Sete

Antes de sair de férias, Rachel havia organizado a casa para que ficasse inabitada por um mês. Se soubesse que ambos os filhos apareceriam ao mesmo tempo em Spring Creek talvez tivesse considerado cancelar a viagem que o marido havia lhe dado como presente de aniversário, mas certamente teria deixado a geladeira e a despensa recheadas com todo o tipo de guloseima que os gêmeos gostavam.

Era o meio da tarde quando Jill chegou a Denton dirigindo o carro da mãe. Ela havia comido de café da manhã o que restava das coisas que Collin trouxera consigo de Dallas quando veio para o rancho na segunda e, se não quisesse passar fome por todo o final de semana ou ter que abrir um dos vidros de conserva da mãe, precisaria providenciar suprimentos frescos com urgência.

Decidida a aproveitar o tempo livre para tentar algumas receitas novas, Jill fez uma lista de itens que iria precisar antes de ir para a cidade. Quando passou na frente da Clínica Trahan sentiu uma necessidade enorme de conversar com Barb e chegou até a estacionar no meio fio para ir até lá e perguntar, como quem não quer nada, se ela não queria fazer alguma coisa mais tarde, mas no último momento decidiu que Collin tinha razão.

Aquela sensação de não estar bem com a amiga? Jill a odiava. Só que Barb não mudaria de ideia com facilidade quanto às coisas que havia dito por telefone. E se realmente a culpava pela recaída com Collin, então talvez o melhor a fazer fosse dar tempo ao tempo e torcer para que o fato não destruísse também a amizade das duas.

De volta à Spring Creek, Jill arrumava as coisas que havia comprado na geladeira e armários da cozinha, se preparando para começar a fazer o jantar, quando seu telefone vibrou em cima da bancada.

Estou embarcando agora
para São Petersburgo.
Quando voltar, nós dois
podíamos finalmente ir
ver a aurora boreal como
você sempre quis. O que
acha? A Islândia parece
ser um bom lugar por
onde recomeçar.

Jill riu. Então a raiva se apoderou dela.

Qual parte dos seus motivos para terminar Brian não tinha entendido?

Enquanto relia o texto, ela só conseguia pensar que estava tudo ali, resumido naquela mensagem, quase como se ele tivesse feito de propósito. Brian não se oferecia para levá-la a um dos lugares que sempre sonhou em conhecer porque queria estar com ela em uma paisagem épica. Era porque assim achava que poderia comprá-la, fazê-la mudar de ideia.

E aonde estava o sentimento? Jill já tinha lido ofícios mais românticos do que aquela mensagem e não duvidaria se lhe dissessem que quem realmente a escrevera fora George, o secretário pessoal do ex.

Jill chegou a digitar as primeiras palavras de uma resposta mas se deteve. Não adiantaria explicar mais uma vez porque Brian parecia não se dar conta – ou não queria se dar – de que o que eles sentiam um pelo outro não era suficiente para levar um casamento adiante. Ele tinha decidido que precisava de uma esposa, e faria qualquer coisa que estivesse ao seu alcance para ter uma, menos aquilo que era esperado que um noivo apaixonado fizesse. Que procurasse nos classificados e contratasse uma então. Jill não se submeteria àquele papel.

Com o clima para cozinhar destruído, Jill decidiu trocar a receita de espaguete com cogumelos que havia planejado por um saco de batatinhas e uma garrafa de vinho. Ela se jogou no sofá para ver tevê, se perguntando a todo momento por que tinha permitido que a situação com Brian se estendesse tão longe e se lamentando por causa de Collin e Barb, até ficar bêbada o suficiente para ir dormir sem correr o risco de passar mais uma noite acordada pensando na vida.

Levantou cedo no outro dia, para sua surpresa, sem dor de cabeça e bem disposta. Como estava sozinha em casa, ela não se deu o trabalho de botar a mesa e tomou seu café encostada na bancada da cozinha. Não passava das oito da manhã de sábado quando terminou de colocar a louça na máquina e, se sua memória não falhava, havia uma feirinha semanal de artesanato do outro lado do lago, em Haslet, que, se estivesse com sorte, teria resistido aos anos e ainda estaria em funcionamento.

Jill voltou ao próprio quarto antes de sair, para trocar de roupa e pegar a bolsa com dinheiro e documentos. Seus planos eram bem simples: ir à Haslet para ver se a feirinha ainda acontecia, matar o tempo por lá antes de voltar pra casa e então fazer seu almoço. Porém, quando passou em frente à porta de vidro que dava acesso à varanda de seu quarto e viu o que acontecia no picadeiro a trezentos metros dali, ela mudou de ideia.

Jesse montava o cavalo de crina trançada, incitando o imponente animal a se exercitar, o guiando por uma série de obstáculos, o ensinando a confiar nele e a seguir os comandos que lhe dava.

A forma como o cavalo galopava, como às vezes parava ou se empinava nas patas traseiras, e como Jesse parecia sempre saber cada movimento que o animal faria antes deles acontecerem, além do domínio que tinha sobre si mesmo... era hipnotizante e Jill não conseguia desviar o olhar.

Com pressa, ela largou a bolsa em cima da cama e abriu duas das três malas com equipamentos jogadas no chão que havia trazido de Nova Iorque. Tirou de lá sua melhor câmera e a lente mais adequada para capturar aquele tipo de movimento à distância. Apoiando o conjunto em um tripé, Jill fotografou o que acontecia no picadeiro da varanda de seu quarto, metade do tempo ansiosa para ver como as fotos ficariam no computador, a outra metade admirando a perfeição e a ousadia destemida dos movimentos do domador. Barb havia feito uma ótima escolha. Jill tinha que admitir.

Quinze minutos depois, Jesse desmontou do garanhão e pegou no chão de areia o chapéu que havia caído de sua cabeça instantes antes, durante uma manobra particularmente complexa de cavalo e cavaleiro. Quando levantou a cabeça, mirou exatamente na direção da casa e aquilo foi o suficiente para fazer Jill voltar para o quarto, arrastando o equipamento de qualquer jeito, meio desesperada e com o coração na mão.

Se ele a visse ali poderia pensar que ela o estava espionando.

O que não era o caso.

Mas mesmo assim.

Jill empurrou o teclado do seu antigo computador de mesa, que resistira aos anos em cima da sua escrivaninha, para dar espaço ao seu notebook. Horas haviam se passado quando ela se deu conta do tempo novamente. Das mais de cem fotos que havia tirado, Jill havia escolhido três.

A primeira era a clássica imagem do caubói no lombo de um cavalo empinado nas patas traseiras. Parte do rosto de Jesse estava encoberto pela aba do chapéu naquela e ainda assim, pela postura de seu corpo, dava pra sentir o seu entusiasmo em estar no comando de algo tão poderoso. Jill se achou muito idiota por não ter reparado antes, afinal fazia parte do trabalho dela explorar aquele tipo de coisa, mas Jesse era extremamente expressivo.

Na segunda foto ele estava em pé nos estribos, segurando o chapéu com a mão esquerda para que este não caísse da sua cabeça. Sua camisa de botões xadrez e em tons de vermelho, branco e preto estava meio aberta no peito e parcialmente solta do cós da calça jeans desbotada. Ele mantinha a guia firme com a mão direita e olhava para trás, o corpo torcido na sela, observando as patas traseiras do cavalo na execução de uma curva.

Aquela foto era tão perfeita que se Jill não a tivesse feito ela mesma teria duvidado de que fora completamente espontânea. Jesse estava tão... imponente nela. E cada objeto que compunha a cena, desde a corda presa à sela ao pavilhão desfocado no fundo, parecia convergir para ele. Se estivesse trabalhando em um shooting, Jill usaria aquela foto como capa, apesar de que ainda não era a sua preferida.

Na verdade, a qualidade da terceira imagem não era tão boa quanto a das outras. Jill tinha tremido um pouco, e talvez fosse justamente a sensação de movimento que tirasse seu fôlego cada vez que olhava para a última foto que tirou de Jesse. Ele tinha acabado de pegar o chapéu do chão e olhava para frente, para a casa, exatamente para a lente de Jill. Em sua expressão, milhões de coisas se mostravam, ao mesmo tempo em que seus olhos focavam em algo para além do momento. Uma memória talvez, algo que ele não queria que estivesse em sua mente, algo que ele lutava para que não viesse à tona. Mas naquele instante, por um milésimo de segundo, Jesse havia perdido o controle.

Durante o resto da tarde Jill se perguntou se não seria uma boa ideia o convidar para jantar. Na panela, bem mais macarrão do que o necessário para uma porção da receita cozinhava de qualquer forma.

Só que Jesse levanta cedo, ela se lembrou, olhando de relance o menor ponteiro do relógio da cozinha quase alcançando o sete, ele já deve ter comido a essa hora... Mas ele não precisa necessariamente vir jantar.

Havia dois packs de cervejas na geladeira quando ela se deu conta de que podia o convidar em retribuição à bebida que ele tinha lhe dado dias atrás, para logo em seguida chegar à conclusão que aquilo também não ia dar certo. Jesse não parecia o tipo que gosta de bater papo casualmente só pelo prazer de se estar na companhia de outras pessoas. Talvez ele fosse diferente antes de perder o pai. Ou talvez sempre tivesse sido fechado daquele jeito. Ela não tinha como saber.

Jill suspirou. Queria ligar para Barb e perguntar como Jesse era quando ela o conheceu em Lexington, e a vontade que teve foi de bater a própria cabeça na parede. Ela não suportava mais não estar falando com a melhor amiga. Mesmo com a distância física e com a vida atribulada das duas, Jill e Barb se falavam todos os dias nem que fosse apenas para compartilhar uma foto engraçada por mensagem, e Jill não queria viver sem aquilo.

Foi o cheiro de queimado que a trouxe de volta para a cozinha. Os cogumelos que refogava com os outros ingredientes para o molho haviam agarrado no fundo da frigideira e torrado completamente de um lado, para muito mais do que além do ponto de reparação. Jill acabou por jogar todo o conteúdo da frigideira fora com um careta. Só havia lhe restado o macarrão cozido, que ela comeu com um pouco de queijo ralado pra disfarçar, amaldiçoando a si mesma a cada mastigada por ser tão distraída.

No outro dia de manhã, acordou quase meio dia e de péssimo humor. Ela havia se deixado ficar no sofá vendo filmes até de madrugada e, estando com uma dor de cabeça terrível, se limitou a não abrir as cortinas do quarto e a passar o resto do dia de pijama na sua cama se sentindo uma pateta. Mas uma lição havia sido aprendida e, decidida a não cometer o mesmo erro uma segunda vez, Jill foi dormir cedo no domingo e acordou antes da oito na segunda.

Enquanto tomava café da manhã, ela viu pela janela da cozinha Jesse pilotando um pequeno trator, levando feno fresco para dentro do pavilhão, e, quase que no mesmo instante, seu telefone vibrou no bolso de trás de seu short jeans. Era Brian. Dessa vez, ao invés de mensagem, a foto dele pulava na tela do celular indicando que aquilo na verdade era uma ligação. Jill deixou que tocasse até ele desistir.

Jesse continuou trabalhando nos arredores do pavilhão por mais umas duas horas, levando tonéis de um lado para o outro com a ajuda do trator, às vezes da picape, até que a movimentação cessou. Quando deu por si, Jill estava mais uma vez na trilha, descendo a pequena colina para pegar a estrada que a levaria até o domador. Na metade do caminho ela mudou de ideia e pensou em voltar para casa, só para mudar de ideia mais uma vez no segundo seguinte, decidindo continuar.

Droga!, pensou.

A égua dela estava prenha, não estava?

Então ela tinha todo direito de a ir visitar. Não precisava ficar se explicando, mesmo se quisesse se explicar.

Argh! Aquela situação a estava deixando maluca!

Jill tomou fôlego, tentando se acalmar. Ela tinha a desculpa perfeita e nem mesmo a rabugice de Jesse poderia tirar aquilo dela. E assim, ela chegou ao pavilhão com um sorriso confiante no rosto, só que ele não estava em lugar algum.

— Ele é mágico? – perguntou para Caramelo, acariciando a cabeça dela depois de ter procurado por Jesse até mesmo nas baias vazias. A égua deu uma bufadinha como se estivesse rindo da cara de Jill. – Rá, rá. – ela respondeu debochadamente para o animal – Muita falta de consideração da sua parte. Eu vou lembrar disso quando você não estiver mais de dieta e me pedir torrões de açúcar.

O telefone tocou mais uma vez no bolso traseiro de Jill. Ela o pegou e, sem surpresa alguma, viu a foto de Brian pulando na tela.

— É o Brianbaca de novo. – comentou com Caramelo e então ouviu alguém se engasgando, tossindo na sequência, tentando se controlar para não cair na gargalhada.

Jill olhou para cima na direção do som e, com horror, viu uma pessoa se movimentando em meio às vigas que sustentavam o teto do pavilhão. Era Jesse.

— Desculpa. – ele pediu, andando com agilidade por entre as enormes peças de madeira até chegar à parede, onde havia uma pequena escada que até aquele momento ela não tinha visto. – Eu não estava te espionando. – explicou sem graça, se aproximando de Jill – Gosto de sentar lá em cima nas minhas pausas para ver o que os cavalos fazem quando estão sozinhos. – completou, mostrando a garrafinha térmica de café que tinha na mão.

Oh, não! Aquilo significava que da última vez que ela viera ao pavilhão e achara que estava sozinha... Jesse estava lá em cima escondido nas vigas também?

— Não foi nada! Não precisa se preocupar! – Jill sorriu amarelo, tentando desesperadamente desconversar e não pensar em todas as coisas estranhas que ele já devia a ter visto fazer. Ela estava prestes a se despedir e dar meia volta na direção de casa morrendo de vergonha quando seu telefone voltou a tocar – É sério isso? – reclamou indignada, vendo a foto de Brian pular na tela brilhante mais uma vez.

— É o Brianbaca? – Jesse quis saber com um sorriso torto no rosto, obviamente divertido com o apelido maldoso que Jill havia acabado de inventar. Ela suspirou fundo, consternada com a insistência do ex.

— É. – confirmou chegando à conclusão que não havia motivos para não ser sincera com Jesse – É meu ex-namorado irritante querendo me fazer voltar pra ele.

O sorriso de Jesse se esticou um pouco mais em seu rosto quando estendeu a mão na direção de Jill para que ela lhe entregasse o telefone, que ainda tocava. Uma das sobrancelhas grossas dele se arqueou como se perguntasse "você teria coragem?" e Jill mal pode acreditar em si mesma quando se viu entregando a ele o aparelho.

Jesse se concentrou, ficando sério.

— Alô. – atendeu. Ele escutou por um instante antes de responder. – É o telefone dela sim. – explicou mirando Jill intensamente, uma expressão quase diabólica no rosto – Jill está ocupada agora. Liga amanhã que hoje ela não vai poder atender. – informou e desligou. Jesse desviou o olhar para o telefone, para conferir se a ligação tinha mesmo sido encerrada antes de o devolver, e suspirou – Se ele continuar te ligando depois dessa é porque te ama de verdade. – disse, enfiando a mão livre, de onde Jill havia acabado de pegar o aparelho, no bolso da calça, de repente não tão confortável e confiante quanto tinha estado antes. Ela cogitou apenas o agradecer pelo que tinha feito e ir embora, mas ele tinha entendido errado.

— É bem provável que Brian volte a ligar sim. – concordou, sabendo em seu coração que àquela conclusão ao qual havia acabado de chegar era só mais uma pedra no muro que selaria o seu relacionamento com o ex no passado para sempre – Só que se ele continuar ligando não vai ser porque me ama, Jesse. Vai ser por não aceitar me perder pra outra pessoa.

Com um aceno de cabeça, Jill agradeceu silenciosamente ao domador e deu meia volta na direção de casa, sem olhar para trás. Jesse se deixou observá-la por um instante, mas mudou de ideia segundos depois e se obrigou a voltar a seus afazeres. Ele não podia esquecer sua função em Spring Creek.

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