Parte 2 - O filme

Parte 2

O filme


Eram sete e trinta e dois da noite, trinta minutos depois do horário que Mônica jurava que estaria pronta, porém nem tudo era tão simples quanto ela havia imaginado.

Como um MacGyver dos tempos modernos, ela conseguiu criar um retroprojetor de objetos que ela tinha em sua casa, impressionada com as propriedades óticas do seu corpo vedado com água dentro. O único problema era que sua caixa de som era pequena e provavelmente não conseguiria propagar o som tão bem quanto a imagem, porém ela queria apenas estar satisfeita com o que havia conseguido e não pensar no que não havia.

Sete e trinta e três ela ligou a imagem com o som, projetando com algumas distorções, porém dando o efeito que ela tanto queria.

Mônica pegou um cobertor, arrumou uma pilha de travesseiros e almofadas ao seu redor, e ficou assistindo o filme da sua sacada, notando que pouco a pouco pessoas estavam brotando dos mais diversos lugares — inclusive de outros prédios — para apreciarem o filme. Ninguém parecia incomodado.

Ela sorriu apenas um pouco, esperando que todos se sentissem ao menos não tão sozinhos, pois havia mais de quarenta pessoas de diversos lugares assistindo exatamente a mesma coisa que ela.

— O som está baixo, não está? — ela ouviu ao seu lado, esticando a cabeça para frente, vendo que o rapaz do 404 estava inclinando seu corpo para perto da sacada dela, olhando-a com o cachorro que a encarava com a mesma intensidade.

Ele usava óculos de grau, um moletom da GAP, um jeans bem gasto e o cachorro estava enfiado no bolso canguru apenas com a cara para fora. Era um lulu da Pomerânia branco, por isso os seus latidos eram tão altos e estridentes.

— Minha caixa de som é pequena — ela deu de ombros, levantando-se, porém ainda enrolada no seu cobertor, apenas para olhá-lo.

O rapaz do 404 em sua mente era uma pessoa bem diferente, que tinha um cachorro maior, fazia crossfit e comia batata doce todo dia — pois ela ouvia os pulos e corridas dele, e sentia o cheiro da bendita batata com mais frequência do que ela gostaria —, ou seja, uma pessoa relativamente mais encorpada do que o rapaz que estava a sua frente, porém ele tinha um sorriso contagiante e isso valia mais do que muita coisa.

— Eu tenho uma caixa maior, quer usar? — ele ofereceu, mostrando uma grande caixa de som ao seu lado — posso passar o cabo pela sacada.

— Pode ser — ela concordou, indo até a sua cozinha, pegando suas luvas de limpeza e álcool gel, pronta para receber o objeto estranho em sua casa.

Ele jogou o cabo pela sacada duas vezes até que a garota conseguisse pegá-lo, então ela o limpou apenas por segurança, ligando em seu computador, emitindo um som dez vezes melhor do que a sua pobre caixinha poderia sonhar em tocar.

Vizinhos de todos os prédios aplaudiram aquilo, sem ao menos saber o que havia feito o som melhorar tanto.

— Obrigada — ela agradeceu, pegando o seu celular e mandando uma foto daquilo para sua mãe.

Imediatamente a senhora respondeu com vários corações, desejando-lhe um bom filme.

— Qual o filme de amanhã? — o 404 questionou, apoiado na grade da sacada, olhando dela para o filme que estava sendo projetado.

— Alguma sugestão? — ela sorriu, sentindo que aquela era a primeira interação pessoa-pessoa que ela tinha em mais de uma semana. Falar no telefone com a família e amigos, ou até mesmo uma vídeo-chamada, eram bons, porém estar frente a frente com alguém era algo insubstituível.

— Já que estamos nesta pegada dos clássicos, "O exterminador do Futuro"? — ele sugeriu e ela concordou, pois era realmente um filme muito bom e era garantido que a maior parte das pessoas iriam gostar.

— Tudo bem. Amanhã, mesmo horário? — ela envolveu ainda mais o seu cobertor contra o corpo.

— Combinado — ele enfiou as mãos no bolso do casaco, recebendo um rosnado do cachorro que não gostou de ter que dividir o seu espaço — Calada, Charlotte.

— Você chamou sua lulu de Charlotte? — Mônica indagou, rindo daquilo mais do que deveria.

— É da minha irmã, mas ela foi viajar e deixou a cachorra comigo, mas como ela também está presa no isolamento lá, eu cuido desse ratinho peludo por aqui — ele fez carinho na cabeça de Charlotte, que apenas fechou os olhos, apreciando o momento.

— Pelo menos você tem companhia né? Quase um pai de pet — ela virou o seu rosto par a tela, vendo a pequena Baby falhando miseravelmente em permanecer no ar em seu grande salto.

— Cuidando da criança que a vida escolheu por mim — ele respondeu, imitando-a — sabia que eu sei fazer isso daí?

— Isso o que? — a moça indagou, não olhando para ele, mas sabendo que ele estava falando com ela.

— Esse movimento — ele explicou sem se demorar no assunto — minha irmã é louca por este filme e nos inscreveu em uma competição de dança uns tempos atrás para dançarmos essa mesma coreografia — ele bufou e Mônica sentiu seus lábios se levantando — família é família.

— Isso é algo que algum dia eu gostaria de ver — ela inclinou o rosto na direção dele, ainda com o sorriso nos olhos.

O rapaz do 404 retirou Charlotte do seu bolso do casaco e a levantou no ar, e a cachorra, talvez por treino ou por instinto, esticou suas perninhas na horizontal, perfeitamente alinhada com a cena que era mostrada no prédio da frente.

Mônica começou a aplaudir, vendo que as pessoas seguiram o seu gesto, porém não exatamente aplaudindo a mesma coisa que ela.

— Como você não faz parte do Dança dos Famosos? — ela soltou o seu cobertor no chão, arrumando seu casaco de pelinhos pretos contra o seu corpo.

— Eu como dançarino, sou um ótimo dentista — ele respondeu, fazendo com que ela gargalhasse ainda mais.

— Eu odeio dentistas, tive que usar cinco anos de aparelho fixo e ainda uso contenção — a garota sentiu um arrepio na espinha, porém não soube ao certo se era de frio ou pelas lembranças daquela época das trevas.

— Normalmente não somos muito populares, mas pelo menos você tem um sorriso lindo hoje em dia — o rapaz acrescentou, colocando Charlotte novamente no bolso que era seu por direito, fazendo com que a moça ficasse sem palavras com o elogio inesperado.

— Obrigada — ela agradeceu, desviando os olhos dele para o filme — como está a quarentena?

— Férias forçadas, não é? O isolamento fechou meu consultório faz umas duas semanas — ele deu de ombros, ela pôde perceber pela sua visão periférica — mas outras pessoas com certeza estão em uma situação pior do que eu, então não posso reclamar. E você?

— Estou de férias opcionais, infelizmente, mas como eu trabalho com desenvolvimento de software, ficar em casa já é uma rotina que estou acostumada — ela trocou o peso de um pé para o outro.

— Eu não sei se eu conseguiria trabalhar em casa, acho que iria me enrolar demais até meu dia efetivamente começar — ele considerou, como se aquela ideia jamais tivesse passado pela sua cabeça.

— É normal, basta criar uma rotina. Eu, por exemplo, acordo cedo, faço yoga, preparo uma vitamina, tomo um bom banho, começo a trabalhar, almoço, volto a trabalhar e quando vejo já são onze da noite — a moça sorriu, pensando em como ela gostava daquela rotina, mas que também amava os dias que tinha que ir até o escritório para validar um código antes de apresentá-lo — se você tivesse que trabalhar em casa, qual seria sua rotina?

— Com certeza não teria yoga e nem trabalhar até as onze da noite — ele começou alfinetando-a de brincadeira — eu não me dou muito bem com exercícios físicos, então acho que iria apenas criar uma boa rotina de leitura. Atualmente eu tenho uns sete livros na estante que me julgam pela poeira que existe neles.

— Você não faz exercício? Mas eu te escuto todo dia pulando e correndo de um lado para o outro — ela franziu o cenho, observando o rapaz.

— Provavelmente você me flagrou em um momento correndo atrás da Charlotte por ter feito algo errado — ele coçou a sua nuca e a cachorra colocou a língua para fora, satisfeita com aquela história.

— Faz sentido — Mônica riu, sentindo uma brisa gelada tocar o seu rosto, fechando seus olhos para apreciá-la — por que não usa a quarentena para começar novas rotinas? Depois você vê se consegue encaixar no dia a dia.

— Pode ser — ele concordou — me fala um número de um a sete.

— Cinco — ela pensou no final do seu apartamento, 405, e lhe respondeu.

— Eu tenho seis livros técnicos para estudar para a pós-graduação e você conseguiu escolher o único que não era — ele estava de costas para ela, olhando para dentro do apartamento — acho que vou começar pelo "Nome do Vento", então.

— Esse é ótimo, se minha opinião vale de algo — ela retirou os fios que brincavam de se prenderem em seus cílios.

— Claro que vale, você é a garota que começou com os filmes na quarentena — ele apoiou seus cotovelos na grade e olhou para o filme, fazendo com que ela o imitasse, assistindo todas as danças e músicas e cenas que já não eram mais tão incríveis quanto as dos filmes de hoje, porém que eram clássicas.

Agora ela entendia o motivo de sua mãe gostar tanto daquele filme.

Quando acabou, todos gritaram, aplaudiram e comemoraram, trazendo um pouco mais de vida e cumplicidade àquele quarteirão de completos estranhos.

— Obrigada por hoje, foi uma ideia muito boa — o rapaz do 404 sorriu, mostrando aquela arcada dentária que somente um dentista poderia ter de tão perfeita.

— Amanhã seguimos com a programação — ela retirou o cabo do seu notebook e jogou de volta para ele.

— A propósito, meu nome é Eduardo — ele acenou, pois aquele era o melhor cumprimento que eles poderiam querer a uma sacada de distância um do outro — e essa daqui é a Charlotte, mas isso você já sabia.

— Meu nome é Mônica — a moça respondeu, acenando de volta.

— Eduardo e Mônica, então?

— Parece que sim — ela acenou mais uma vez — boa noite.


Notinha:

Eduardo e Mônica sim <3 Quem aqui gosta dessa música?

Vocês também ficariam conversando com o vizinho de vocês pela sacada?

Gostaram da escolha do filme do dia seguinte? Alguém aqui já assistiu Dirty Dancing ou O Exterminador do futuro?

Espero que estejam gostando!

Beijinhos

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top