Capítulo 1 - Sotaque Britânico

PARTE UM
1

  ASSIM QUE CHEGUEI EM CASA, DEI DE cara com meu pai sentado no chão da sala. Ele está com Ann ao seu lado, eles brincam com algo que eu não sei exatamente o que é, talvez uma massinha. Eles me cumprimentaram mas não me deram muita atenção. Fico feliz que papai esteja se distraindo.

  Entrei no meu quarto com um suspiro cansado. Olhei para a janela, o céu já está escurecendo. A janela está levemente embaçada pelo frio. Tirei os sapatos do uniforme e me joguei na cama, com os braços abertos. Nesses momentos de silêncio eu paro para refletir sobre minha vida, e uma dor descomunal invade meu peito.

  Já consigo sentir minha garganta doendo e meus olhos ardendo. Os fechei com força. Respirei fundo, segurando as lágrimas que ameaçaram aparecer.

Seja forte. Não chore.

Por fim, me levantei da cama e fui direto para o banheiro.

Preciso de um banho.

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No almoço, Rose sentou-se comigo. Conversamos sobre coisas banais e descobrimos um pouco mais sobre nós mesmas. Temos muitos gostos em comum. Ela se mostrou grande fã de moda, me mostrou até alguns desenhos dela, que me surpreenderam. Ela realmente tem muito talento.

Elogiei bastante seu trabalho.

Rose olhou para um ponto fixo e começou a acenar. Olhei para o mesmo lugar que ela. Erick e Thomas saíram lado a lado da escola, entrando no pátio. Franzi o cenho. Por que ela está chamando eles?

Thomas revirou os olhos, mas de qualquer jeito, acompanhou Erick até nossa mesa.

—Erickzinho! —Erickzinho? Um pouco... Piegas. Será que ele que o namorado da Rose? Faria bastante sentido, afinal. Eu os vi saindo juntos da escola ontem— Não sei se você sabe, mas essa —passou o braço por cima dos meus ombros— é minha amiga Ally. Ally, esse é o Erick. E esse é o O'brian. —apontou para o Thomas, fazendo pouco caso.

—Também te amo. —Thomas falou debochado, mandando um beijo para Rose logo em seguida. Ela revirou os olhos.

—Já nos conhecemos. —Erick comentou— Ela faz aula de música conosco.

—Ah, verdade! Eu te levei na sala ontem. Quais instrumentos você toca? —Rose me perguntou.

—Alguns. —respondi, simplesmente.

—Ela toca vários instrumentos. —Erick disse. O olhei assustada— Inclusive, muito bem, pelo o que pude ver. —ele sorriu simpático, falando calmamente.

Ontem descobri que ele tem uma voz incrível.

Me pergunto como alguém tão compreensivo e paciente como Erick pode andar com alguém tão estourado quanto Thomas.

Eu o não os conheço muito bem, de qualquer forma.

—Ah, bom saber. Pena que você tem que dividir o ambiente com esse aí. —apontou para o ruivo, que mexe no celular. Esses insultos parecem bem bobos, não acho que realmente não se gostem.

—Acho que isso tudo é amor reprimido. —ele disse naturalmente, colocando as pernas em cima da mesa e inclinando um pouco a cadeira para trás.

—O quê? Nada disso, eu tenho namorado. —Rose disse— Erickzinho, ignora isso, por favor. —ela disse, olhando para Erick. Ele apenas deu de ombros.

Se eles namoram, o Thomas não tem vergonha de falar esse tipo de coisa na cara de pau mesmo?

—E você, Ally? —Rose começou— Não se interessou por ninguém daqui? Tem uns gatinhos na escola. —ela sorriu maliciosamente, me cutucando com o cotovelo.

—Na verdade, eu realmente não tenho tempo para isso. —eu disse, num tom calmo. Esse tipo de coisa não me deixa chateada, pelo contrário.

—Nossa, mas com o que você é tão ocupada assim que não pode nem dar uns beijos? —Rose perguntou.

—Coisas. —falei, desconfortável, para ver se ela entende que eu não quero falar sobre isso.

Mas ela não é o tipo de pessoa que entende palavras discretas, pelo o que estou vendo. Na verdade, o oposto disso, parece que é preciso ser bem direta com ela.

, mas que coisas? Que tipo de coisas? Você trabalha ou algo assim? —ela perguntou, distraidamente.

Erick me olhou e pareceu estar incomodado também.

—Rose, deixe-a. O que já conversamos sobre respeitar a privacidade das pessoas? —Erick disse em um tom suave, como se estivesse explicando boas maneiras para uma criança.

Ela pareceu se lembrar de algo.

Ai Erickzinho, isso é difícil para mim, eu sou fofoqueira! —ela falou, fazendo uma expressão chateada, como se estivesse lamentando— Desculpa Ally, não quero invadir sua privacidade. —ela disse, parecia até um texto decorado.

Ri um pouco, sem mostrar os dentes.

—Não tem importância. Na verdade eu tenho um irmã mais nova e preciso cuidar dela. —me contentei em dizer metade da história. Pelo menos assim ela não fica tão curiosa.

—Isso faz sentido. —ela sorriu, feliz em matar sua curiosidade. Apenas sorri minimamente para ela.

Thomas me encara em silêncio. Sua expressão não está debochada, apenas séria, como se quisesse descobrir algo. Me lembrei automaticamente de ontem, na saída. É o mesmo olhar. Não desviei dessa vez, apenas continuei o encarando. Minha mãe me ensinou que desviar o olhar é sinal de medo ou de que devemos algo.

Ficamos num jogo, parecia que queríamos ver quem iria desistir primeiro. Rose e Erick continuaram a conversa deles, não dando muita atenção para gente.

Thomas arqueou as sobrancelhas, vendo que eu não deixei de encará-lo. Ainda sem desviar o olhar, peguei minha caixinha de suco e tomei um gole.

Ele soltou uma risada.

—Você venceu. —ele susurrou para mim, levantando da mesa— Já volto. —falou para Erick, que concordou e continuou seu assunto com Rose, algo sobre coelhos, eu acho.

Observei suas costas largas enquanto ele calmamente se afasta, voltando para dentro do colégio. Ele parece estar tranquilo e relaxado hoje, diferente de ontem, que estava na defensiva.

Como se estivesse abstinência.

Será que ele é viciado em algo? Drogas, ou algo assim?

Ou talvez ele só estivesse num mau dia. Dei de ombros. Desde que não comece uma guerra entre nós, eu não ligo.

O sinal tocou, alertando o fim do nosso almoço. Agora serão mais cinco cansativas horas pela frente.

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Na aula de biologia, estou sentada ao lado de Jenny, uma garota muito divertida que conheci e se ofereceu para fazer dupla comigo. Nós estamos sentadas na mesa de madeira. Eu anoto algumas coisas enquanto ela estuda sobre sapos.

Olhei ao redor da sala, procurando Rose ou Erick, mas não os encontrei. Rose disse que também faz biologia. Ela deve fazer a aula avançada.

Continuamos nossas anotações até o fim da aula. Quando o professor passou pela nossa mesa, elogiou nosso trabalho. Eu e Jenny agradecemos, e ele nos liberou.

Deixamos nossos livros nos armários.

—Você é muito boa com as anotações, ficou bem rica em detalhes. —Jenny disse, fechando a porta do seu armário.

—Obrigada, você é igualmente boa nas pesquisas. Sendo sincera, sou muito distraída para isso.

Rimos um pouco e ela foi para sua aula, que é de teatro, enquanto segui para a minha de geografia avançada.

Entrei na sala junto com alguns outros alunos e me surpreendi ao ver Thomas. Sentei-me na cadeira que está na frente dele, no canto.

—Oi. —assim que sentei na mesa me virei para trás e o cumprimentei. Ele me olhou com as sobrancelhas arqueadas, mas não respondeu. Fiquei o encarando até que ele dissesse alguma coisa.

—Vai encher o saco de outra pessoa, coisa inglesa. —ele disse revirando os olhos, bufando de raiva.

Esse apelido de novo...

—Eu só disse "oi". —falei, como se fosse óbvio.

—E eu disse pra você encher o saco de outro. —ele arqueou uma sobrancelha.

—Pare de ser tão grosso! Eu só disse "oi" seu maluco.

—Para de ser chata garota, eu nem te conheço. —ele disse se levantando e mudando de lugar.

Mesmo que as palavras tenham me machucado, não disse nada, apenas dei de ombros. A culpa é minha, de qualquer jeito. Se ele não quer falar comigo, não posso insistir.

A aula começou e as vezes eu senti o olhar de Thomas em mim, mas quando eu me virava, ele parecia distraído, olhando para o chão com a caneta na boca.

Então, em um desses momentos, eu observei o pulso do Thomas, que estava escondido pela jaqueta de couro. Tem uma faixa, como se estivesse machucado.

O momento durou pouco, pois ele começou a anotar algo que está escrito no quadro, e a jaqueta novamente cobriu seu pulso enfaixado. Ele é canhoto.

Suspirei. Deveria simplesmente seguir seu conselho e parar de reparar nele.

Voltei a prestar atenção na aula.

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Faz uma semana desde que eu cheguei. Rose e eu nos aproximamos bastante. Descobri que ela é, na verdade, cunhada do Erick. Ultimamente nós três temos andado bastantes juntos por aqui pela escola. Rose não para de elogiar meu sotaque britânico. Isso nos traz boas gargalhadas.

Ficando próxima do Erick, consequentemente vi Thomas com mais frequência do que gostaria, já que eles são melhores amigos. Depois daquele dia, mal o olho nos olhos, por pura vergonha e um pouco de raiva, mesmo que a culpa seja minha, e por mais que não justifique sua grosseria.

De qualquer forma, não temos tido problemas.

Encontrei Erick e Rose na saída da escola, eles estão conversando.

—Vamos indo? Não quero chegar em casa quando estiver mais escuro. —disse, olhando para o céu de seis horas da tarde. Ajeitei mais o meu casaco sentindo o vento gelado bater no meu rosto.

Todos concordamos e saímos andando. Só andamos duas ruas no mesmo caminho, depois Rose e Erick viram para uma esquina e eu para outra.

Segui meu caminho até minha casa, que não é muito longe. Apenas algumas outras ruas.

Cheguei em frente a porta de casa e abri com a chave. Meu pai está na sala pendurando um quadro e Ann está no sofá brincando com um carrinho, até me ver.

—Allyzinha! —ela pulou do sofá e veio correndo com bracinhos abertos. Me abaixei com os braços abertos também. A peguei no colo, com ela enrolada ao meu corpo.

—Como que foi a sua aula? —ela perguntou agarrada ao meu pescoço, enquanto eu penduro minha mochila no cabideiro ao lado da porta.

—O de sempre. —respondi sem muito interesse— Oi, pai. —me aproximei dele e ele me deu um beijo na testa.

—Oi filha. Como você está? —ele perguntou. Parece tranquilo agora. Quanto tempo será que ele demora para ficar triste de novo?

—Estou bem, obrigada. Vou tomar um banho.

Ele assentiu e se voltou para o quadro. Fui até o meu quarto com Ann no colo.

—Ann, já tomou banho hoje? —perguntei, fechando a porta do meu quarto.

Ela colocou o dedinho indicador no queixo, como se estivesse pensando, e depois fez que não com a cabeça.

—Que porquinha! Vamos comigo então.

Azente pode tomá na banhela, Allyzinha? —ela me perguntou, enquanto entramos banheiro.

Fiz que sim com a cabeça. A deixei no chão e comecei a encher a banheira. Me virei para ela e a vi tentando tirar a roupa.

—Deixa eu te ajudar.

—Não! —ela disse alto, me assustei— Eu zá sô glandinha! Eu consigo.

Dito e feito. Um pouco depois, ela conseguiu tirar o vestidinho rosa.

A encarei rindo. Essa menina é uma figura.

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Cheguei na praça com um suspiro. É final de semana, esse tempo eu geralmente fico sozinha, já que meu pai trabalha até o anoitecer. Eu poderia ficar com Ann, mas papai faz questão de que ela fique com Ester, para que eu tenha um tempo só pra mim.

Depois de todo o tempo em que cuidei dela na Inglaterra, ele se sente na obrigação de me compensar.

Sentei em um banco embaixo de uma árvore e fiquei olhando ao redor. A praça é bonita, mas não tenho muita coisa para fazer aqui. Suspirei.

Minha mãe iria adorar.

Meu peito apertou um pouco com esse pensamento que fiz questão de reprimir para bem fundo.

Comecei a mexer no celular para matar o tempo. Tomei um susto quando senti algo gelado e molhado nos dedos dos meu pés.

—Ah! —exclamei assutada, me levantando num pulo. Não deu tempo de fazer muita coisa, pois assim que eu levantei, um vulto preto passou por debaixo das minhas pernas, me derrubando no chão— Ai!

Olhei para trás, vendo quem causou isso. Um cachorro bem grande que olhou para mim balançando o rabo fortemente, feliz da vida. Ele deve achar que estamos brincando ou algo assim.

Olhei ao redor, tentando encontrar alguém que tenha visto essa cena vergonhosa. Por sorte, não achei ninguém, pelo menos não me encarando. Me virei para a direção do cachorro e sentei nas minhas próprias pernas.

—Então você foi o espertinho que me derrubou né? —perguntei, acariciando sua cabeça. Ele pôs a língua para fora e deitou a cabeça no meu colo. Sorri. Continuei fazendo carinho até reparar uma coleira. Um pingente prata em formato de ossinho diz "Jack"— É um nome nome muito bonito. —falei carinhosamente para o cachorro, que continua deitado na minha perna, parece estar quase dormindo.

—Pra ser sincero, achei que nada te abalava, agora tenho certeza. Ele te derrubou e agora você está tratando ele como uma criança. —um par de pernas bem grandes apareceu na nossa frente de repente, fazendo a luz do sol sumir. Apesar de já saber de quem se tratava, olhei para cima, só pra ter certeza.

—Oi, Thomas. —falei em um tom tranquilo, e ele se sentou na minha frente. Reparei que ele tem uma guia de coleira na mão. Jack deve ter fugido— Acho que seu cachorro aprendeu algumas coisas erradas com você, agora ele deve ter implicância comigo também. —comentei, sorrindo sem mostrar os dentes. Thomas soltou uma gargalhada.

—Eu não tenho culpa que você seja tão distraída, garotinha. Ele só achou que poderia brincar. —ele comentou, fazendo carinho na barriga do cachorro, que já se encontra dormindo.

—Esse nome combina com ele. —falei, puxando assunto. Fico feliz de Thomas estar comigo sem implicâncias. Ele está com uma blusa vinho e uma bermuda preta. Essa roupa combina muito com ele. Ele levantou uma perna e apoiou o braço no próprio joelho.

—Eu sei. Rose que escolheu, já deve imaginar o porquê. —ele respondeu, voltando a ficar sério. Ri. Não acredito que Rose escolheu o nome Jack por conta do filme "Titanic". De repente Thomas tirou um isqueiro um maço de cigarros do bolso, acendendo um. Arregalei os olhos— Quer? —me ofereceu.

Fiz que não rapidamente.

—Talvez você não saiba, mas isso pode causar câncer no pulmão. —eu comentei, o observando tragar uma vez. Ele soltou uma risada nasal, soltando um pouco do ar pelo nariz, e depois soltou o resto pela boca.

—Não é nada que o verso da embalagens de cigarro já não tenham me avisado. —ele disse tragando mais uma vez.

—Então por que continua? —perguntei.

Ele deu de ombros.

—Sinceramente, não tenho medo de morrer. Não tenho nada para deixar pra trás.

O observei por algum tempo, enquanto continuava fazendo carinho em Jack.

—Você tem algum problema comigo? —perguntei baixo.

Hm? —ele me olhou, após jogar o resto do seu cigarro no chão e apagar com o pé. Observei a cena com o cenho franzido, mas não disse nada.

—Parece que minha presença te incomoda. —falei, olhando para Jack, que ainda dorme em meu colo.

Ele ficou em silêncio por um tempo antes de responder.

—Ah, garota, seu sotaque britânico é um saco. —ele revirou os olhos— Eu só acho irritante o fato de você não se abalar com nada. Ninguém é tão bonzinho assim.

—Você não pode simplesmente aceitar o fato que de nem todo mundo é igual a você? —disse. Ele ficou quieto, enquanto pensa na resposta certa.

—Você não sabe como eu sou, para começar. —ele disse com um sorriso mínimo— Mas definitivamente não é como eu.

—Essa foi mesmo a melhor resposta que você encontrou?

Ele sorriu de canto.

—Foi.

Ficamos em silêncio novamente, apreciando a paisagem.

—Posso te fazer uma pergunta? —soltei de repente.

—Acabou de fazer. —ele respondeu, ainda sem me encarar. Ele, vendo que não respondi, suspirou— Pode.

—Na semana passada, o que você tinha no pulso?

De repente seus músculos ficaram rígidos e ele ajeitou a coluna.

—Onde você viu isso? —ele perguntou com a voz arrastada. 

—Eu reparei na aula de geografia avançada.

Ele ficou em silêncio. Senti raiva refletida em seus olhos.

De repente ele colocou a guia bruscamente em Jack, o fazendo acordar em um pulo.

—Isso não é da sua conta.

Ele disse simplesmente, antes de sair arrastando o cachorro que não estava entendendo nada.

Pisquei os olhos algumas vezes, tentando assimilar a situação. Ele não poderia simplesmente responder "não quero falar sobre isso" ?

Suspirei.

Essas mudanças de humor me deixam confusa. Eu me sinto culpada por ter estragado nosso único momento em paz.

Mas não tem muito o que eu possa fazer. Se ele prefere assim, deixarei assim.

Está na minha vez de aceitar que nem todas as pessoas são iguais a mim.

Levantei do chão e fui procurar qualquer outra coisa para fazer.

Andei pela praça, observei pessoas, tomei sorvete, observei as plantas. Mas simplesmente eu não consegui tirar o O'brian da minha cabeça.

Mas que saco!

Acho que vou desistir da nossa boa relação. Mas, ainda assim, não consigo odiá-lo.

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