18 | Quase Doce
O
Ontem eu fiquei cego de ciúmes. Foi como se tivesse uma vozinha falando no meu ouvido. Não sei como fui capaz de permitir que minha mente mexesse comigo daquela forma, mas quando vi Clarice e Samuel, o riso dela enquanto ele se inclinava com a caneta rabiscando o braço dela, as piores imagens se formaram na minha cabeça.
Foi maluco. Senti como se não tivesse controle sobre minhas emoções. Era como se alguma coisa tomasse conta de mim e não consegui me controlar. A raiva me dominou e quando Samuel apareceu lá fora, tudo que eu queria era quebrar a cara dele.
Não confio em Samuel, mas deveria ter acreditado na Clarice quando ela procurou esclarecer a situação. Agora, não sei o que vai ser da gente. Ela não atendeu aos meus telefonemas quando liguei para o seu celular à noite e nem respondeu nenhuma das minhas mensagens.
Olho para as horas no meu celular. Fiz questão de chegar mais cedo para ter a certeza de encontrar a Clarice. Eu e ela precisamos conversar sobre o que aconteceu. Ela tem que saber que estou arrependido e o quanto eu sinto muito. As coisas não podem ficar desse jeito.
Alguns minutos encostado à parede, perto da porta do banheiro masculino, vejo a Clarice chegar ao seu armário. Olho mais adiante para ver se a Bárbara está perto dela, mas graças a Deus não vejo a garota em lugar nenhum. Seria muito mais difícil se Bárbara estivesse com ela, pois tenho certeza de que não a deixaria falar comigo. Ela já não gosta de mim e depois de ontem deve achar que sou um demônio.
Ela sente minha presença quando chego perto dela e não consegue fingir. Seu corpo se empertiga, mas ela não se vira para me olhar, continua retirando seus livros do armário.
- A gente precisa conversar - digo a ela.
- Já disse o que eu tinha pra dizer ontem e você não quis acreditar. Não confiou em mim. - Ela coloca as mãos no bolso da calça, pega o anel prateado e o devolve para mim, mas eu me recuso a aceitá-lo e dou um passo para trás.
- Clarice o que... O que é isso? - a pergunta sai dos meus lábios num tom incrédulo. Não acredito que ela esteja terminando comigo.
- Isso entre a gente não vai dar certo - ela me diz e seus olhos brilham com as lágrimas que sei que está segurando. É tão difícil para ela terminar quanto para mim ouvir que ela não acredita em nós porque cometi a droga de um erro. Um erro estupido e imbecil.
Mas eu amo essa menina e não vou deixá-la ir assim tão fácil.
- Não fala assim - peço sem me importar com o fato de que mais parece uma súplica. Se for fazer com que ela mude de ideia, eu posso até me ajoelhar aqui e agora.
- Só estou sendo realista, Victor. - Apesar de estar quase chorando, essa menina se mantém firme. - Eu tenho que ir. - Ela tenta se afastar, mas eu pego seu braço e a faço vir comigo para um dos espaços entre os armários.
- Não faz isso com a gente, por favor. - Estendo os braços e espalmo as mãos na parede, ao lado da sua cabeça. Perto do meu, o corpo dela é pequeno e delicado. Ela parece frágil de um jeito que nunca vi antes. - Sinto muito por ontem, mas não acredito que você consiga ficar sem mim assim como sei que não consigo ficar sem você.
- Você me magoou muito, Victor. - A tristeza na voz dela acaba comigo. Se eu pudesse, impediria o meu eu idiota de ter feito tudo que fez ontem, mas não há como desfazer aquela merda.
- Eu tava com ciúmes.
- Você quase bateu no Samuel mesmo quando eu te disse que não tinha nada. Você não acreditou em mim...
- Clarice, não é desse jeito. Não faz isso - eu repito.
Com os braços, Clarice tenta me empurrar, mas meu corpo pressiona o seu contra a parede e enterro meu rosto em seu pescoço. Se ela resistir mais uma vez estou decidido a deixá-la sair ainda que isso me arrebente por dentro. Só que Clarice não tenta me afastar, pelo contrário. Sinto o corpo dela tremer sob o meu e sua pele se arrepiar, a respiração ficar irregular. Minha boca se aproxima da sua e nossos olhares se prendem um ao outro. Eu a vejo travar uma batalha consigo mesma. Ela está lutando contra o que sente. Uma das mãos dela agarra meus cabelos e a outra ela coloca em meus ombros. Meus lábios pairam sobre os seus, nossa respiração se mistura e ela arfa com a proximidade. Quando minha boca vai de encontro a sua, chegando a tocar a dela suavemente, Clarice me empurra de novo.
- Não! - Suas bochechas estão vermelhas. - Não, Victor. Acabou! - diz, seguindo para longe de mim.
Sou um otário, mas não quero acreditar que perdi a melhor garota de todas. Talvez ela só precise de tempo para pensar e ver que um erro não pode acabar com tudo o que nós construímos até agora. O que temos não pode acabar desse jeito.
*
Acredito que todo mundo tenha um local ou uma caixa em que enterra cartas, fotos e objetos que guardam lembranças preciosas das quais é muito difícil se livrar. Os Villela não são diferentes. Já faz algum tempo que não venho ao quartinho dos fundos da casa, mas hoje senti a necessidade de estar aqui.
Algumas caixas estão empilhadas perto da parede e ferramentas estão dispostas em prateleiras. Na primeira, lá em cima, eu vejo o case preto que guarda o violino que foi da minha mãe. Anos atrás, Clóvis tentou doá-lo, mas não permiti que ele o fizesse. Nós brigamos feio naquela época. Eu fiquei puto porque ele havia dado suas partituras e jogado alguns de seus cadernos fora. Nunca me importei que não tivéssemos mais suas roupas, sapatos ou coisas materiais que seriam um desperdício manter em casa, mas aquilo tudo não tinha serventia para ninguém e era uma parte da alma dela. Eu não entendia como ele podia ter feito algo assim. Como se joga fora a alma de alguém como se não fosse nada? Acho que isso tornou um pouco mais difícil fazer com que eu conseguisse perdoá-lo.
Olho para cima. Sou alto, mas não o suficiente para alcançar o case, então pego as escadas ao lado da porta e a levo até onde quero. Subo e pego o case com cuidado. Já no chão, eu abro o zíper do estojo e tiro de lá um belo violino. Não há nada de mais nele. É de madeira como todos os outros e com cordas de aço, mas minha mãe fez questão de gravar seu nome nele, com uma letra curvada em tinta preta. Está um pouco falhado em algumas partes, mas ainda é possível ver com nitidez.
Procuro algum pano para polir o instrumento e encontro uma flanela jogada numa cadeira. Depois de limpar o violino, eu o posiciono em meu ombro e passo o arco nas cordas só para constatar que está um pouco desafinado. Vou até a cadeira, me sento, coloco o instrumento sobre meus joelhos, com as cordas viradas para mim. Com uma mão eu vou tocando-as e com a outra giro as cravelhas, que ficam na ponta do braço do violino, até que os ciclos das notas soem perfeitos.
Terminada a afinação, eu me levanto e penso numa música. Não sei muitas coisas sobre minha mãe, mas uma vez eu me lembro de ter visto uma citação em seu caderno que jamais consegui esquecer.
Quando sentir que a esperança se foi
Olhe para dentro de si e seja forte
E finalmente verá
Que existe um herói em você[1]
Demorei muito tempo para me tocar que se tratava de um trecho de música que eu já tinha ouvido tantas vezes, mas jamais dera atenção. Depois que descobri, eu passei o dia ouvindo-a e pensando naquelas palavras, me perguntando se ela as dizia a si mesma.
Fecho os olhos e começo a tocar. Deixo que a canção flutue pelo ar e a encontre onde quer que ela esteja. Aperto minhas pálpebras e visualizo o sorriso dela, aquele que sempre vejo em meus sonhos. Sinto-me tão, tão vazio. Que saudades de tudo que poderíamos ter feito juntos, das conversas que nós teríamos e dos conselhos que me daria. Como eu queria que você estivesse aqui, mãe, e então você me diria o que tenho que fazer para ter a Clarice de volta.
Paro e olho para cima. Não há nada ali além de um teto de concreto, mas está tudo bem, porque eu sei que as notas podem atravessar paredes e alcançar as estrelas. Elas podem viajar pelo espaço e achá-la e ela vai saber que tudo que faço é para que ela me ame e me abrace quando eu encontrá-la no paraíso nem que Deus nos conceda apenas um segundo.
- Victor? - Clóvis chama ao entrar no quartinho.
Não nos falamos desde a discussão em que pedi para que se abrisse comigo e ele me deu as costas. Minha vontade é de ignorá-lo e pagar na mesma moeda, só que eu não sou um covarde como ele. Eu me viro e o encaro, fitando-o bem nos olhos.
Clóvis não se abala nem um pouco ou finge. Ele olha para o violino em minhas mãos e depois para mim.
- Essa música - ele diz -, a que você estava tocando... Era uma das favoritas da Elle. - Ele coloca as mãos no bolso da calça social e solta um pesado suspiro. - A letra fala sobre encontrar forças dentro de si. A Elle não sabia, mas ela tinha essa força.
Acho estranho ele falar assim da minha mãe tão de repente, mas aproveito a oportunidade. Não quero que ele pare agora.
- É mesmo?
- Sim, sua mãe era forte e corajosa. Por muito tempo eu não consegui enxergar assim, mas agora eu vejo. - Clóvis chega mais perto de mim e para bem à minha frente. - Eu pensei muito e hoje, quando ouvi você tocar essa música... Você tinha razão. Tem direito a saber das coisas e vou te contar se quiser mesmo ouvir.
- Você... Você tá falando sério? - Ele faz que sim com a cabeça. - Puta merda, é claro que eu quero. Quero muito! - Sinto-me um pouco infantil falando assim, mas estou tão empolgado com a possibilidade de conhecer um pouco mais da mulher que me deu a vida que nem me importo. - Quero saber tudo!
Ele assente lentamente com um sorrisinho no rosto. Encosto o violino na parede e trago a cadeira para que ele se sente e faço mesmo, sentando-me em uma das caixas.
- O que você quer saber? - ele me pergunta, cruzando o calcanhar esquerdo no joelho direito.
São tantas as coisas que desejo saber que não tenho ideia de por onde começar. Estou curioso para conhecer primeiro os pequenos detalhes, então pergunto a ele qual era a comida favorita dela, seus hobbies, suas músicas e filmes. Parecem coisas fúteis, mas, sei lá. Era minha mãe e para mim é importante.
- Não acho que ela tinha uma comida favorita. - Ele ri. Não é uma grande gargalhada nem nada do tipo, mas não deixa de ser um riso. - A Elle comia de tudo sem frescura. Sendo comida ela simplesmente se animava. Todo mundo dizia que ela era magra de ruim. - Eu sorrio e de alguma forma isso me faz lembrar da Clarice. Não que ela seja tão magra, mas aquela menina gosta de comer bem e eu curto que ela não tenha vergonha como algumas garotas têm. - Além de tocar violino, sua mãe era louca por Karaokês. Ela não tinha uma voz bonita, mas cantava com muita animação. Gostava de comédias românticas e ouvia qualquer música que para ela tivesse um significado bonito. Podia ser um rock ou até mesmo um pagode.
- Pagode? - Ele confirma e eu fico surpreso. Nunca imaginei que minha mãe fosse tão eclética. - Fala mais, Clóvis - peço.
Ele exibe uma expressão de quem está pensando no que dizer.
- Ela gostava de brincar com você aqui no quintal. - Ele me lança um olhar carinhoso. - Ela tirava fotos suas e dizia que precisava registrar cada momento, pois um dia você iria crescer e ela queria sempre lembrar da criança meiga que você era. Ela... Elle teria orgulho de quem você está se tornando.
Sinto um incômodo na garganta. Não tenho muita certeza sobre essa parte, mas tento não pensar sobre isso agora.
Ficamos algum tempo falando mais a respeito dela. Clóvis me conta algumas cenas engraçadas sobre o tempo em que os dois namoravam. Através da expressão dele percebo que ele a amou de verdade e talvez tenha sido isso que sempre tornou tão difícil fazer com que essa conversa acontecesse. Eu posso compreender, de verdade, mas ainda há coisas que preciso entender.
- Vocês pareciam um casal feliz - Noto no mesmo instante que o olhar nostálgico de Clóvis escurece.
- Eu e sua mãe tivemos bons momentos, Victor. - Ele concorda, mas algo em sua voz e em seu rosto me diz que não está sendo totalmente honesto comigo.
- Você amou ela até o fim?
- Amei até depois. - Ele nem hesita, mas ainda há aquela nuvem escurecendo sua face.
- Ela era toda sua vida como na dedicatória que fez para ela em Anna Karenina?
- Ela era toda minha vida, mas não fui eu que escrevi aquela dedicatória.
Fico confuso com essa declaração porque sempre pensei que meu pai havia escrito aquela frase.
Outro suspiro pesado escapa da garganta de Clóvis.
- Victor, o que eu vou te contar não é fácil pra mim e talvez faça você enxergar sua mãe de uma forma diferente, mas se você quer mesmo a verdade, eu posso te dar.
Tenho que admitir que isso me faz ficar apreensivo. Há apenas alguns segundos eu tinha certeza que queria toda a verdade, mas nesse instante já não sei.
- Tudo bem se você não estiver pronto agora, Victor. Podemos deixar essa conversa para depois - ele diz parecendo adivinhar meus pensamentos. - Prometo que eu responderei ao que você quiser. Não vou mais fugir.
- Obrigado, Clóvis - eu o agradeço.
Ele sorri para mim, se levanta e me abraça. Pela primeira vez, me sinto confortável com seu carinho e chego a conclusão de que ele pode estar certo. Talvez haja mesmo esperança para nós.
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*Hero, de Mariah Carey.
Oi, meus amores! O que acharam do capítulo de hoje? Será que agora o Clóvis e o Victor vão começar a se dar bem? E que segredos mais será que tem pra ser revelado? Deixem seus palpites!
Hoje a homenagem vai para a iamKalyn ❤
Quero agradecer a vocês pelos votos e comentários. Como vocês sabem, esse não é um livro que está pronto. Estou construindo ele junto com vocês, então quando vocês comentam e deixam suas opiniões, me ajudam a refletir sobre o que posso mudar e o que acrescentar. Vocês são meus "betas" antes de isso aqui ganhar asas para o mundo, então não me deixem passar vergonha no mundo cruel que é fora daqui hahaha! Sejam bem sinceros se estiveram achando o livro muito enrolado.
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