Um

Havia uma multidão no salão de desembarque do aeroporto de Dallas, mas Jill sequer precisou procurar por mais do que cinco segundos. Barbara usava a camiseta ridícula do The Lumineers que havia comprado no show que as duas tinham ido juntas em Los Angeles anos atrás, e um boné rosa fluorescente dos Cowboys, seu time de coração, por cima do cabelo trançado.

— Amiga! – Barb acenou eufórica quando viu Jill empurrando o carrinho cheio de malas pela porta automática que separava o salão da área restrita do aeroporto e se aproximou aos pulinhos, até que estivesse perto o suficiente para um abraço apertado. – Sua louca! O que você está fazendo aqui em plena terça-feira? – quis imediatamente saber, dando um beijo na bochecha de Jill.

Quem visse poderia pensar que as duas não se encontravam há anos, só que não era a verdade. Barb tinha estado em Nova Iorque menos de três meses antes e inclusive se hospedado no apartamento que Jill dividia com o namorado "engomadinho".

Não que Brian fosse má pessoa, Barb só não achava que ele era o cara certo pra Jill. Ela respeitava a decisão da amiga, é claro, porque era o que amigas faziam. Mas aquela ligação meio desesperada de Jill às quatro da tarde avisando que estava embarcando na direção do Texas e perguntando se Barb podia ir buscá-la dali três horas no aeroporto? Aquela ligação indicava que algo sério tinha acontecido e Barb estava dividida entre se sentir mal e comemorar o possível fato de que a amiga finalmente tivesse enxergado que Brian e ela eram diferentes como a água é do vinho.

Jill se soltou de Barb e a mirou desconfiada, sabendo exatamente o que se passava na cabecinha complicada de sua melhor amiga.

— Vamos pelo menos chegar ao carro. – implicou. Barb iria surtar quando soubesse que Brian a tinha pedido em casamento naquela manhã e ela não queria que aquilo acontecesse na frente de um monte de estranhos.

— Nunca vi uma pessoa com tantas malas na minha vida. – Barb reclamou desistindo de insistir no assunto e assumindo a direção do carrinho de bagagens de Jill para seguirem em direção ao estacionamento. Aquilo a deu ainda mais certeza de que o que quer que tivesse acontecido havia sido sério, muito mais sério do que Jill estava deixando transparecer – Por acaso você está voltando de vez pra Spring Creek? – jogou verde, num tom de brincadeira e arrancou da amiga uma risada bufada.

— Você é muito cri-cri, sabia? – Jill desconversou, dando um empurrãozinho em Barb enquanto as duas caminhavam na direção da saída – Isso aqui não é só roupa. Eu também trouxe alguns equipamentos comigo.

Não que Jill pretendesse usá-los ativamente, mas ter uma câmera nas mãos, mesmo que fosse só de brincadeira, era uma das poucas coisas que a permitia ser ela mesma nos últimos tempos. Como uma das fotógrafas de moda da Changeant Magazine, cabia a Jill capturar a essência dos editoriais da revista e mantê-la dentro do ranking de maiores influenciadoras do universo fashion. Era aquilo que ela havia escolhido por profissão.

Quando se mudou para Nova Iorque cinco anos atrás, como uma simples estagiária no ramo da fotografia e ainda sem saber exatamente o que queria fazer com sua vida, Jill se sentiu seduzida pela moda por sua capacidade de mudança, de sempre oferecer algo novo e desafiador à ela como profissional. Sua persistência e competência a haviam levado ao topo em pouco tempo e Jill amava o que fazia, mas precisava admitir que até mesmo sua carreira parecia deslocada ultimamente.

— Pois eu espero muito que no meio desse monte de bagulho a senhorita tenha trazido pelo menos um vestido que preste. – Barb comentou enquanto ela e Jill arrumavam as malas no porta malas do jipe de Barb – Sério, eu ainda não sei como é que eles toleram esse seu guarda-roupa lá na Changeant. Até eu ando mais na moda do que você.

— Estou lá pra fazer moda, não pra usá-la. – Jill prontamente rebateu. Estava acostumada com aquele tipo de comentário, afinal ela era a única em toda a redação da revista que usava botinhas e jeans desbotado praticamente todos os dias. As poucas exceções se davam em dias de reunião com a editora chefe ou quando Brian estava na cidade e tinha tempo para almoçar com ela. – Mas, pra que você quer saber do vestido? – Jill retorquiu, captando no ar que havia algo mais por trás daquele comentário aparentemente inocente da amiga. Ao seu lado, Barb maquiavelicamente sorriu.

— Hoje é a festa de aniversário do Quentin, – explicou fechando a porta traseira do carro com um baque mais forte que o necessário – e por sua culpa nós já estamos atrasadas. – completou com uma ira fingida, dando as costas para Jill para caminhar na direção da porta do motorista. Jill sufocou um risinho, e abriu a porta do carona.

— Quentin... Quentin? – quis saber por pura implicância quando se acomodou na poltrona. Só havia um Quentin de quem Barb poderia estar falando.

— Quentin "solteiríssimo" Ayobami, querida! – Barb informou com veemência sobre o antigo colega de classe de ambas antes de girar a chave na ignição e se virar para Jill com uma expressão diabólica no rosto – Sabe quem também está solteiro? – perguntou, sem a mínima intenção de esperar pela resposta – Raymond Carver. – disse triunfante e Jill engoliu em seco, sabendo que não podia continuar evitando falar sobre o que havia levado até ali.

— Brian me pediu em casamento hoje de manhã. – contou, segurando a mão da amiga para que ela não engatasse a ré e tirasse o carro do lugar.

Era óbvio que Barb desconfiava que o relacionamento com Brian tinha de alguma forma terminado ou nem sequer tocaria no nome de Ray, antiga paixão platônica de Jill da época da escola. Só que não era assim tão fácil, e Jill nem sabia por onde começar a explicar o que estava acontecendo.

— Por que você está aqui então? – Barb perguntou séria quando Jill permaneceu em silêncio mais tempo que o normal, sua preocupação pela amiga transparecendo em seus olhos castanhos como raramente deixava acontecer.

— Porque eu não aceitei. – Jill respondeu, dando de ombros e suspirando fundo antes de continuar, a atenção desfocada, presa em um ponto qualquer do painel do carro – Ele ficou tão desapontado, Barb. Hoje faz dois anos que a gente se beijou pela primeira vez. Ele quis fazer uma surpresa pra mim... algo especial. E eu entrei em pânico!

— Hey! – Barb apertou a mão de Jill na dela, atraindo para si seu olhar perdido, não permitindo que a outra voltasse a se desesperar – Não há nada de errado em se sentir confusa numa hora dessas. Melhor assim do que tomar a decisão errada e se arrepender lá na frente. – ela tranquilizou Jill – Ele seria um idiota se não te compreendesse, e nisso eu preciso ceder: idiota é uma coisa que Brian não é.

Mas havia mais.

— Eu terminei com ele. – Jill confessou, fazendo as sobrancelhas de Barb se arquearem.

— Você o quê?

— O que mais eu poderia fazer? – Jill continuou sabendo que aquilo soava tão cruel quanto na verdade era. Ele a havia pedido em casamento e ela havia terminado com ele. – Brian queria botar aquele anel enorme no meu dedo e me levar pra São Petersburgo com ele na quinta. – ela se apressou a explicar, temendo o julgamento da amiga – Barb, ele deixou claro que quer que eu pare de trabalhar pra poder o acompanhar nas viagens que precisa fazer. Ele espera que eu case com ele, e então me dedique a ele e a essa ambição que ele tem de ser o presidente da Alrosa e nada mais.

— Tão romântico da parte dele achar que a única carreira que você pode seguir é a de esposa profissional. – Barb disse em voz alta, sua ironia soando muito mais cortante do que havia planejado.

Brian Vondrasek era o ambicioso e promissor sobrinho mais velho de Mikhail Vondrasek, dono da maior mineradora de diamantes da Rússia, a Alrosa. Focada no comércio de luxo, foi o olhar de Brian que transportou a empresa de uma mera facilitadora do produto bruto para uma das maiores criadoras de peças da ourivesaria moderna. Ele convenceu o tio a investir em design e a patrocinar grandes nomes, tendo assim muitas mulheres famosas desfilando seus diamantes nos tapetes vermelhos dos eventos mais concorridos do mundo, consolidando o nome da Alrosa no mercado e o seu prestígio dentro do clã Vondrasek.

Apesar de ser seu diretor executivo, Brian fazia questão de sempre estar a par dos detalhes que envolviam a imagem da empresa para ter certeza de que tudo fosse executado da forma que ele havia imaginado. Foi assim que Jill o conheceu. Ela fotografava modelos vestindo joias da Alrosa para um editorial da Changeant quando ele apareceu no set para conferir como estava ficando o resultado.

Meses depois, quando já estavam juntos, Brian contara que havia planejado ficar não mais do que vinte minutos no set naquele dia, mas após uma hora conversando sobre ângulos com Jill e a observando os colocar em prática, ele sentira algo que sabia ser diferente e foi por isso que a convidara para o encontro que deu início a tudo.

A sintonia que sentiram no começo era inegável, mas nem mesmo Brian discordava de que os dois eram muito diferentes e sempre que Jill lhe perguntava o que tinha visto nela, recebia o seu melhor sorriso sedutor como resposta.

"Eu vejo em você a mesma garra, a mesma vontade de vencer que existe em mim" , ele respondia, sempre com exatamente as mesmas palavras, todas as vezes, sem exceção.

Talvez tenha sido por isso que, no momento em que ele se ajoelhou aos seus pés naquela manhã depois de ter lhe acordado com beijos, tendo nas mãos um anel que ele mesmo havia desenhado e pessoalmente supervisionado cada estágio da confecção, a única coisa em que Jill conseguira pensar fora que não queria estar em um casamento baseado em qualquer outra coisa que não fosse amor.

No banco do motorista, Barb prendeu a respiração. Ela devia estar feliz por Jill ter terminando com Brian, mas não conseguia, não enquanto aquilo ainda machucasse a amiga.

— Eu tenho uma ideia. – falou, quebrando o silêncio que havia se acomodado entre as duas – Quando chegarmos a Denton podemos passar na Nonna, pegar alguma coisa e ir pro meu apartamento ver tevê. O que você acha?

A menos de uma hora de Dallas, Denton era a típica cidadezinha do interior com menos de dez mil habitantes e mais nada para oferecer para aqueles que por lá viviam além de estradas empoeiradas e pastos a perder de vista. Por isso a Trattoria da Nonna era mais do que um dos únicos restaurantes bons que havia por quilômetros em todas as direções, era tradição.

Quando estavam na escola, Jill e Barb costumavam fugir para comer espaguete nos dias em que a cantina servia purê de batatas com ervilhas no almoço porque Barb odiava o legume. E mais, não importava se o problema era a aterrorizante final de literatura ou o término de um relacionamento, Barb sabia que a comida da Nonna teria gosto instantâneo de felicidade, mas Jill tinha outros planos.

— De jeito nenhum! – ela rebateu, balançando a cabeça e sorrindo, varrendo todo o problema com Brian para baixo do tapete – Não quero ter posto um vestido curtíssimo e cheio de lantejoulas na mala em vão. Nós vamos a festa do Quentin sim, senhora!

— Eu te amo, garota! – Barb comemorou, não porque havia dias que fazia a contagem regressiva para aquela noite, mas porque Jill precisava de um pouco de diversão e diversão era o que elas teriam, ou seu nome não seria Barbara Trahan.

Ela engatou a ré e saiu da vaga onde estava estacionada enquanto Jill ligou o som do carro e escolheu uma música animada, aumentando o volume o máximo que dava.

A noite era delas e só estava começando.

Seria como nos velhos tempos.

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