|03| Quando Os Mortais Fazem Planos, Os Deuses Riem
O cantar das cigarras acompanhava a caminhada de Thera e Rogur. Vários metros mais atrás, o avanço ritmado de um quadrúpede levava a mulher-coiote a espreitar sobre o ombro amiúde, em busca da pelagem sarapintada que tinha avistado horas antes.
Desde que entrou nos arredores da cidade que Anisa mantinha uma distância respeitosa, provavelmente confusa quanto à forma como via Thera. Não era um predador a que devesse estar atenta, tão pouco uma presa para saciar a fome. Mesmo sem o Juramento de Trim que as uniria num Matrimónio de Almas, Anisa deveria estar a sentir a atração que partilhava com Thera. E isso, com certeza, deveria ser bastante perturbador para uma criatura privada da sua racionalidade.
Da Sa'y, nem sinal. A jovem só esperava que a ausência da mulher-veado tivesse uma boa justificação.
Rogur, o texugo ao cuidado do seu pai, estacou numa ruela ao sentir a presença de um predador adiante. Thera pegou no animal ao colo e movimentou-se pela cidade em direção à residência Real, evitando qualquer encontro com beastkins das redondezas. Apesar de haver outros mestiços na cidade a controlar os predadores, todo o cuidado era pouco.
Depois da fuga de Sa'y naquela noite caótica, Thera saiu à rua para descobrir que os únicos beastkin incólumes eram aqueles que, assim como ela, não tinham sangue puro. Em conjunto com os outros mestiços, a jovem tinha-se encarregado de evitar a carnificina — carnívoros a restringir carnívoros e herbívoros a manter os outros herbívoros a salvo através de fugas planeadas — e de procurar uma forma de reverter a situação. Sendo o seu pai um elfo da noite bastante vivido e sábio, Thera tomou como iniciativa usá-lo como seu ponto de partida.
Juntos, tinham chegado à conclusão que aquilo poderia ser o resultado de um "último desejo", dado que Amarindra tinha falecido não muitas horas antes de tudo acontecer.
Segundo os elfos da noite, guardiães dos segredos do pós vida, era necessário cumprir algumas condições para conseguir roubar o último desejo de um moribundo. Primeiro, a criatura às portas da morte não podia ter um desejo que quisesse ver satisfeito antes de abandonar o mundo dos vivos, ou então o desejo atendido seria o do falecido. Depois, o ladrão do desejo tinha de estar junto do leito de morte e em contacto com o moribundo. Por fim, o desejo ou a prece deveriam ser proferidos em voz alta, no exato momento em que aquele que estivesse a morrer soltasse o seu último suspiro.
Apesar de ter sido testemunha do momento, a jovem não tinha ideia de quem poderia ter roubado o último desejo, se aquela situação fosse realmente o resultado de um daqueles furtos. Ruari e um quarteto de curandeiros estavam a tocar no corpo da Rainha, as suas vozes a preencher a sala com palavras que ela não se recordava, antes do falecimento ser anunciado. No meio de toda a comoção, talvez nem tivesse havido oportunidade de pedir algum último desejo. Mas mais valia acautelar e tentar encontrar uma solução em vão do que esperar uma mudança que nunca viria.
Se fosse realmente obra de um último desejo, apenas alguém com sangue dos elfos da noite conseguiria comunicar com os Deuses por intermédio do finado. E dado o elitismo élfico, ela era provavelmente das únicas beastkin que reunia as condições necessárias de vontade e possibilidade, o que fazia de si uma das raras candidatas a reverter os efeitos do desejo hipotético.
Por muito custoso que lhe fosse anular um desejo alheio, talvez fosse a única maneira de curar a sua raça e recuperar as suas companheiras. E por elas, Thera fazia tudo.
Já dentro da residência Real, Rogur cumpriu o seu propósito e assinalou o lugar com maior condensação de energia espiritual, junto do túmulo da defunta, para Thera construir o altar necessário. A estrutura simples ganhou forma em alguns minutos, erguida segundo as instruções que o pai tinha descoberto n'As Crónicas das Noites Eternas. Depois, foi ainda necessário arriscar incorrer na fúria póstuma da sua antiga monarca, ao violar o lugar do seu repouso eterno, para recuperar uma escama do seu cadáver. A ligação à sua alma não seria possível sem algo corpóreo, que lhe tivesse pertencido em vida, a servir de âncora.
Com as velas acesas, o altar a beber poder da luz da lua cheia e a escama no cadinho negro, Thera recitou o encantamento que tinha decorado para a ocasião. Uma nuvem negra envolveu-a e, por instantes, não conseguia ver nada à sua volta. Depois, como se tivessem acendido um archote, um clarão começou a tomar forma à sua frente.
Thera ajoelhou-se em silêncio quando reconheceu Amarindra. A mulher podia estar morta, mas tinha sido sua monarca até há pouco tempo.
— Estás aqui para desfazer o desejo pedido em meu nome — constatou o espírito de Amarindra depois de, aparentemente, ouvir o nada. — O desejo do Ruari de restabelecer a beastkin à sua antiga glória, como nos tempos em que as outras raças mágicas nos temiam.
Com um tremor, Thera recebeu não só a confirmação necessária para entender o caos que se tinha gerado como também a distorção do desejo que o originou. A beastkin era a raça mágica mais nova de todas, contando a partir do momento em que se antropomorfizou e ganhou racionalidade. Porém, era a mais antiga se se contasse com o surgimento das bestas que a antecederam. E a época em que outras raças mágicas povoavam o mundo mas a beastkin ainda estava entregue aos seus instintos tinha sido, na perspectiva divina, o pico da sua glória.
— Os Deuses estão dispostos a reverter o desejo. Porém, o preço para que tu, estando viva, anules um desejo póstumo, será alto. Sabendo isto, estás disposta a ouvir os termos?
Thera pensou nas companheiras e no Juramento de Trim que queriam fazer daí a algumas luas. Precisava de as ter de volta.
— Sim.
Amarindra ouviu de novo o nada antes de, numa voz pausada, repetir para a mulher-coiote as condições nas quais os Deuses estariam dispostos a reverter um desejo que tão misericordiosamente concederam.
— Estás de acordo com estas condições? Uma vez anulado o desejo, não haverá retorno possível — transmitiu o espírito.
A jovem sorriu brevemente, resignada. Por um lado, estava surpresa. Por outro, parecia ter acabado de ouvir as palavras que tinha imaginado nos últimos dias e contra as quais tinha pesado a sua motivação.
— Sim, estou.
A expressão de Amarindra não vacilou, como se fosse indiferente à decisão da jovem diplomata. Porém, antes de mergulhar no esquecimento, juntando-se às outras almas na Árvore da Criação, pronunciou-se uma última vez.
— Tola...
A nuvem negra que envolveu Thera dissipou-se depois de Amarindra se esfumar, trazendo-a de novo diante do altar. Incomodada pela claridade das velas à sua volta e pela súbita dor de cabeça, a jovem cobriu os olhos com as mãos, massajando as têmporas com as pontas dos dedos.
— Thera! — ouviu ao longe, uma infinidade de tempo depois.
A mulher-coiote, ainda ajoelhada, olhou sobre o ombro. Anisa vinha a correr na sua direção, a agitação dos cachos rebeldes e as feridas no peito a exigir mais atenção do seu olhar do que a nudez.
Vendo-a de volta a si, Thera sorriu e estendeu os braços na sua direção, pronta a acolhê-la. Os Deuses tinham cumprido a sua parte do acordo. As coisas tinham voltado ao normal.
Porém, foi o seu corpo inerte que foi amparado nos braços de canela de Anisa quando, para honrar a sua parte do acordo, Thera teve de deslizar para a inconsciência.
FIM (?)
1261 palavras
Total: 2998 palavras
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