostando na cadeira -, mas ainda hoje vivemos a vida que os outros querem, só que de formas diferentes. Se você abrir o Instagram agora vai ver o quanto as pessoas se moldam para agradar as outras com medo de minar suas expectativas e com medo da rejeição, do que podem perder se forem elas mesmas. Elas fazem escolhas que normalmente não fariam e se sentem vazias. Podem se passar séculos e séculos, não acho que isso vá mudar necessariamente, só irá tomar a forma da sua geração atual.

O seu discurso é como um tapa na cara. Ricardo tem razão. A nossa geração só mudou o meio de pressionar as pessoas, mas ainda é uma merda como nos importamos tanto com a imagem perfeita que esses estranhos impõem a nós, deve ser ainda pior quando toda essa expectativa vem da sua própria família e ainda que eu não tenha sido criado perto dos meus avós maternos, nas poucas vezes em que vieram me visitar, não senti o acolhimento e calor que um neto merece receber.

- Você tá certo. - Coloco a mão na nuca, criando coragem para fazer a pergunta de um milhão. - Então, por que ela não me levou junto quando decidiu sair de casa?

Ricardo abre a boca para falar, mas respira fundo e volta a fechá-la. Ele reflete e sua hesitação me faz pensar um monte de coisas que eu não gostaria. Será que vai me dizer que ela não me queria e está tentando achar uma forma de amenizar?

- Seja honesto, por favor - peço demonstrando firmeza. - Não tente florir a verdade, só seja honesto seja lá qual tenha sido o motivo. Eu aguento.

Hoje eu virei o mestre da mentira, pode apostar.

- Eu não sei te responder. Eu não teria me importado de tê-lo conosco. Você não se lembra, mas já esteve lá em casa com a gente. Duas vezes. Você era muito pequeno e um garoto muito quieto.

A revelação me traz um momento há algum tempo atrás quando ver Clóvis com a mão sobre a da Lídia me fez ter uma espécie de déjà vu e a imagem completa se forma no quadro das minhas lembranças borradas, agora tomando uma assustadora nitidez como uma pintura acabada. Não tinha sido nenhum déjà vu, mas uma recordação real de minha mãe e Ricardo que estava bem no fundo da minha cabeça, lutando para sair.

- ... tinha muitas inseguranças e vontades - continua e eu forço minha atenção para o que está me contando. - Além disso, talvez tivesse medo de não ter condições de criar você com todo o conforto que você tinha com Clóvis. Seus pais brigaram feio na época e, embora eu duvidasse muito, ela achava que Clóvis a deixaria sem nada.

Isso Clóvis não tinha me contado.

- Acha que foi por isso?

- Pode ser, mas ela também precisava de um tempo para ela. Entenda, Victor - seu tom de voz é mais incisivo -, ela te amava demais, mas precisava encontrar a si mesma antes de poder oferecer a você o melhor que ela podia dar, para poder ser a mãe que queria.

Tento processar o que ele falou, mas não sei exatamente como me sentir a respeito. Ele e Clóvis convergem no fato em que ela sempre pareceu querer mais do que tinha como se tudo não fosse suficiente para preenchê-la. Nem mesmo eu.

- Ela queria asas...

- Era exatamente assim - ele diz soltando o ar e cobre o rosto com uma mão, os olhos fechados. - Desculpe, é que ver você me fez pensar que se pudesse voltar àquela época teria feito algumas coisas diferentes.

- Você se arrepende de ter ficado com ela?

- Não - ele responde rápido e abre os olhos. - Me arrependo de como as coisas aconteceram. Nós não queríamos ter magoado você e o Clóvis. Foi errado de muitas formas e esse é outro motivo pelo qual estou aqui, para que você saiba que a sua mãe te amou, mas que nada do que houve foi culpa dela ou do Clóvis. Só aconteceu.

- Achei que a essa altura você teria raiva dele - digo meio surpreso com o quanto até agora ele tem falado do Clóvis com tanta ponderação.

- Clóvis é um bom homem e sofreu muito com tudo que houve. Quando ele chegou no hospital, naquele dia em que perdemos a Elle, ele ficou desesperado ao saber do acidente. Não havia o que fazer por ela, mas ele ficou dia e noite cuidando de você e não saiu de lá até que te dessem alta. Saber que você estava vivo manteve ele vivo também. Conhecendo seu pai como conheço, é provável que ele teria desistido de continuar se não tivesse você.

- Como você sabe de tudo isso? - Não acho que meu pai tivesse aceitado ter Ricardo ao seu lado num momento como aquele.

- Porque eu vi naquele primeiro dia e meus amigos me disseram depois. Você pode perguntar a qualquer um que estava lá naquela época e todos vão confirmar.

Aquilo é novo para mim. Sempre achei que Clóvis preferisse que eu tivesse morrido com ela, mas ele cuidou de mim. E estou aqui com o ex da minha mãe e ele não vai me perdoar se souber disso. E o mais louco sobre isso é que algo dentro de mim me diz que ele entenderia se eu tivesse contado antes mesmo que inicialmente se mostrasse relutante, mas agora...

Que merda, Victor.

O silêncio volta a reinar entre nós. Não há muito mais a ser dito, então concordamos em encerrar aquela conversa. Ricardo se levanta para ir embora, mas antes que ele se afaste, eu me vejo lançando mais uma pergunta:

- Acha que ela teria voltado para me buscar?

Lá está novamente a hesitação. Só o fato de ele não saber ou não ter certeza me diz muito.

Ricardo confere o bolso do casaco, acho que mais porque não sabe o que fazer com as mãos do que por estar preocupado em ter perdido alguma coisa.

- Eu não sou a Elle e há questões que só ela poderia responder - diz com sinceridade, mas mantendo o tom suave. Então me olha nos olhos do jeito que não tinha feito até então. - Ela te amava, Victor. Essa é a única verdade que importa. É um fato absoluto e sem brechas. Apenas lembre-se disso quando pensar sobre ela.

Acenando com a cabeça, Ricardo se afasta até as portas e sai do restaurante. Apesar do que ele falou, um sentimento pesado se instala em meus ombros, levando embora meu ar, me sufocando e me deixando mal. Eu não entendo. Eu devia me sentir melhor. Mas eu me sinto pior que antes e analisando essa conversa, me dou conta de que continuo sem saber o que mais me atormentou por todo esse tempo.

Jogo a cabeça para trás e aperto a ponte do nariz. É isso. Eu queria que ele tivesse dito que ela me buscaria, que eu era tudo para ela como são os filhos para todas as mães que os amam. As falas dele só me fizeram pensar no quão egoísta a Elle era, tentando voar para longe e pensando só em si mesma. Não há como mudar isso, porque o passado simplesmente não pode ser mudado e sentimentos não podem ser forjados.

Eu me levanto para sair dali, nauseado, a culpa corroendo meu estômago.

Deus, se o Clóvis souber disto...

A sensação é tão forte que me faz querer vomitar e eu caio novamente na cadeira, esperando até o mal-estar ir embora. Não posso estragar tudo agora, não quando eu e Clóvis estamos nos dando tão bem.

*

Os pesadelos recomeçaram.

Ao voltar para casa ontem, não jantei. Eu nem conseguia comer direito devido a todos os sentimentos que me dominavam e hoje parece que minha cabeça está prestes a explodir. Eu praticamente não dormi. Desde que Clóvis e eu havíamos começado a nos entender, eu não tinha mais tido aqueles pesadelos com o acidente, mas essa madrugada fui assombrado por eles de uma forma muito mais intensa como se estivesse revivendo tudo. Foi muito mais claro que das outras vezes, a sensação de medo, o grito que ela deu quando perdeu o controle do carro e percebeu o que iria acontecer, o cinto arranhando meu pescoço, o som do vidro se estilhaçando e se infiltrado na minha pele. Eu a vi desacordada, com o sangue escorrendo pelo seu rosto, e meu peito foi esmagado pela dor e o fato de que eu não entendia o que estava acontecendo, mas sabia que era grave e não podia fazer nada.

Tive medo de voltar a dormir e passei a noite jogando aquela porcaria de Cand Crush. Com certeza conversar com Ricardo ativou meus gatilhos. Achei que preencheria os espaços vazios que haviam na minha cabeça, mas eu ferrei ainda mais comigo. Eu devia ter seguido os conselhos da Clarice, devia ter deixado as coisas como estavam. No fim das contas, nada do que eu soube foi tão diferente do que o Clóvis havia me dito.

Não quero lidar com o pessoal lá embaixo, então penduro uma alça da mochila no ombro e me dirijo até a saída, mas não consigo me livrar do encontro com Clóvis que me pega no jardim, chamando meu nome antes de eu ter tempo de fugir sem ser notado.

- Tudo bem, filho? - Ele para ao meu lado.

Nem consigo encará-lo direito, mas me empenho para parecer relaxado e sorrio.

- Tudo bem.

- Você estava muito calado ontem de manhã, não jantou e hoje não quis tomar café com a gente. Está tudo bem mesmo? Você... Pode falar comigo.

Sua preocupação não é algo que eu mereça. Não depois de mentir do jeito que eu menti.

- Eu só estou cansado, muita coisa na cabeça.

- Tem a ver com algo aqui em casa, com seu namoro ou no colégio...?

Ajeito a alça da mochila e coloco uma mão no bolso da calça.

- É mais o futuro.

- Entendo. - Ele assente como se compreendesse. - Você está quase se formando, esse é o último ano e está preocupado com o que vai ser daqui pra frente. - Ele coça a barba por fazer e arrisco o contato visual com ele. - Eu sei que os jovens se sentem muito pressionados, mas quero que você saiba que é livre para escolher o caminho que quer seguir. Não quero que pense que tem que fazer algo para me agradar, porque qualquer coisa que você decidir me fará sentir orgulho de você. Na verdade, você já me dá muito orgulho.

É isso mesmo? Exatamente agora, quando eu já estou me sentindo um traidor miserável, ele vem com esse papo paternal? Que momento mais propício. Quero rir da situação porque seria cômico se não fosse uma merda.

- Obrigado. - Nem consigo mais sustentar o sorriso. Eu só quero sair de perto dele e das suas palavras amorosas, caso contrário vou vomitar de tanto remorso. - Tenho que ir antes que me atrase.

Sinto o olhar de Clóvis avaliando minha expressão, mas saio de lá a passos rápidos. Sei que deve estar se perguntando o que acabou de acontecer, porque estou aqui de novo erguendo os blocos de concreto no muro que estávamos destruindo.

*

- Correu tudo bem então?

Estamos sentados em um dos bancos do jardim do Núcleo. Clarice me fita com o olhar desconfiado, procurando sinais em mim. É difícil mentir para essa garota. Ela enxerga mais em mim do que às vezes eu mesmo. Mas não vou contar para ela sobre o pesadelo, ou que Ricardo me deixou mais angustiado, porque só iria deixá-la preocupada e aflita. Eu não conheço ninguém mais empático do que ela.

- Nenhuma novidade do que te contei ontem na ligação.

- Que bom que vamos fechar esse ciclo. Eu tô muito feliz por você finalmente conseguir deixar isso para trás.

- Claro - curvo meus lábios num sorriso amarelo.

Clarice encosta a cabeça em meu ombro e suspira. Ao contrário do que tem sido essas semanas, hoje está ensolarado, embora o vento esteja frio, então quando Luan se aproxima, eu faço sombra sobre os olhos com as mãos para poder enxergá-lo.

- E aí, cara - Luan me cumprimenta com um toque de mão e acena com a cabeça para a Clarice. - Mês que vem vou dar uma festa de aniversário no Bela Vista e quero ver vocês lá. - Ele me estende o convite.

- Que gracinha - digo, pegando o papel. - Vai ter lembrancinhas também?

- Claro. E a valsa. Vai de príncipe, gostoso. - Luan pisca e joga um beijo que eu finjo pegar e levar direto para o coração.

- O Téo não vai ficar com ciúmes? - Clarice brinca quando ele se afasta.

- Não, ele sabe que as outras são só diversão.

- Ah, é? - Ela belisca meu braço. - Isso me inclui também?

- Olha... - Finjo pensar e Clarice se inclina e morde meu ombro. Caramba, ela acha que isso é um castigo? Até esqueço que minha cabeça parece ter sido acertada com uma raquete.

- Se essa é minha punição, vou ter que te chatear mais vezes.

Clarice pega sua mochila e me olha como se dissesse "continua sonhando".

- Vamos? - pergunta já se levantando.

- Fazer o quê! - Uso um tom humorado, mas daria tudo para que hoje pudéssemos ficar juntos em algum lugar tranquilo e eu pudesse esquecer que eu sou uma peça quebrada, de um motor arruinado, cheio de culpa e sem conserto.

*

- Cara, você não parece nada bem - Téo observa, ajeitando o cabelo para dentro da touca.

- Não dormi direito, é só isso.

Meu amigo se senta ao meu lado e eu exalo o ar, cansado. Manter os olhos abertos durante as aulas foi um grande sacrifício e não sei como vou me sair hoje porque sinto como se tivesse sido atropelado.

- Então... - Ele empurra o corpo para frente, colocando os cotovelos sobre as coxas e junta as mãos. Olho para ele e pela maneira como seus ombros e pescoço parecem tensos fico com a sensação de que quer me dizer algo de que não vou gostar.

- O que foi?

- É que... você não veio ontem e não avisou ninguém sobre o motivo, o treinador ficou possesso.

Esfrego o rosto. Sérgio já tinha conversado comigo sobre minhas faltas antes, então não é surpresa que ele tenha tido essa reação.

- Vou pensar no que dizer a ele.

- O problema é que eu não sei se vai adiantar. - Meu amigo desvia o olhar para o chão.

Fico esperando, mas Téo parece relutante em me dar alguma informação.

- Por que tá me dizendo isso? - Ele continua mudo, apertando os dedos como se estivesse tentando aliviar a pressão do que quer que ele saiba e eu não.

Eu assumo a mesma posição que ele e o intimo:

- Fala.

- O técnico meio que vai colocar outro cara no seu lugar como líder.

- Como assim? - Minhas sobrancelhas se unem porque não acho que ouvi direito.

Ele me encara e vejo que não está brincando.

- Os outros ainda não sabem, só os meninos da equipe, ele ainda vai conversar com você, mas... Sei lá, cara, eu acho que você irritou ele pra valer.

Eu me levanto e começo a caminhar de um lado para o outro, mas cada vez que penso sobre isso, uma raiva maldita toma conta de mim.

- Quem vai ficar no meu lugar?

Téo faz que não com a cabeça como se me pedisse para parar e encerrar o assunto, mas não vou esperar até que o treinador venha falar comigo.

- Fala quem, porra! - Dou um soco tão forte no armário que o som estala alto em nossos ouvidos e a estrutura inteira treme.

Téo se enrijece. Ele se levanta e se coloca à minha frente.

- Calma, cara.

- Fala! - eu exijo, ameaçador, me aproximando ainda mais dele.

- Tudo bem aqui, pessoal? - Samuel surge no vestiário. Ele está com o uniforme e segurando sua mochila. Coloca ela sobre o banco e estuda a mim e ao Téo com o semblante desconfiado.

Olho para ele e depois para o meu amigo que de novo não sustenta meu olhar. Uma compreensão me domina quando percebo porque Téo nem consegue me encarar. Aperto o punho com força e antes que Samuel consiga assimilar ou ter tempo para reagir, eu o seguro pela lapela da jaqueta e o empurro contra a parede.

- Tá feliz de roubar o meu lugar no time?

Ele parece assustado com a minha reação, mas não surpreso com a pergunta, o que só me confirma que eu estou certo.

- Você acha que eu queria a merda do seu lugar? Foi ideia do treinador, eu pedi pra ele não te tirar - diz ele, tentando se libertar, mas eu não o solto.

- Cala a boca, seu mentiroso filho da puta. - Eu coloco mais força em meu braço para mantê-lo preso.

- Ele tá falando a verdade, Victor - a voz de Téo chega até mim. - Solta ele, cara. É sério?

- A verdade? - pergunto incrédulo enquanto deixo escapar um riso sem qualquer emoção. - Não é a primeira vez que esse desgraçado quer algo que é meu!

- Do que você tá falando? - Samuel arqueja.

- Ninguém queria seu lugar - Téo insiste e pega meu braço. Os outros caras da equipe vão surgindo e se acumulando ao nosso redor até que todo mundo se vira, inclusive eu, ao ouvir a voz do treinador.

- O que tá acontecendo aqui?

Não faço questão de esconder meu olhar de decepção para ele. Me tirar da liderança assim foi baixo e sujo, eu jamais imaginei que seria apunhalado desse jeito.

Então essa é a sensação?

- Sai - eu empurro Téo e qualquer um bloqueando minha passagem, indo até meu armário.

- Vão pra piscina - Sérgio manda e rapidamente o lugar se esvazia e ficamos apenas eu e ele.

Estou vestindo minha camiseta quando ele para diante de mim e diz meu nome com uma voz firme.

- Victor...

- Me dá licença, por favor.

- Não é assim que um homem age.

Ergo a cabeça para fitá-lo.

- Quer falar de hombridade quando você colocou outra pessoa no meu lugar?

- Você tem sido irresponsável há muito tempo, garoto. Tem faltado sem aviso, seu rendimento não é mais o mesmo e, ainda assim, essa decisão não era definitiva, mas agora você está me fazendo pensar.

- Não precisa pensar. Tô caindo fora. - Coloco uma alça da mochila sobre o ombro.

- É uma decisão sua, filho.

Minha resposta é contorná-lo e sair do vestiário. Eu me sinto traído, sufocado e não posso mais ficar aqui. Eu preciso tomar um ar.

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Oi, gente, tudo bem com vocês? Me contem o que acharam desse capítulo.

Vitinho se deu bem mal com essa paranoia dele.

Bora ver como nosso menino dramático vai lidar com isso.

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