17 | Quase Doce
- Isso não é injusto? - Babi senta com metade do quadril na minha mesa.
- Hã? Do que estamos falando exatamente? - pergunto, cruzando meus braços por cima da mesa.
Bárbara gesticula com a revista que está em sua mão, que permanece dobrada em forma de tubo, indicando a sala cheia de alunos.
- Amanhã, quinta-feira, vai ser feriado, mas não vamos poder viajar, porque eles não vão emendar. A gente é obrigado a vir na sexta. Não é um saco? - Ela faz um barulho indignado.
- Fazer o que, Babi. Vida que segue. - Ergo meus ombros e rio da expressão de desgosto dela.
- Ah, dane-se... Escuta só - Bárbara mexe na ponta dos shorts saia do seu uniforme -, imagino que você tenha planos com o Victor amanhã, mas queria te pedir pra me encontrar à noite naquela lanchonete das superpanquecas que você gosta. - Ela busca meu olhar. - Queria conversar umas coisas com você que não dá pra falar aqui.
- Você tá bem? - Bárbara não parece estar passando por algum problema, mas ela não é de demonstrar muito quando alguma coisa está afetando a vida dela. Apesar de não escondermos nada (ou quase nada) uma da outra, ela é daquele tipo que quer ver todo mundo bem, então raramente fala do que a deixa triste.
- É, sim... Quer dizer... Algumas coisas andaram acontecendo, mas a gente fala disso depois, se der pra você ir, é claro.
- Vou estar lá - digo e seguro a mão dela.
- Valeu, Lilica. - Saltando da mesa, Bárbara fica de pé e abre a revista que estava segurando, colocando-a bem na minha frente.
Olho para a revista, que é uma edição de Nova Vitória, e depois para ela com uma expressão inquisidora.
- A entrevista dos Villela. - Bárbara puxa sua cadeira até meu lado e se senta. - Não vai abrir?
Mordo o lábio inferior, pensando se devo fazer isso.
- Eu prometi que não ia olhar...
- Tudo bem. - Bárbara se inclina e começa a folhear a revista. - Você prometeu, mas eu não prometi nada. - Ela ergue uma sobrancelha para mim.
Eu me sinto culpada, mas ao mesmo tempo estou tão curiosa. Acho que posso facilmente ignorar minha consciência se é para ver como ele ficou nas fotos.
A primeira imagem é da entrada da casa e estão ele e toda a família. Na descrição, o jornalista apresenta o pai de Victor como um dos empresários mais bem sucedidos do Brasil e explica um pouco sobre a empresa de equipamentos de segurança. Pelo menos é o que acho, porque só passo o olho pelo texto, estou mais interessada nas imagens. Bárbara passa para as próximas páginas que contém fotos dos outros membros até que me deparo com Victor segurando os irmãos pelos ombros e uma dele com Maia em seu colo. Os dois estão sorrindo um para o outro de uma forma tão genuína que me faz sorrir também. É a coisa mais fofa vê-los juntos.
- O que temos aqui? - ouvimos e, reconhecendo aquela voz, imediatamente Bárbara fecha a revista, mas não é rápida o suficiente, pois Victor a toma de suas mãos. Ele franze a testa ao ver a capa e cerra os olhos para mim.
- A revista é dela. - Aponto para a Bárbara ao me levantar. - Eu falei que tinha prometido, mas ela me forçou a ver.
- Ah, foi mesmo - Bárbara concorda, balançando a cabeça com veemência. - Eu prendi a Lilica na cadeira com o poder da minha mente. - Ela bate a ponta do dedo na lateral da cabeça e eu lanço um olhar feio para ela.
Victor continua com os olhos cerrados, então me aproximo e envolvo meus braços ao redor da sua cintura.
- Não briga com a gente.
Ele ergue uma sobrancelha e devolve a revista para Bárbara.
- Vou te perdoar dessa vez só porque eu te amo, garota - ele diz com um meio sorriso e me dá um beijo na testa.
Bárbara sorri para mim de um jeito cúmplice e sei que para ela também não passou despercebido o fato de ele ter dito que me ama, apesar de eu ter quase certeza de que ele sequer se deu conta do que falou. Mesmo assim, sorrio de volta e fico pensando naquilo um tempão.
*
- Você roubou, Victor! - eu o acuso ao ficar de pé. Cruzo os braços segurando o joystick em uma das mãos. - Não valeu. Quero uma revanche justa!
Ele joga a cabeça para trás e ri, depois faz um gesto negativo.
- Você não sabe mesmo perder, né?
Talvez eu seja apenas um pouquinho competitiva, mas não vou admitir isso em voz alta para ele.
- Se te consola - ele diz com um sorrisinho pedante - pra uma nerdzinha da poesia você até que jogou bem.
- Nerdzinha da poesia? - Aperto os olhos e o encaro com minha melhor expressão indignada. - Eu ainda vou te arrasar, garoto! É uma promessa - digo com ar de desafio.
Victor abre ainda mais seu sorriso ao olhar para mim como se estivesse apreciando muito minha reação. A língua umedece o céu da boca e ele morde o lábio inferior, passando a mão pelos cabelos e deixando-os bagunçados, o que faz com que ele só fique ainda mais lindo.
- Estou louco pra te ver me arrasar - ele diz com uma nota de sensualidade que me faz perder a pose.
Todos aqueles hormônios voltam a fervilhar dentro de mim quando ele se levanta da cama, tira o joystick da minha mão, jogando-o atrás dele e me agarra com força suficiente para arrancar um suspiro do fundo da minha garganta. Victor nem precisa encostar os lábios nos meus para me deixar delirante e, quando me beija, minha mente já não consegue mais formular um pensamento coerente.
Eu só quero passar o restante do feriado assim beijando esse garoto. Sinto-me sinceramente tentada a desmarcar com Bárbara, mas faz algum tempo que não saímos apenas eu e ela, além do fato de que quando me disse que queria conversar, senti que ela queria fazer mais que jogar conversa fora.
- Tenho que ir - me forço a dizer.
- Você não pode cancelar? - ele me pergunta sem me soltar.
Mexo a cabeça e me afasto do abraço dele.
- Não posso.
Pego minhas sapatilhas no chão e as calço. Procuro minha bolsa e sigo até o banheiro com ela. Não é nenhuma novidade que meu cabelo esteja um caos, então tiro a aliança quando vou passar creme neles, e depois de ajeitá-los uso um brilho nos lábios para realçar um pouco a cor deles.
Quando saio, Victor já está me esperando para me acompanhar até o ponto de ônibus.
- Não vai demorar pra eu mesmo poder te levar pra qualquer lugar.
- Eu gosto de andar de ônibus. - Victor me olha com a mesma cara que todos me olham quando digo isso, e sei que parece loucura, mas é verdade. Gosto do transporte quando está tranquilo e principalmente quando há lugar para me sentar, porque aproveito para ler durante o percurso e mal sinto o tempo passar.
- Me dá um toque quando chegar, pode ser?
Assinto.
- Prometo.
*
Estou na lanchonete, mas não há nem sinal de Bárbara por aqui. O local está lotado, e eu fico de pé, encostada ao balcão, esperando por um lugar vago para sentar. Para piorar a situação nem sei se ela está perto de chegar ou se vai se atrasar, porque não carreguei o celular o suficiente e agora ele está sem bateria. Não posso nem mesmo avisar Victor como prometi e agora ele vai ficar preocupado.
Meus pensamentos são interrompidos por um barulho desagradável que espero que só eu possa ouvir. Não estava com fome antes de chegar à lanchonete, mas meu apetite se abriu completamente com o cheiro maravilhoso das panquecas, dos bolinhos e café. Confiro quanto ainda tenho de dinheiro e decido pedir um cappuccino para viagem, apesar de ter a intenção de tomá-lo aqui dentro. Como há vários pedidos antes do meu, ele demora alguns bons minutos para ser preparado. Assim que fica pronto, pego o copo de plástico das mãos da atendente, abro a tampa e sopro o líquido para que esfrie um pouco. Meu olhar está grudado na porta de entrada. Embora tenha certeza de que não passou tanto tempo, estou começando a ficar impaciente e meio sem jeito. Sei que ninguém está olhando para mim, mas me sinto como uma garota que foi deixada plantada.
O movimento no salão é grande com garçonetes indo pra lá e pra cá. Cansada de olhar para um só lugar, observo uma delas passar por mim com um delicioso muffin de chocolate e entregá-lo numa mesa no canto da janela. O cara que está com um capuz cobrindo sua cabeça e parte do rosto, mas o tira, sorri e diz alguma coisa para a garçonete que a faz dar risada. Aperto meus olhos, porque acho que o estou reconhecendo. Quando a garota se afasta e ele se vira minimante para olhá-la percebo claramente que é Samuel.
É uma alegria ver alguém da escola. Posso ir até lá e conversar com ele enquanto espero.
Aproximo-me da mesa de Samuel.
- Oi - cumprimento timidamente.
O garoto ergue a cabeça e olha para mim. Por um momento seu rosto sério faz com que eu me arrependa de ter vindo, mas a sensação passa logo que ele abre um sorriso sincero para mim.
- Oi, Lilica. - Sua testa se enruga e discretamente seu olhar parece buscar outra pessoa. - Cadê seu guarda-costas?
Apesar da escolha de palavras, ele não usa tom de ironia ou deboche e sei que está brincando.
- Eu vim sozinha - explico. - Estou esperando a Babi, se é que ela vai aparecer. - Suspiro. - Fiquei sem bateria pra ligar.
Ele assente.
- Senta aí. - Samuel indica o lugar à sua frente com o queixo e eu nem penso em protestar já que não estou nem um pouco disposta a ficar aguardando minha amiga como se fosse um poste. - Posso te emprestar meu celular.
- A não ser que você tenha o número dela - digo enquanto me sento -, não vai adiantar. Eu não sei de cor. Acho que não sei nem sei o meu próprio número de cor. Só sei o telefone de casa porque temos aquele número há anos.
- Tem alguém na sua casa? Você pode ligar pra sua mãe e pedir pra ela falar com sua amiga, depois retornar no meu celular - ele sugere.
- Que ideia inteligente, Samuel!
Ele dá risada.
- Vou tentar não me sentir ofendido com seu tom de surpresa.
- Não, eu não quis insinuar que você era burro ou algo do tipo... - tento consertar, mas ele ri mais ainda e acaba me contagiando. - Para! - Arremesso a tampa do meu cappuccino nele, e Samuel a pega antes que o acerte.
- Desculpa. - Ainda rindo, ele chacoalha a cabeça fazendo algumas mechas do cabelo escuro cair sobre a testa. - Mas você é engraçadinha se enrolando toda.
Reviro os olhos.
- E então, vai querer ou não?
- Acho que vou esperar mais um pouco. Se ela não aparecer daqui a... Que horas são exatamente? - pergunto sem fazer a menor ideia.
Samuel confere em seu aparelho.
- Falta exatamente quinze para as sete.
- Às sete eu faço o que você me sugeriu se ela não aparecer. Por enquanto vou te fazer companhia.
- Eu deixo você ficar aqui - ele diz condescendente.
- Que gentil.
Nós dois sorrimos. Ele pega o muffin ao seu lado e me oferece antes de morder mais um pedaço, mas agradeço e faço que não como a cabeça. Ergo meu cappuccino e também ofereço a ele que rejeita educadamente. Levo o copo aos lábios e tomo um gole, mas o gosto está bastante amargo e não reprimo uma careta e uma reclamação. Esqueci totalmente de adoçá-lo e não disfarço.
- Sem açúcar. - Encolho os ombros. - Muito ruim.
- Nem deu pra notar. - Samuel brinca. Ele arrasta a cadeira para trás e se levanta. - Vou pegar alguns saches pra você. Quantos?
Faço cinco com os dedos e os olhos deles se estreitam ao mesmo tempo em que solta um assovio.
- Diabetes, lá vou eu!
Ignoro a provocação humorada. Enquanto espero, um guardanapo em cima da mesa chama minha atenção. Tomo a liberdade de deslizá-lo até mim e fico boba ao ver o desenho perfeito da lanchonete. A fachada, estrada e as árvores ao redor estão muito bem feitas. Cada linha e cada traço estão perfeitos, sem qualquer tremor ou curva que não seja da própria estrutura. Não é coisa simples, Samuel conseguiu captar os detalhes.
- Você é muito talentoso - digo quando ele volta me entregando os saches e uma colher de plástico
- Obrigado. Acho que vou fazer arquitetura - ele comenta.
- Você leva jeito, será um grande arquiteto.
Devolvo o desenho para ele. Samuel o pega e fica um tempo olhando para o guardanapo, então me encara e sorri.
- Se não der certo arquitetura, posso tentar ser um tatuador. - Ele se recosta nas costas da cadeira com as mãos entrelaçadas atrás da cabeça.
- É uma opção. - Adoço meu cappuccino com todos os cinco saches que pedi e misturo. O gosto está muito melhor agora e tomo um grande gole.
- Quer ser minha primeira cliente?
Pisco os olhos ligeiramente e passo a língua pelos lábios, encarando-o com um sorriso.
- Nem sonhando.
- Ah, qual é?! Não seja estraga prazeres. - Os lábios dele se erguem no cantinho e ele cruza os braços sobre a mesa. - Que tal uma tatuagem aqui e agora? - Ele pega a caneta da mesa e a chacoalha.
- Talvez seja uma boa ideia para passar o tempo.
Os olhos dele brilham cheios de empolgação.
- O que vai querer?
Dou de ombros.
- Me surpreenda.
Samuel pula da sua cadeira e se senta ao meu lado.
- Vai ser no braço.
- Ui, que mandão! - eu brinco.
- Você vai gostar. - Ele sorri, convencido.
Reviro os olhos, mas deixo que ele se divirta. Samuel começa a rabiscar. Aponta da caneta faz cócega e a tinta é fria. Minha pele se arrepia, mas a sensação é estranhamente agradável. Não sei o que ele está desenhando, mas Samuel parece bem concentrado e estou curiosa para descobrir o que vai sair da sua cabeça.
A coisa toda vai ganhando aspecto. Já consigo perceber pelos cabelos e formato do rosto que o desenho é de uma mulher. Em determinados momentos ele para e olha para mim e depois se inclina novamente para continuar.
- Não vai ficar perfeito - ele me avisa -, porque eu ia precisar estudar melhor os traços, mas acho que você vai gostar.
Com isso não demoro muito para perceber que o que ele está desenhando é meu rosto. Fico admirada, pois, apesar do que ele disse, está ficando sim muito parecida comigo.
- Uau! - Samuel não me encara, mas abre um sorriso. - Tá ficando incrível, Samuca.
Ele ri, então passa para a boca.
- Talvez eu te contrate para fazer uma de verdade.
- Sério? - dessa vez ele me fita.
- Hum... Não, mas estou sendo sincera quanto a estar mesmo ficando incrível.
Ele murmura alguma coisa que me faz rir e continua. Estamos os dois absortos até que um objeto rodopia em cima da mesa e rouba nossa atenção. Não entendo bem o que é até ele parar, então vejo que se trata de um anel. Pisco os olhos, confusa, mas sou desperta rapidamente desse torpor quando o Samuel se afasta e ouço uma voz dizer:
- Não vim atrapalhar.
Meu cérebro demora a assimilar que a pessoa que está falando é o Victor e tudo que processa é: Victor está aqui? Por que ele está aqui? Então olho para minha mão e me dou conta que ele veio para me devolver a aliança.
Minha boca fica seca. De repente percebo o que tudo isso parece aos olhos dele e me sinto como se tivesse sido pega fazendo algo muito, muito errado. Mais uma vez me coloquei nessa situação em que as coisas parecem ser o que não são.
Sem dizer mais nada, Victor sai. Meu peito arde com a falta de ar que toma conta dos meus pulmões e afasto Samuel, que se levanta para que eu possa passar. Victor já está fora da lanchonete, mas consigo correr para alcançá-lo. Pego seu braço, só que ele o puxa de volta e lança com sua voz cortante:
- Volta pra ele, Clarice.
Minha respiração entrecortada faz minha voz sair com dificuldade, mas consigo dizer:
- E a sua promessa?
Ele para no mesmo instante. Quando se volta para mim eu quase me encolho com a força do seu olhar.
- Você quer que eu diga como eu me sinto? - Ele balança a cabeça e olha para cima com os lábios apertados. - Como eu posso me sentir quando você me diz que vai encontrar sua amiga, então eu chego e vejo você com aquele cara? - Ele aponta para dentro da lanchonete. - Quando eu percebo que você nem sente falta se sai sem sua aliança e quando tento te ligar e você nem atende. - Os olhos dele estão cheios de mágoa e meu peito se comprime ainda mais. - Quando toda vez ele tá sempre perto demais.
Eu me pergunto como isso pode estar acontecendo. Há uma hora nós estávamos felizes e agora está tudo desmoronando por causa de um mal-entendido idiota.
- Me desculpa, Victor - peço, esperando que ele me escute de verdade. - Eu vim para ver a Bárbara, mas encontrei ele aqui e foi só isso. A gente só tava matando tempo.
- Parece conveniente. - A frase como é dita soa como se ele estivesse sugerindo que eu e Samuel tivéssemos arquitetado esse encontro. É como se todos nós não morássemos na mesma droga de cidade. Ele não está pensando direito.
- Você não confia em mim? - pergunto. A expressão dele se fecha mais ainda. Seus olhos se estreitam e ele trinca o maxilar. Por um segundo, meu coração para, mas então percebo que seu olhar está para além de mim e quando movo a cabeça para olhar para trás, eu vejo Samuel vindo em nossa direção.
- Que merda ele tá fazendo aqui? - Victor me pergunta com os dentes cerrados.
Fico ali parada, sem reação, os nós em minha garganta fechando-a. Mas antes que eu possa tomar alguma atitude, Samuel passa por mim e fala algo a respeito de estar esperar sua prima que é uma das garçonetes, só que Victor mal o escuta quando o empurra contra a parede e o prende com o braço em seu pescoço.
- Victor, não! - imploro, tocando seu braço.
Estou morrendo de medo que uma briga comece, porque é o que parece que está prestes a acontecer, mas então todos nós ouvimos uma voz longe me chamar.
- Clarice! - Bárbara acena alegremente para mim e à medida que vai se aproximando e se dá conta de que há algo errado, o sorriso dela morre e seu olhar se torna inquiridor. - Perdi alguma coisa?
_____________
Oi, pessoa! Avisei que ia ter treta, não avisei? E essa foi da punk. Será que a Lilica vai perdoar isso?
Saberemos em breve! Hahaha!
Obrigada pelos votos e comentários. ❤
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top