Prólogo - Piloto Automático
ALLY
ENCAREI MEU PAI DO SOFÁ DA SALA DA nossa nova casa. Papai está na cozinha, cuidando do almoço. Seu olhar perdido mostra com clareza que ele não tem muita noção do que está fazendo. Como se estivesse no piloto automático.
E ele está, de fato. Nós dois estamos. Soltei um suspiro e voltei a olhar para dentro de casa. Minha nova casa. Ela é relativamente menor do que a antiga, porém, é de longe mais confortável e bonita.
Andei por ela. Apesar de já estar mobiliada e minhas roupas já estarem devidamente guardadas, ainda há algumas coisas banais empacotadas em caixas de papelão, empilhadas em um canto da sala.
Entrei no meu atual quarto. Como antigamente, ele ainda continua simples. A parede da janela é castanho claro e o resto creme. Tem uma escrivaninha, um pequeno guarda roupa, um linda janela e minha bicama, forrada com lençóis verde musgo. Há alguns quadrinhos, prateleiras com muitos livros, discos antigos e plantas penduradas. Meu quarto também tem uma porta que dá para um pequeno banheiro. Eu e meu pai concordamos em achar uma casa com dois banheiros para termos mais privacidade, já que nós dois sairemos de casa praticamente no mesmo horário.
Me preparei para tomar banho. Hoje é o primeiro dia na escola que consegui passar.
Antes de entrar no banheiro, escutei Ann, minha irmã mais nova, entrar no quarto.
—Allyzinha, condo eu vou pa escola?
Ela tem quatro anos e ficou muito chateada com a mudança. Ela teve alguns problemas em desenvolver sua fala já que não teve muita convivência com outros adultos, e eu nunca tive coragem de corrigi-la, algo que sei que é um erro. É muito difícil para uma criança entender essa situação toda, nem mesmo eu, com meus dezesseis anos, quase dezessete, sou capaz de entender algumas vezes.
—Ainda vai demorar um pouco, Ann. Precisa ser um pouquinho mais paciente. —disse, me ajoelhando na sua frente, enquanto passo carinhosamente as mãos pelas suas chiquinhas.
—Mas eu quelo ir! —fez birra.
—O que já conversamos sobre birra? —olhei feio pra ela, que baixou a cabeça e pediu desculpas— Se eu fosse você aproveitava o tempo que não precisa ir pra escola. É um saco. —falei a última frase susurrando, fazendo Ann dar um sorrisinho. Sorri com ela.
—A Teté vai fica comigo? —ela perguntou. Ester, carinhosamente apelidada de Teté por Ann, é uma amiga da família que, para nossa sorte, mora em Benkeler, minha nova cidade. Ela cuidará de Ann quando precisarmos.
—Vai sim. Pode ficar tranquila, você não vai ficar sozinha. E ainda está muito cedo, por que está acordada? —perguntei, lembrando que ainda nem são seis da manhã.
—Papai me acodou. Aço que ele sem queler se maçucou de novo, puque ele soltou um glito. —ela disse, inocentemente.
Suspirei. Não é a primeira vez que isso acontece. Meu pai as vezes fica com muita raiva de si mesmo e começa a quebrar as coisas. Antes Ann sentia medo, mas hoje em dia se tornou algo tão comum que ela simplesmente não liga.
—Acho que você poderia ir lá dar um abraço nele, hm? Ele ficaria muito feliz. —eu disse sorrindo fracamente.
Ela pensou um pouco e depois sorriu, concordando, e então saiu correndo atrás de papai. Assim que ela saiu, eu tirei o sorriso do rosto, sentindo dor no coração. Fui em direção ao banheiro, para finalmente tomar aquele banho que tanto queria.
Hoje o dia será longo.
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Dei o primeiro passo para entrar na escola. Certo, é bem maior do que esperava, ainda mais para uma cidade tão pequena quanto Benkeler.
Sair tão bruscamente de meu país, para outro completamente diferente, em uma cidade bem menor, não estava exatamente em meus planos de vida. Não que tivessem me restado muitos. Mas aqui estou. A um passo de um grande e novo colégio, que eu não faço ideia de como será.
Mal entrei e logo recebi vários olhares curiosos de uma vez só. Não aguentando a vergonha, abaixei os olhos.
Me senti em um daqueles momentos de filmes, em que todos os olhares estão sobre si, e estão rindo de você pois você está nu. Pelo menos estou vestida. Mas dei uma checada, só por precaução. As roupas estão no lugar.
Ajeitei meu casaco sentindo o vento gelado de setembro. Daqui a pouco o inverno chegará.
Continuei andando, ignorando os poucos olhares que me foram direcionados. Consegui, pelo menos, entrar na escola.
Olhei adiante, no corredor. Muitos alunos estão por aí conversando, e nem notaram minha chegada.
Bom, até agora, tudo certo.
Olhei para minha grade de horários.
Daqui a dez minutos tenho uma aula. Minha primeira aula. Aula de música.
Mas onde raios fica a sala de música?
Mordi os lábios, nervosa. Olhei ao redor e vi vários grupos de alunos já se reunindo.
Droga! Onde seria essa sala de música?
E, quando o sinal bateu, fiquei simplesmente encolhida em um canto próximo aos armários, vendo todos os alunos entrando em salas, e sem coragem de perguntar para algum deles onde fica a porcaria da sala de música.
E no meio desse processo em que vários alunos entram ao mesmo tempo, uma pessoa passa correndo por mim, me derrubando no chão.
—Ai! —eu e a pessoa que me derrubou dissemos ao mesmo tempo.
Olhei para o lado, vendo que quem me derrubou, acabou caindo também.
A menina de longos cabelos loiros ria da situação. Eu não resisti, e acabei rindo um pouco também.
—Eu sinto muito. —disse a menina, que se levantou e me ajudou a levantar também— Desculpa ter te derrubado assim. Eu sempre me atraso para a aula e entro correndo. Prazer, sou Rosemary, mas você pode e deve me chamar de Rose. Eu odeio meu nome.
—Rosa pura. —ela me olhou confusa enquanto dávamos um aperto de mãos— É um dos significados de seu nome: Rosa pura. É um lindo nome. —eu disse soltando sua mão. Ela me olhou com um brilho diferente nos olhos, como surpresa—Está tudo bem, não se preocupe. Me chamo Ally, é um prazer. O meu significa "nobre".
Ela sorriu me olhando. Por um segundo fiquei com medo dela ter me achado uma esquisita, mas ela me surpreendeu com um abraço.
—Obrigada. Você me fez gostar um pouco mais do meu nome. —eu não vi seu rosto, mas tenho certeza de que ela está sorrindo. Sorri também e a abracei.
—Esse foi o jeito mais estranho de conhecer uma pessoa que eu já presenciei em toda a minha vida. —rimos, nos afastando.
—Para mim também. Mas sinto uma coisa boa aqui. —ela disse pensativa, mas logo mudou de assunto—Precisa de ajuda? Parece perdida. Nunca vi seu rosto por aqui. Sabe, em Benkeler não é muito difícil você conhecer, tipo... Todo mundo. E eu não te conheço. Você é nova aqui, não é? Quer ajuda para encontrar sua sala? Qual é sua aula agora? —tagarelou. Não consegui encontrar brecha para falar, então só fui assentindo conforme ela falava.
—Ham... Música. —falei, com vergonha.
—Oh, que sorte! Meus amigos estudam lá. Vem, eu te levo. —então ela me puxou pela mão e começamos a caminhar. Há poucos alunos por aí—Então, levando em conta esse sotaque ma-ra-vilhoso posso garantir que você é britânica. —assim que assenti a vi sorrir— Que incrível! Depois me conte tudo sobre a Inglaterra. —ela tagarelou, mas parou de falar assim que paramos na frente de uma porta— É aqui. Boa aula! Me procura no intervalo. Beijos! —se despediu.
—Tchau, obrigada! —disse enquanto ela se afastava.
Com o coração palpitando bem rápido, abri a porta da sala.
Não demorou para que todos os olhares daquela sala fossem direcionados para mim.
—Olá, bom dia! A senhorita deve ser Ally Carter, a novidade da escola!
Me encolhi com a menção do meu nome para a turma toda, também pelo fato de ter sido chamada de "novidade".
—É um prazer. —disse baixo, estendendo minha mão. O professor de idade apertou com gosto.
—Pode se sentar. —ele disse com um sorriso largo.
As cadeiras estão formando um círculo mal feito pela sala, com alguns instrumentos espalhados por aí.
Os olhos da turma nunca saíram de mim.
—Então, Ally, de onde a senhorita veio? —o professor perguntou assim que me sentei, se aproximando.
Pigarreei.
—Londres.
Escutei um "tsc" e virei para o lado, vendo um menino ruivo revirar os olhos.
Arqueei as sobrancelhas com sua atitude. Qual é o problema com Londres?
—Nossa, de bem longe hein! —o professor disse com humor. Dei um sorriso mínimo pela sua animação— Você sabe tocar algum dos instrumentos que estão aqui? —ele perguntou.
Olhei ao redor da sala e assenti.
—Qual?
—Hm.. O violão, o ukulele... O teclado... —falei enquanto olhava os instrumentos— Acho que daqui só esses. Ah, a flauta também.
—Uau! —ele arregalou os olhos— Onde aprendeu a tocar tudo isso?
—Minha mãe e meu avô me ensinaram.
—Uau! Temos uma multi instrumentista aqui! —ele disse sorridente— Parabéns pelo talento senhorita Carter. Canta também?
Sorri minimamente de novo. Minha voz é terrível.
—Não. Só toco.
—Você formaria uma dupla perfeita com nosso melhor músico, Erick. —o professor apontou para um menino de cabelos loiros. Ele é lindo.
Ele me lançou um sorriso. Sorri timidamente de volta.
—É isso! Nossa aula de hoje será essa, turma! —o professor disse, batendo palmas animado— Aula em dupla. Um toca, outro canta. Vão, se juntem!
A turma começou a arrastar cadeiras. Fiquei perdida, sem saber para onde ir.
Tomei um susto com a movimentação ao meu lado.
Erick colocou sua carteira ao meu lado. Sorri timidamente.
—Oi. —ele disse com um sorriso simples.
—Oi.
—Prazer, Erick. —ele estendeu a mão.
—O melhor músico. —afirmei com humor, apertando sua mão— Sou Ally.
—A multi instrumentista. —ele devolveu com humor, soltando minha mão— O que você quer tocar?
Observei em volta.
—O ukulele. —disse, já tendo em mente o que tocar.
Ele se levantou e me deu o ukulele.
—O que quer que eu cante?
—Eu pensei em "La vie en rose". Conhece? —perguntei, ajustando o ukulele em meu colo.
—Só sei cantar em inglês, serve? —assenti— Adoro essa música. É romântica. Boa escolha.
Sorri. Mesmo que ele não faça ideia do real motivo de eu ter escolhido, é fofo da parte dele elogiar.
Tomei um susto quando uma carteira foi colocada bruscamente na minha frente, virada para mim.
O menino ruivo que revirou os olhos anteriormente me encarou de cima a baixo. Depois desviou o olhar, como se não valesse sua atenção.
—Fiquei sem dupla. —ele disse, com sua voz grossa, para Erick.
Erick revirou os olhos.
—Por que será. —ele disse ironicamente, me fazendo soltar um riso baixo— Você poderia ser um pouco mais educado.
Foi a vez do ruivo revirar os olhos.
—Estou fazendo dupla com a Ally agora. — Erick apontou para mim. O outro me olhou com as sobrancelhas franzidas— Só se formos um trio. Não vou largar ela.
Sorri internamente.
—Calma, cara. Tá ok.
—Se apresenta. —Érick pediu.
O garoto me olhou novamente, com desgosto.
—O'brian. —disse com desinteresse.
Erick deu um tapa no braço do amigo.
—Fala direito, Thomas! —repreendeu.
—Você não disse para eu me apresentar para a coisa inglesa aí? Então.
Quase pulei no pescoço dele.
Coisa inglesa. Foi como ele me chamou. Ele tem quantos anos, cinco?
Revirei os olhos.
—O nome dele é Thomas, Ally. Thomas O'brian. Ele pode ser um ogro assim, mas é um bom amigo. As vezes. —Érick disse.
—Hm. É um prazer. —eu disse, estendendo a mão com um sorriso curto e bem forçado no rosto. Thomas olhou para minha mão e deu um aperto frouxo e super rápido.
Reprimi a vergonha dentro de mim e recolhi minha mão.
Que cara mala.
—Não liga para ele. —Erick disse baixo, em meu ouvido. Assenti— Vamos tocar "La vie en rose", O'brian.
Thomas revirou os olhos, se recostando na cadeira.
Meu Deus, como tudo pode desagradar uma pessoa? O que tem de bonito tem de idiota.
Eu definitivamente não gosto dele.
Nem um pouco.
De qualquer maneira, o professor começou a pedir para que as duplas tocassem. Afinei o ukulele enquanto isso.
Na nossa vez, sorri com a melodia da música. Havia um tempo em que eu não tocava. E essa música mexe com todo o meu ser...
Thomas apenas ficou mexendo no celular e Erick cantou lindamente. Sua voz é suave e muito afinada.
O professor aplaudiu como todo o resto da turma ao acabarmos. Pela primeira vez, me senti capaz de fazer parte dessa cidade.
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Na hora da saída, Rose se despediu de mim.
No almoço conversamos um pouco e trocamos nossos números de telefone.
Ela me contou um pouco sobre a escola e sobre as pessoas.
—Te vejo amanhã! —ela se despediu com um abraço e foi embora. Vi Érick acenar para mim e eles começaram a caminhar juntos.
Não sabia que eram amigos.
Fui até a secretaria resolver as últimas pendências da minha transferência e depois fui em direção a minha casa. A escola está quase vazia.
No pátio, senti olhares em minhas costas. Quando me virei, tomei um susto ao ver Thomas me encarando de longe, fumando um cigarro.
Os olhos dele são perfurantes.
E, preciso admitir: ele é lindo de morrer.
É uma pena que sua grosseria tire todo seu encanto.
O dei as costas.
Fui para casa.
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