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Madelaine não tivera coragem de denunciar que um paciente havia escapado de sua cela por várias razões diferentes, mas a principal era: como explicaria o que fazia naquela ala sem levantar suspeitas sobre seu comportamento nada profissional dos últimos meses? A Sessão Vermelha era localizada numa área isolada onde ela certamente não deveria estar em momento algum de seu trabalho. Então, para preservar o segredo de sua finada relação com Roger, ela manteve-se em silêncio. No primeiro dia aquilo lhe causara certo desconforto, pois um paciente daqueles fora de sua contenção significava perigo iminente. Mas ao ir embora naquela fatídica manhã, descobrira com os guardas daquela sessão que nada acontecera fora do comum. Nada que vocês tenham percebido, pensou consigo enquanto subia junto dos colegas a condução que a levaria até sua casa, uma decente pensão para solteiras num bairro até que respeitável da cidade.

     Enquanto sacolejava no ônibus e ouvia o som suave dos roncos de seus colegas de trabalho exaustos, Mad observava o sol da manhã e, ao adentrar a área urbana novamente, notou pássaros voando no céu azul acizentado e sua mente imediatamente retornara à bela melodia que aquele paciente misterioso cantara para ela. Quem era ele? Como sabia o nome dela e, mais importante, como sabia sobre Roger? "Ele não a merece, Mad… Madelaine", o homem dissera, tão íntimo. O nome dela fora desenrolado de forma tão familiar no grave da voz dele que, de alguma forma, Mad tinha certeza que ele a conhecia, e isso acendeu nela uma pontinha de excitação em meio à tristeza e decepção pelo seu erro com Roger.

     Roger Domenico. Ele iria pagar. Ela o faria sofrer de alguma forma, prometera a si mesma enquanto caminhava os poucos quarteirões entre o ponto de ônibus onde acabara de descer e a pensão. Poderia ir até a casa dele e denunciar suas atividades extra conjugais à esposa dele, pensou enquanto atravessava a rua correndo e ganhava como recompensa uma buzinada aguda de um veículo que passava. Ignorou a ofensa do motorista e imediatamente descartou a idéia que tivera. Ela já se rebaixara o suficiente por ele e, além do mais, não queria causar um sofrimento desnecessário à mulher que era a única inocente naquela história sórdida. Não, Madelaine iria resolver aquilo apenas entre eles. Iria se vingar e encontraria uma maneira de fazer apenas Roger sofrer sua ira. Foi pensando nas possibilidades para um plano de ação que se banhou e deitou-se para dormir. Agitação. Insônia. Ansiedade. Ela não pregara os olhos.

     Uma semana se passara e Madeline mal fora capaz de registrar o tempo. Haviam tantas coisas em sua mente que a estavam consumido demais para que conseguisse registrar adequadamente algo tão insignificante quanto a passagem dos dias. Aos poucos sua sede de vingança fora diminuindo, e decidira que esperaria o momento oportuno para deliciar-se com o sabor desta. Sua avó, de quem havia herdado o nome em homenagem, sempre dissera que tudo acontecia quando tinha que acontecer, então, comeria de sua vingança em prato frio. Em contra partida, ao abandonar temporariamente a ideia da lição que aplicaria em Roger, sua mente fora invadida pelas memórias daquela inusitada experiência com o paciente misterioso.

     Quanto mais vezes pensara naquilo, mais empolgada ficara, e menos estranha achara aquela situação. O homem cantara para ela, tentara confortá-la. Uma melodia doce e alegre que a distraíra de sua dor. Ele a aconselhara. Dissera que Roger não a merecia, o que era absoluta verdade, certamente. Tentara diversas vezes encontrá-lo. Fora até a área da Sessão Vermelha várias vezes por dia na esperança de ouvir os pássaros a chamarem novamente. Porém, ao mesmo tempo que buscava em vão, Madelaine se sentia vigiada. Observada. Perseguida. Algum instinto de preservação profundamente arraigado da especie humana fora despertado e a estava alertando de que estava sendo alvo de alguém. As luzes elétricas falhavam nos corredores a cada vez que se encontrava só e um arrepio descia por sua coluna. Nesses momentos ela sentia que, a qualquer momento que as luzes voltassem a brilhar, o paciente misterioso estaria ali a encarando firmemente. Mas, quando tudo que via era apenas o corredor vazio com a claridade amarelada das lâmpadas, a tensão se dissipava de seu corpo e seu humor dividia-se entre frustada e aliviada, pois, mesmo que estivesse ansiando por um novo encontro, ela também o temia.

     Fora nessa doce e inquietante tortura que mais uma semana se passara e, enquanto alguém a seguia a ponto de quase sentir um respirar em seu pescoço a cada passo, ela fazia um processo semelhante ao espionar Roger. Agora que seu interesse nele não era mais o mesmo de antes, Madeline começou a notar no homem um comportamento suspeito e constante. Roger passava tempo demais na área de segurança máxima. Quando adentrava a Sessão Vermelha, passava ali horas a fio. E ao comentar tal fato com Sara, sua colega de trabalho, a mulher lhe dissera que quando Roger ia até aquele local no período diurno passava ali ainda mais tempo, tendo até mesmo que ser lembrado de fazer um intervalo.

-- Ele se dedica muito aos pacientes, senhorita Mad. Costumamos dizer entre nós, que na verdade, doutor Roger mora aqui e apenas faz visitas à própria residência! -- Sara comenta enquanto faz anotações sobre o surto histérico que a nova paciente tivera, tendo de ser amarrada à cama.

     Aquelas palavras deveriam lhe despertar admiração pelo tamanho da dedicação que Roger empregava em seu trabalho. Mas… era dedicação demais. Estranho. Duvidoso. Suspeito. Madeline sentia que algo de muito errado acontecia atrás da porta de ferro negro que guarda as celas da solitária.

-- E o doutor Roger está lá agora, Sara? -- pergunta tomando o cuidado de soar desinteressada, enquanto organizava alguns papéis no balcão.

-- Oh, não soube querida? Doutor Roger tirou uma semana de férias, foi viajar com a esposa. -- suspira pesarosa -- Sabe a última vez que viajei? Quando fui na cidade vizinha visitar minha prima que deu à luz uma menina. Veja só, Madeline, os infortúnios à que alguns estão destinados enquantos outros usufruem da boa vida!

-- Realmente, Sara. E o mais triste é que as injustiças apenas começam por questões simples como essa, e crescem para questões muito mais alarmantes, não é mesmo? -- concorda, sentindo uma pontinha de ciúmes e inveja e rancor lhe cutucar o coração -- Veja só, já é hora da próxima ronda. Percebi que está com o joelho ruim dolorido hoje pelo seu andar, se quiser, posso fazer a ronda por você!

-- Faria isso por mim, querida Mad? Fico imensamente grata! -- bateu palmas, sorrindo feliz -- Minha artrite está atacada nos últimos dias. Você é uma boa menina, é sim!

     Madelaine sai do balcão e o som de seus passos começam a ecoar pelos longos e mal iluminados corredores. Sara antes era arredia e desconfiada com ela, mas nos últimos dias, Mad tivera se oferecido repetidamente para substituí-la em suas patrulhas, o que lhe garantira a amizade imediata da mulher. Depois de uma rápida verificação em seus domínios de que tudo estava nos conformes, Madelaine se dirige, sorrateiramente, até a Sessão Vermelha, lugar onde mais passara seu tempo nos últimos dias. Ao visualizar a porta negra a familiar sensação de expectativa a abraça e, seu caminhar antes rápido e direto, desacelera. A noite era alta e o vento uivava do lado de fora num gemido agonizante, sinal de que uma tempestade estava se aproximando. Anseio. Esperança. Desejo. Ela começou a implorar silenciosamente que ele aparecesse novamente. Pedia com tanto fervor que sentia-se capaz de invocá-lo a qualquer momento. Chegou até a porta e, como da primeira vez, tocou o metal frio. E então, começou.

     Um pássaro. Cantando uma canção melancólica com notas agudas e longas. Infeliz. Abandonado. Sozinho. Era assim que ele se sentia e Madelaine conhecia intimamente todos aqueles sentimentos, pois faziam parte dela também. Um arrepio lhe gelou a espinha e olhou para a esquerda, para a direção de onde vinha o som. Mais alguns passos. Apenas mais alguns passos e o encontraria finalmente. Respirando profundamente para reunir coragem, ela persegue aquela desolada cantoria, até que, finalmente depois de tantos dias de busca, ela o encontra.

     Escorado na parede, vestindo calças e camiseta brancos, pés descalços e com as mãos nos bolsos. Assobiando aquela canção hipnótica que tinha a única intenção de atraí-la até ele. Ali estava o paciente misterioso a olhando diretamente nos olhos enquanto mudava sua imitação de pássaro para algo mais alegre e jovial, com um sorriso pairando em seus olhos amendoados. Ali estava o homem mais belo que já vira. Incapaz de resistir ela caminha até ele, com o coração acelerado e, uma parte involuntária do seu cérebro percebe as luzes falharem. Aquela oscilação de luz e sombra o torna ainda mais charmoso. Irreal. Misterioso. Etéreo. Madelaine se pergunta se aquele homem é real e, ao se aproximar, o cheiro de sabonete perfumado que ele exalava lhe espantou aquelas suspeitas. E se não, o que aconteceu a seguir teria feito cair por terra sua dúvida. A melodia parou. Os lábios dele se alongaram num sorriso.

-- Madelaine... Olá, meu sonho! -- disse, como se a conhecesse desde sempre.

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