A Mulher Ideal | Berilo Carvalho
O Autor:
Berilo é um autor fantástico, seu folhetim de comédia é excelente! Ele também anda por essas terras wattpadianas com um pseudônimo, mas não deixou que fosse revelado aqui. Recomendo que leia mais histórias dele como: "Quando ninguém vê (e outros contos)" e a trilogia "Desgraça pouca é bobagem". Em suas palavras, escolheu a música "Triste, Louca ou Má", da banda Francisco, el hombre, "pela sua mensagem feminista sobre empoderamento da mulher e resistência contra o lugar marginalizado e de suposta inferioridade a que a sociedade patriarcal quer reduzir tudo o que diz respeito ao feminino. Acho importante dar visibilidade aos oprimidos, para que juntos tenhamos forças para resistir e destruir paradigmas cruéis e injustos".
Seguem a capa e o conto:
– Vovó! O papai está matando a mamãe!
O coração de Dona Rita quase parou quando finalmente entendeu o que seu neto de oito anos lhe gritava, enquanto corria em direção à casa dela, agitando os braços feito um boneco-biruta de posto de gasolina.
– Valha-me, Cristo! – as pernas da velha senhora se envergaram ao peso daquela quase tragédia e a pobre caiu sentada no chão.
A valência foi que era noite e seus outros três filhos, com suas respectivas famílias já estavam todos em casa. Dona Rita juntou aos gritos do neto os seus próprios.
A família inteira, alvoroçada, pálida, confusa, acudiu, e todos, os homens armados de cabos de vassouras, ancinhos e punhos ansiosos, as mulheres, uma, com os bobes mal presos escorregando pelos cabelos, armada com seu secador profissional, outra, as mãos cheias de espuma da lavagem das louças, empunhando uma frigideira, e outra, a cunhada mais nova se esgoelando como se fosse ela a agredida, partiram em romaria para a casa de Janusa.
De fato, Deodato, semialcoolizado, perseguia a mulher pela casa, distribuindo coices e socos a esmo, acertassem onde acertassem, móveis, eletrodomésticos, os menos essenciais e mais ordinários, diga-se de passagem, ou na própria Janusa, que se encolhia e tentava num servilismo canino se esquivar dos golpes. Foi preciso os dois irmãos e o cunhado para segurá-lo.
Deodato nunca fora um manso. Gaúcho, caminhoneiro, beberrão, filho de peão de estância, sempre fizera questão de representar o estereótipo de macho dos pampas. Ainda no namoro fazia Janusa tremer de volúpia, ruborizar e morder o lábio inferior com declarações secas: "tenho ciúmes até de poste", ou "mulher minha trago é na rédea curta", ou "a guria que casar comigo vai saber o que é um macho de verdade". Suas carícias, violentas e fulminantes. Não raro, depois dos encontros dos dois, Janusa tinha que se empacotar toda, usar muitas vezes gola alta, mesmo no calor de rachar de agosto, para esconder os arroxeados e os vermelhões.
A primeira agressão física, no entanto, uma bofetada de deslocar maxilar, só aconteceu na noite de núpcias do casal.
– Quem usa isso é vagabunda! – referia-se ao baby doll, presente de despedida de solteira que duas amigas se cotizaram e compraram num sex shop. – Mulher minha não usa essa porcaria. – E dizendo isso, com três ou quatro puxões, despedaçou-lhe a lingerie e saiu, batendo a porta do quarto de hotel com estrondo e abandonando, no que era para ser a grande noite da vida da noiva virgem, uma Janusa em trapos, seminua, rosto latejante e começando a inchar, completamente estupefata, apática, deitada em posição fetal no meio do quarto.
Desde o anúncio do noivado, a família que nunca aceitara os modos rudes de Deodato, e se revoltava com o intuído ar de superioridade com que o rapaz supostamente se referia aos costumes nordestinos do pequeno clã, foi toda contra o casamento. Aconselharam, viram que não a demoviam, passaram às ameaças. Janusa, no entanto, cega de paixão, atrevida, refutava qualquer argumento. Tanto brigou, esperneou, fez birra, que a família acabou cedendo.
– Lavo minhas mãos! – a matriarca desistiu e depois vaticinou. – Agora escreva a palavra que vou lhe dizer agora: esse camarada vai fazer de você gato e sapato.
E aquelas palavras maternas, desprezadas no momento em que foram proferidas, dobraram feito os sinos da Matriz às seis horas da tarde na cabeça de Janusa, enquanto, no chão do quarto do hotel nupcial, tentava digerir a primeira violência do marido. E foi ali mesmo que decidiu: não contaria nada à família, principalmente à mãe.
Tinha mais pudor das surras que levava do que de qualquer outra coisa. Seria capaz de confessar um crime, se houvesse cometido algum, ou qualquer iniquidade por mais terrível; que apanhava mais do que massa de pizza, nunca. Orgulho? Teimosia? O fato é que escondeu até quando pôde os maus tratos do marido. Tarefa complicadíssima, impossível, a bem da verdade, já que o casal foi morar no lote da família da própria, numa casinha nos fundos, construída ainda durante o noivado.
– Não gosto disso de morar com a tua raça. Só venho porque é o jeito.
– O lote é grande. – argumentava frouxamente Janusa, receosa de dizer algo que desagradasse o gênio instável do marido.
Aliás, esse foi um dos hábitos que ela adquiriu com pouco tempo de vida conjugal, falar o mínimo, concordar, ou simplesmente calar (às vezes, até a aquiescência incondicional da esposa o irritava).
Quando os parentes começaram a perceber os hematomas constantes, estranharam, perguntaram já sabendo a resposta verdadeira, umas caras de Pilatos compungido. Começaram, então, as desculpas esfarrapadas, cada uma mais elaborada que a outra. Até a própria Janusa se surpreendia consigo mesma pela presença de espírito, nunca pensara ser capaz de mentir tão bem. Algumas vezes entrava em contradição, a criatividade era tanta, que chegava a contar duas ou três histórias para o mesmo machucado. Se percebiam, guardavam para si. Só a mãe, com sua peculiar e inocente indiscrição, foi que um dia não se conteve e explodiu:
– Fo ele, não foi, minha filha? Conte, pode contar.
– Ele quem, mamãe? Cada uma.
– Não há necessidade de você aguentar calada esse tipo de coisa, Janusa.
– Tenho culpa agora de ser distraída? Foi o cabo da vassoura e ponto final.
Mas a farsa, a mentira óbvia só foi mantida por todos os anos até a data fatídica em que todos flagraram os entendimentos incisivos do casal, porque, justiça seja feita, Deodato sempre soubera a hora de parar com as discussões acaloradas que costumava ter com a esposa, dois ou três bofetões estalados, desses que só deixam um vermelhão por algumas horas, um soco somente às quatro festas do ano e quase sempre na boca do estômago ou nos rins, beliscões de unha e de torcer apenas nas partes do corpo que poderiam ser cobertas por roupas. Só abusava mesmo dos cascudos com os nós dos dedos, porque, achava, das carícias, as mais íntimas, já que seus rastros sempre ficavam escondidos pelos cabelos abundantes da mulher. E todos aqueles arroubos, evidentemente, sempre longe da indiscrição e curiosidade alheias, somente na santa intimidade do casal.
Não há caráter, no entanto, por mais contido e racional, que um dia na vida não exploda, não perca as estribeiras. E o motivo, claro, mais que justo: vejam se tem cabimento a mulher do camarada fazer concurso e trabalhar fora! Muitos até poderiam dizer: mas o que é que tem, meu Deus? Tem que esse tal emprego não era um qualquer, um comum, em absoluto. Agente penitenciário, onde já se viu! Conviver com um bando de bagual, fazer academia de polícia, treinamento, defesa pessoal, lidar com arma de fogo, coisa de homem. Um absurdo! Nunca, mulher de homem com H maiúsculo, macho até depois de amanhã, não faz serviço de outro macho. Mas nem que a vaca da mãe dela tossisse. Ah, que saudade da Amélia! Estavam com problemas financeiros? Estavam. Os fretes do caminhão estavam escassos? Estavam. Não tinham dinheiro nem para os livros dos meninos? Não. Mas e daí? A mulher de verdade é aquela que "achava bonito não ter o que comer". Se Janusa fosse outra, se fosse esposa leal, ciente do seu papel de mãe e dona de casa, não teria dado ouvidos aos descaminhos sugeridos pelas irmãs, aquelas japiracas que pintavam e bordavam com os abichornados dos maridos, teria jogado no lixo o comprovante da inscrição e as apostilas que elas lhe deram e voltado satisfeita para o serviço original da mulher, cuidar da casa e dos filhos, que pôr comida dentro de casa ficou para o homem. Mas não, estudou, fez o tal concurso e ainda teve a desfaçatez de passar.
A princípio Deodato não deu importância à história, aquele foi seu erro. Quando Janusa veio como quem não quer nada mostrar as apostilas e falar sobre o concurso e a renda a mais, caso passasse, que poderia ajudar e muito na despesa da casa e da família, ele gargalhou na cara dela. Onde que uma burra de pai e mãe, uma atoleimada daquela, passaria em algum concurso? Nunca! Para ele aquilo fora a piada do ano! Nem chegou a se importar de ela fazer a prova, na verdade nem viu quando ela saiu de casa para isso, era um domingo pela manhã e nesse dia, como de costume, ele acordou já depois do meio-dia e o café já estava na mesa e o almoço, no fogão, não deu nem pela ausência da mulher. E devido a essa sua displicência o pior aconteceu: Janusa passou e bem classificada. O queixo do gaúcho bateu no plexo solar. Lutou para se recompor e não dar o braço a torcer. Procurou desesperado algo a que se agarrar. Achou. Nem ficou no número de vagas! Foi classificada, sim e daí? O edital é claro, tantas vagas e pronto. Deixa de ser chucra, mulher. Fica se iludindo à toa. Teu lugar é aqui na cozinha. Cadastro de Reserva! Mas é muito monga. Criatura, eles chamam mal o número de vagas e só porque são obrigados, vão chamar cadastro de reserva. Acorda!
Nem seis meses depois, chegava em casa o telegrama convocando para se apresentar no órgão e providenciar a documentação e os exames médicos admissionais. Janusa foi toda se tremendo contar a novidade primeiro à irmã (Deodato andava por certo na sinuca).
– Que será o quê, Janusa? Bebeu, está de porre? Olhe, minha irmã, você não é nem besta de deixar essa chance de ouro escapar. Vai ganhar mais do que o dobro do que aquele cavalo bota dentro de casa com os bicos dele, e, olhe lá, no mês em que o traste faz mais. E não vem defender, não! Cavalo, sim! Não, nem mas, nem meio mas, Janusa, você não tem nem o que pensar. Não é porque a vovó quis te consagrar à santa te batizando por Maria das Dores que você tem que levar o nome a sério! Na certidão, você é Janusa, mulher, minha irmã, e eu não tenho parente besta, nem louco. Seus dias de martírio acabaram, me'rmã, põe isso na sua cabeça.
Janusa pôs, mas só superficialmente, porque na verdade, já tinha a cabeça e o corpo lotados era do mais profundo pavor da reação do marido. E não só isso, pavor também do novo emprego, pavor de se atrasar para o trabalho, porque certamente não poderia sair de casa antes de Deodato e muito menos antes de deixar tudo em ordem, os meninos na escola, teria que acordar ainda madrugada escura, e se perdesse a hora um dia? E se chegasse do trabalho tarde, e se não tivesse tempo de preparar o jantar do marido? E como iria conservar a casa limpa. Só se não dormisse mais. Será que uma pessoa poderia passar quanto tempo sem dormir?
E foi nessa disposição de espírito que ela esperou o marido, indo de um lado para outro, entrando num cômodo após outro, ajeitando ali, arrumando dali, correndo quase tão rápido quanto seu raciocínio tortuoso e perturbado. Quando ouviu a porta da frente abrir abruptamente, teve uma ligeira vertigem. Trazendo o mate trêmulo do marido, anunciou num grunhido a convocação. Alguns minutos depois, o primogênito do casal espocava pela porta dos fundos da casa, gritando por socorro, enquanto o caçula se encolhia na cama, quase sufocando, a cabeça enterrada de baixo do travesseiro.
Sossegados os ânimos do revoltado pela frigideira pesada da irmã, Janusa, já fora de perigo, desesperou-se ao ver o marido escangotado na poltrona, um galo pulsando imponente e intumescido na testa, e quis crescer contra a própria a família:
– O que vocês fizeram com meu marido? Ai, meu Deus! – e chorosa correu para Deodato, atirando-se sobre ele, cobrindo-lhe de beijos o rosto flácido e gemedor. – Ô, meu benzinho, volte pra mim! Acorde, coração. Olha, escuta, eu não vou atender a convocação, não, filhinho. Vou ficar mesmo em casa cuidando...
– Como é que é? – um dos irmãos pulou longe.
– Mas é muita falta de vergonha. – a irmão enojou-se, acabou perdendo as estribeiras, agarrou a irmão pelo braço e cuspiu a ameaça por entre os dentes. – Escut'aqui, sua burra, se você jogar fora essa chance de ouro que lhe caiu do céu, vai apanhar muito nessa cara sonsa, e não é só do cavalo do teu marido, não. É de mim também. Todo dia eu te garanto uma surra, sua égua. Se gosta de apanhar, agora não vai ter do que se queixar. É bom que o dinheiro da academia eu já economizo, vou malhar nessa tua cara sem-vergonha.
– E eu ajudo. – aterrorizou um dos irmãos, enquanto massageava o punho que torcera enquanto tentava imobilizar o cunhado.
– Ninguém vai bater em ninguém aqui, não. – rugiu às costas de todos Dona Rita.
Janusa olhou para a mãe, agradecida e emocionada. Antes, porém, que dissesse algo, a senhora completou o raciocínio.
– Não vão bater, porque, minha filha, se você não for amanhã bem cedo atender a convocação desse concurso, você e sua família podem começar de já a preparar a mudança, que no mais tardar depois de amanhã quero essa casa desocupada.
Janusa sentiu o estômago descer para a panturrilha.
– Mamãe? – por um instante duvidou de que aquela senhora tão parecida com sua progenitora era a própria.
– O que meu coração e minha idade não me deixam mais é ver minha filha se desgraçando por esse homem. Se você não quer ser ajudar, Janusa, nem quer ajuda, suma da minha frente, me poupe ao menos do desgosto de testemunhar seu calvário.
Nesse momento, Deodato começou a gemer:
– Ai, minha prenda, ai, Janusinha, minha cabeça está para explodir. Ai, ai, ai!
Janusa correu para acudir o sofredor.
No outro dia, Janusa saía bem cedo de casa, no seu melhor vestido, e meio que em transe. Depois de se entender com o marido, coitado, que entre o orgulho de macho e a desonra de virar um sem-teto, foi obrigado a rever seu posicionamento e ceder, limitando-se apenas a uns catiripapos na traidora antes do café da manhã, e dois ou três cascudos depois do chimarrão, e a acusação magoada repetida várias vezes: A culpa é tua! A culpa é tua!
Quando soube da batelada de exames médicos a que a esposa deveria se submeter, Deodato até pensou em acalentar a louca esperança de que a mulher tivesse algum defeito congênito, além do de ser mulher, que a impedisse de assumir, mas logo desistiu de se enganar, estava pessimista. A mulher tinha mais saúde que um maludo premiado.
Não demorou para começar o curso na Academia. No começo Deodato, hermético no seu rancor e indignação, não percebeu nada, mas aos poucos foi reparando de rabo de olho na mulher. Cada dia que ela voltava para casa depois de um dia estafante de treinamento, apesar do cansaço natural, havia algo sutilmente diferente nela, não sabia o quê, uma certa vivacidade talvez. O diabo é que por mais reparasse não conseguia definir o quê. Seria só impressão, desconfiança natural de macho? Aparentemente ela parecia a mesma, recebia as pancadas e os gritos e baixava a cabeça como antes, mas sentia que havia algo errado naquela subserviência, como se não fosse mais natural como antes, mas fingida. Devia estar ficando louco. Não, não! Não seria um empreguinho qualquer, umas aulinhas de defesa pessoal, um porte de arma, duas ou três noçõezinhas de direito que lhe diminuiria a autoridade de homem da casa. Nada poderia mudar o fato de que ela continuaria sendo fêmea, e ele um macho!
O curso de formação de Janusa estava nas vésperas de acabar quando as tais inquietações de Deodato acabaram explodindo furiosas. E o período em que as demonstrações de afeto se mantiveram sovinamente controladas e limitadas a esporádicos safanões, beliscões rápidos e palavras de uma sinceridade áspera ditas em momentos de justa irritação, como: "deixa de ser burra, sua jumenta!", ou "traste, faz teu serviço direito e olha por onde anda", ou "está ficando velha, as carnes moles, desse jeito não tem pau que suba", tal período de amenidades não tinha mais como durar. Apesar dos esforços de santo de paciência exemplar em proteger a harmonia e o comedimento conjugal, há momentos em que nem Jó suportaria tanta imbecilidade. Como é que uma mulher, devidamente treinada e que já fazia o mesmo serviço há anos, tinha a incrível capacidade de errar o ponto de um simples chimarrão? É demais. Deodato, logicamente, não se segurou, cuspiu o chá amargo longe, pulou da cadeira de balanço predileta como se tivesse uma mola no lugar das nádegas, e partiu para cima da mulher, os olhos injetados de justificada fúria. Foi aí que o inusitado, o fantástico, o inverossímil, o surreal aconteceu: Janusa não recuou amedrontada, e, pior, ainda sustentou-lhe o olhar. Aquilo, obviamente, desconsertou-o, perdeu o tempo da surpresa, mas mesmo assim foi muito homem de levantar a mão para descê-la em exemplar bofetada, uma tão forte que, com sorte, poderia ser capaz de arrancar o siso que Janusa tanto temia extrair, sempre adiando a visita ao dentista. Novamente Janusa teve outra atitude que teve o condão de fazer Deodato duvidar se estava ou não sonhando: num movimento mais rápido e certeiro que bote de cascavel, ela aparou-lhe o golpe no ar com a mão esquerda, e, olhando bem fundo nos olhos dele, rugiu:
– Pode deixar, amor, eu preparo outro mate.
A surpresa esvaziou Deodato de si mesmo, o cérebro não conseguindo digerir o que acabara de acontecer. Foram suas pernas que o levaram a sentar novamente na cadeira de balanço, não que fosse de sua vontade voltar a sentar. Na verdade, sua vontade o havia momentaneamente abandonado, no olhar, só assombro e incompreensão da nova realidade. Ao balanço cadenciado, para frente, para trás, da cadeira, seu cérebro foi lutando contra o torpor inicial. Um clique lhe acendeu novamente os olhos. Fora desrespeitado, uma mulher o havia enfrentado, ousara peitá-lo, a ele, Deodato.
Seu impulso primeiro foi o de se levantar e voltar a pôr cincha naquela piguancha safada, mas Janusa já voltava da cozinha, e depois tudo aconteceu rápido demais. Toma seu mate. E uma chaleira de água fervendo foi derramada no colo do pobre do Deodato. A dor absurda, um ardor demoníaco nas partes, e a maior de todas as surpresas de seus quase quarentas anos o impulsionaram para trás, as molas da cadeira não resistiram e esta foi junto. Até quis se levantar de imediato, mas havia um peso inumano prendendo-lhe o peito e imobilizando-lhe os braços. Piscou diversas vezes, tentando firmar a vista e voltar a enxergar o mundo como era, porque o que via não podia ser real: Janusa sentada no seu peito, as coxas o manietando. A faca, esta ele não viu, só a sentiu, e como sentiu, já quase lhe furando a pele do pescoço.
– Nunca mais você levante a mão para mim. – A voz da esposa estava diferente, baixa, grave, arrastada, parecia possuída, creio em Deus Pai! – Você pode ser maior e mais forte que eu, mas eu te garanto que, da próxima vez que isso acontecer, um de nós vai para as grades e o outro, pro cemitério. Lembre-se de uma coisa: até o mais forte dos fortes, uma hora precisa dormir.
A pressão na faca aumentou, e Deodato sentiu a dor pontiaguda lhe romper a pele. Parou de respirar, já encomendando a alma, agarrado na "certeza" salvadora de que a humilhação de ser morto daquela forma tão aviltante e, pior, por uma mulher deveria lhe garantir um ótimo lugar no paraíso. Um momento só, que lhe pareceu eterno. Depois a pressão metálica na carótida desapareceu, quase que simultaneamente ao peso no peito, só lhe restando os ardores vis.
Janusa levantou-se de cima do marido com certa pena de o fazer, bem que poderia fazê-lo sofrer um pouquinho mais. Foi calmamente até a sala. Onde teria deixado a bolsa? Ah, achou! Dependurada atrás da estante. Tirou de lá o celular, foi para o terreno que separava (e unia) a sua das demais casas da família. A noite estava que era um dia, o luar se derramava pela escuridão, parecia quase uma presença física e cúmplice. Verificou se havia sinal e discou o número decorado.
– Oi, Agente Gomes, sou eu. Tudo! Nunca estive melhor em toda minha vida. Olha, estou te ligando para dizer que aceito seu convite para amanhã depois da academia. Sim. Sim. Podemos, claro. Podemos sair com o resto da turma, mas também podemos sair só nós dois. – Riso trêmulo. – Vamos para onde você quiser, qualquer lugar. – Tensão palpável. – Qualquer lugar.
Desligou, respirou fundo, enchendo o peito de vida nova, e voltou para casa. Solfejava uma música que ouvira na rádio: "...um homem não te define. Sua casa não te define. Sua carne não te define. Você é seu próprio lar."
Os meninos, por certo, estavam com os primos. Melhor. Mais perto do quarto, o silêncio era quebrado por gemidos chorosos e sentidos. Abriu a porta e viu o marido nu, deitado, as pernas arreganhadas na direção do ventilador ligado no máximo.
– Vá logo tomar um banho, Deô, que quando acabar eu vou passar uma pomada aí que eu tenho, ótima para queimadura. Amanhã você vai estar bonzinho.
Sem dizer uma palavra, Deodato obedeceu... dócil.
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