A Coruja e o Tiê | Lucas N. Santana
O Autor
Lucas já está no Wattpad há muito tempo e tem várias obras publicadas na plataforma como: Um Lago, Ilhados, Sob as Árvores, Ilusões de Amor Puro, Contos de Sexta. Em suas palavras, escolheu a música "The Owl and the Tanager", de Sufjan Stevens, porque "além de ser de meu cantor favorito, Sufjan Stevens, tem uma bela melodia e ser cantada por essa voz maravilhosa, a letra nos traz uma reflexão muito real e cruel. Em meio a belas metáforas e comparações de uma sutileza apaixonante, The Owl and The Tanager conta a história de um jovem vítima de homofobia, denunciando a terrível realidade de pessoas LGBT, que, por medo de rejeição e violência, são obrigados a esconderem quem são. Também mostra o lado de pessoas que, exaustas de tanta opressão, acabam virando o próprio opressor. O índice de depressão e suicídio entre jovens LGBT é altíssimo. Nessa história, os jovens não tiveram ajuda e agiram tarde demais. Esse é um tema que deve ser explorado e debatido (incluindo na literatura), para que um dia essas histórias tristes sejam apenas ficção".
Sem mais delongas...
A vida de Davi nos últimos meses (ou anos?) resumia-se em esperar. Esperava no carro, em casa, atrás da porta, sentado no escuro, na poltrona em frente à televisão que não era ligada há sabe-se lá quanto tempo, sentado na cadeira da cozinha com um prato de comida à mesa no qual ele não tinha coragem, nem forças, de tocar, sentado no chão do banheiro, com a água do chuveiro misturando-se às suas lágrimas que desciam como cachoeira, esperava deitado da cama, sem conseguir dormir com aquele espaço vazio ao seu lado. A cama estava grande demais. Esperava no silêncio aterrador daquela casa, o silêncio que doía no fundo de sua alma, e tinha vontade de arrancar seus ouvidos, arrancar a cabeça e jogá-la no meio da rua para ser carregada por um caminhão de lixo.
Davi esperava, tinha esperanças, de que as coisas iam melhorar, de que a espera valeria a pena, de que pararia de tremer, e que aquela pressão que parecia estar transformando-o em um diamante apodrecido iria se dissipar. Por sete horas, sete dias ou sete meses – nunca se sabe nessas situações, – viveu numa jaula, sem noção de tempo ou espaço, sem forças para viver, sem forças para morrer. Por sete horas considerou a morte, lembrando daqueles gritos. Seu moleque, seu moleque, aquelas palavras reverberavam em sua cabeça como um mantra do inferno, não conseguia esquecer, não o deixavam esquecer. Lembrava daquela voz rouca e grave, ameaçadora, gritando-lhe na cara, aquele dedo grosso e enrugado apontado para si, como uma arma, a arma da moral, dos bons costumes, uma arma branca e heteronormativa, que em vez de furar o corpo, furava a alma. Davi escutava os tiros, em sua memória, aqueles tiros que soavam como seu moleque, seu moleque. Uma voz que jamais sairia de seus pesadelos.
Era a voz do pai de Anderson. Anderson, aquele que o traiu, que o humilhou. Anderson, como pôde fazer isso comigo? Davi pensava, enquanto choramingava com aquele dedo apontado na sua cara. Seu moleque, meu filho não é veado, o pai de Anderson gritava. E Anderson, onde estava você? Todo mundo estava ali, a escola toda, menos Anderson, Anderson sumira. Havia apenas seu pai, que havia descoberto tudo, que havia culpado Davi por tudo, gritando naquele corredor cheio de olhares curiosos e câmeras apontadas para seu rosto deformado de horror, chamando-lhe de depravado, pecador, aberração, destruidor de famílias, que havia corrompido seu filho, Anderson, onde estava você? Davi não era culpado de nada, não havia corrompido ninguém, não forçara Anderson a fazer nada, fizeram tudo aquilo juntos, era amor, ou pelo menos era o que Davi achava. Então Davi correu, sem ninguém para protegê-lo ou defendê-lo, correu como um pássaro indefeso, fugindo de seus predadores, as corujas com seus olhos afiados, atraídos por suas cores chamativas. Atravessou o corredor, cortando caminho entre a multidão, seu moleque, seu moleque, ouvia atrás de si, ouvia os risos, ouvia as batidas de asa da coruja, saiu pelo pátio da escola, correu pelo gramado, terminou com a mão cortada em seu banheiro, por acidente, ou não.
Davi descobriu que foi traído por Anderson, que espalhou mentiras para não ser trancafiado naquela jaula, como Davi. Cortou-se de novo enquanto corria naquele gramado, procurando aquele pássaro maligno que se escondia nas árvores, disfarçando suas cores vibrantes entre as flores. Vasculhou a internet, aquele lugar onde tudo descobrimos, e ficou sabendo que naquela noite haveria uma festa para a qual todos da escola foram convidados, exceto ele, é claro, que nem para a escola estava indo mais. Foi sem ser convidado, caminhando entre as corujas sem pensar, sem hesitar, sem se incomodar com os risos e xingamentos. Ei, moleque. Encontrou Anderson no meio da sala, que mais parecia uma floresta, cercado por meninas, bebidas e corujas.
Davi não falou nada, não o cumprimentou, não disse oi, não perguntou onde ele estava aquele tempo todo, não questionou o motivo daquela traição, não perguntou porque ele estava disfarçado de coruja, não, em vez disso Davi deu-lhe um soco. Bateu-lhe no ouvido, no rosto, na cabeça, enquanto Anderson apenas ria, gargalhava, ria da sua cara, da sua histeria, loucura. Quem já viu, um pequeno tiê caçando uma coruja? Anderson ria daquele absurdo, como se também não fosse um tiê de cores berrantes, e Davi apenas se enfurecia, socando-lhe a face, arrancando-lhe sangue.
Davi tremia com a efusão de adrenalina, a euforia da matança, da caça, sentia-se uma coruja enquanto massacrava aquele pássaro maligno. Eu dormi em seus braços, Davi gritava, com voz de coruja, Eu dormi nos seus braços, seu pássaro maligno, gritava, enquanto Anderson ria, as corujas ao redor riam, piavam, Dormimos juntos em meu quarto! Seu moleque, seu moleque!
Davi não conseguia acreditar como Anderson o havia abandonado daquele jeito. Como ele ria dele, junto com as outras corujas. Foi seu primeiro amor, seu primeiro homem, nele encontrou aceitação e compreensão, coisas que ele não conhecia antes. E Anderson fugiu, deixou-lhe ser pego por aqueles caçadores, deixou-lhe ser trancado dentro daquela gaiola solitária. Anderson fugiu, com medo, covarde, fingiu ser uma coruja para não ser pego naquela gaiola. Davi sentia-se a chaminé mais solitária da casa, expelindo apenas fuligem. Sentia-se abandonado, engaiolado, odiava-se por amar aquele pássaro maligno e afundava-se na solidão, sem ninguém para ouvir o seu canto. Continuou sangrando mesmo com todo aquele amor por ele, sua alma cada dia mais machucada pela rejeição e abandono.
Depois de um tempo que Davi não era capaz de medir, sete dias, sete meses, sete anos, sete séculos, não se sabe, ele contava as cicatrizes em sua pele, sua respiração abafada ainda naquela gaiola que parecia cada vez menor. Imaginava Anderson aparecendo do lado de fora, tocando-lhe por entre as barras de ferro, seu toque gentil e suave, sua mão por baixo de sua camisa, aquele abraço quente que Davi tanto sentia falta. Mas agora Anderson era um predador, e ele era uma presa, uma presa feia, a presa mais feia, suas penas coloridas perderam as cores, seu pequeno corpo coberto de cicatrizes que o deformavam. Davi sentia vergonha, de si mesmo, de seu corpo, sentia-se uma presa tão feia que não merecia se predada por aquela coruja.
Você falou que esperaria por mim. E eu esperaria por você. Davi lembrava das palavras que trocaram por debaixo dos lençóis, enrolados naquele pano que seria banhado de vermelho. Escondiam-se, cometeram crimes naquele quarto, debaixo daquele cobertor, beijaram-se e se amaram em segredo, um amor que jamais seria aceito. Teriam que esperar, esperar a hora certa, teriam que esperar sair da escola, sair da casa dos pais, teriam que esperar serem pássaros livres para se beijarem debaixo de uma árvore, para caminharem de mãos dadas sob o sol, um esperaria o outro, mas o pai de Anderson descobriu tudo antes que suas asas crescessem, e Anderson o traiu. Disse que a culpa toda era de Davi. E Anderson virou uma coruja. E Davi foi engaiolado.
Esperaram demais, deveriam ter fugido enquanto podiam. Agora era tarde, suas asas atrofiaram naquela gaiola minúscula. Mesmo se lhe abrissem a porta, se quebrassem aquele cadeado, as suas asas não podiam mais voar.
A coruja e o tiê esperaram demais. Esperaram a hora certa que nunca chegaria.
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