Dez, III

Do corredor, Pietro estalou os dedos para chamar a atenção de todos. Barb, que verificava uma caixa com medicamentos na mesa de materiais, imediatamente colocou tudo o que fazia de lado para ir ver de perto o acontecia e Jesse voltou para o térreo com pressa, dessa vez usando a escada para descer de seu ponto de observação nas vigas do teto.

Do portão da baia de apoio, Jill assistiu a amiga e Pietro entrarem juntos na baia de Caramelo e a examinarem. Um instante depois, Barb mirou o assistente e disse as palavras que nenhum deles queria ter de ouvir.

— Vamos ter que interferir e precisa ser agora. – ela concluiu para logo em seguida engolir em seco ao lado da égua, que batia o rabo nervosa.

Parte do mundo de Jill foi desabando aos poucos à medida que ela assimilava cada uma das palavras ditas e o medo ia tomando conta de si. Barb prendeu o cabelo em um nó apertado no alto da cabeça e se preparou psicologicamente para executar a tarefa à sua frente. Ela começou a dar ordens a seus assistentes e os dois rapazes se puseram a acatar cada uma das exigências com o máximo possível de silêncio, enquanto andavam de um lado para o outro, quase fazendo parecer que o que estava prestes a acontecer era uma ação rotineira aos quais eram acostumados.

Sem se atrever a dar nem um passo a mais, Jill permaneceu onde se encontrava por medo de atrapalhar a movimentação da equipe até que Jesse, usando sua altura e o próprio corpo para bloquear a visão do que acontecia na baia da frente, se aproximou dela.

— Não olhe. – ele pediu, a abraçando e a fazendo andar de costas, a empurrando para trás, só parando quando os dois estavam no fundo do cômodo – Não tem motivos pra você ver o que a Dra. Trahan vai fazer, Jill. Se quiser, pode pegar meu carro e voltar pra casa. – ele ofereceu, mas ela balançou a cabeça.

— Vou ficar aqui no cantinho até acabar. – disse, sabendo que mesmo que saísse do pavilhão sua mente continuaria focada no que acontecia ali, e Jesse assentiu.

— Eu vou estar no corredor. Para o caso deles precisarem de ajuda.

Ele a soltou e deixou, voltando para onde podia ver o que acontecia. Jill se sentou em seu banco e puxou uma das mantas para o colo. Não estava com frio – de fato, o dia começava a esquentar lá fora – mas ter alguma coisa nas mãos, algo que pudesse apertar e abraçar, de alguma forma a fazia se sentir melhor.

Se alguém lhe perguntasse, Jill não saberia dizer quanto tempo passara agarrada naquele cobertor como se a vida de égua e filhote dependessem daquilo. Tudo o que seria capaz de responder era que, por tempo demais, a única coisa que ouvira foram ruídos que se propagavam pelo silêncio, ruídos estes que ela, aflita por notícias, tentara inutilmente interpretar.

De repente, um som esganiçado ecoou no teto acima e se espalhou por todo o pavilhão. Numa baia distante, um dos outros cavalos relinchou e Jill prendeu a respiração. Algo decisivo tinha acontecido. Mas o quê?

Ela tentou apurar os ouvidos ainda mais, desesperada para ouvir qualquer coisa que lhe desse uma pista, porém não havia nada. A agonia que sentia só teve fim quando Jesse entrou em seu campo de visão, e Jill viu que ele sorria.

–– Nasceu! – anunciou, mal conseguindo se conter de alegria, estendendo a mão para que ela se juntasse a ele no corredor.

Sem esperar nem mais um segundo, Jill jogou de lado a manta e pulou do banco, entrelaçando seus dedos nos de Jesse e o seguindo, mas ambos se detiveram na entrada da baia onde o parto havia acabado de acontecer. Barb estava ajoelhada no chão, suja com sangue, fluídos e coisas que Jill sequer se permitia imaginar, e sorria abertamente por pura felicidade. Na frente da amiga, sob a vigilância de Caramelo, o pequeno potro de pelo escuro dava passos vacilantes, as perninhas ainda trêmulas, enquanto tentava localizar o úbere da mãe.

— É uma fêmea. – Barb contou visivelmente emocionada, os braços sujos caídos ao lado do corpo, no rosto a expressão de dever cumprido por ter salvo aquela vida.

— Nesse caso, – Jill respondeu, sentindo uma lágrima rolar por sua bochecha – ela vai se chamar Amizade.

Barb olhou Jill por um longo instante, absorvendo o que tinha acabado de ouvir.

— Eu vou aí te abraçar. – ameaçou, afastando de si qualquer indício de sentimentalismo que pudesse ter deixado aflorar e levantando as mãos numa ameaça, fazendo Jill dar um passo para trás antes de começar a rir.

— Quem disse que eu quero? Você tá nojenta. – Jill respondeu, mas até mesmo Jesse sabia que aquela era uma das maiores mentiras que ela já havia se atrevido a contar. Abraçar Barb, ficar de bem com a amiga, era tudo o que o Jill mais queria.

— Você não tem que querer. – Barb retrucou, voltando sua atenção para o filhote, que finalmente havia encontrado uma das tetas da mãe – A sua sorte é que Amizade precisa de um check-up, e eu não tenho tempo pra desperdiçar com você agora.

De longe, Jill observou a amiga trabalhar. Barb, Jesse e Pietro trocaram Caramelo e Amizade de baia após o exame e Jesse e Enrico lavaram o local que havia sido usado no parto. Enquanto Barb se limpava, Jill ajudou Pietro a guardar no carro o equipamento que havia sido trazido da Clínica Trahan e, menos de uma hora após o nascimento, já não havia mais nada no pavilhão que indicasse a noite terrível que eles haviam passado. A não ser o cansaço estampado na cara de todos.

— Pietro e eu vamos embora, mas Enrico vai passar o dia aqui, só para garantir. – Barb contou a Jill enquanto as duas caminhavam juntas na direção dos carros do lado de fora – Senão, Jesse não vai descansar. É capaz dele passar o dia inteiro vigiando a Amizade.

Jill sorriu. Aquela era uma verdade. Apesar de ter certeza de que Barb não estava mais com raiva, Jill ainda sentia que precisava pedir desculpas. A amiga merecia sua sinceridade e a promessa de que nunca mais tentaria manipular suas emoções.

— Barb, eu... – ela começou hesitante, tocando o antebraço da amiga e a parando antes que as duas saíssem do abrigo do pavilhão para a claridade do meio da manhã – Me perdoa? – pediu com sinceridade, colocando naquela única frase o peso de todos os laços que elas haviam criado em todos aqueles anos, e que Jill desesperadamente queria que não se desfizessem.

Barb mirou Jill e prendeu a respiração. Ela não conhecia palavras capazes de descrever o tormento que os últimos dias tinham sido, mas sabia que se tivesse tido Jill ao seu lado tudo teria sido um pouco mais fácil. Jill era como um vício da qual ela não conseguia se desligar. Ter sua amizade sempre fizera Barb se sentir diferente, especial e querida, mesmo que houvesse o outro lado, o obscuro e cheio de consequências. Antes de ir dormir, ela ainda se amaldiçoava por ter se permitido apaixonar pelo único homem capaz de colocar a lealdade de Jill para com ela em segundo plano, e por aquilo jamais conseguiria se perdoar.

Foi Barb quem puxou Jill para o desejado abraço e a amiga, sem vacilar, a correspondeu com a mesma intensidade, com o mesmo alívio por ter a certeza que a amizade das duas ainda estava ali, tão forte como fora desde sempre.

— Eu só te perdoo se você me perdoar por ter sido uma idiota no telefone. – Barb contrapôs, blindando o coração como podia, se segurando para não chorar. Ela tinha dito coisas horríveis a Jill, coisas que a amiga não merecia ouvir, coisas que eram culpa somente da incapacidade dela em resistir a Collin Mcmillan.

— Não há nada pra perdoar, Barb, e você sabe disso. – Jill garantiu, se afastando para que as duas pudessem voltar a ficar de frente uma para a outra.

— Vamos colocar uma pedra em cima desse assunto? – Barb propôs, deslizando os dedos por uma mecha de cabelo de Jill – Até porque seu boy está vindo aí – ela sussurrou – e da próxima vez que formos conversar o que eu quero é saber como foi que isso aconteceu. – completou, o volume da voz diminuindo um pouco mais a cada palavra dita até quase ficar inaudível. Jill segurou uma risada e, um segundo depois, Jesse chegou até elas.

— Nós terminamos. – ele as informou a respeito da tarefa que ele, Pietro e Enrico tinham se afastado do pavilhão para realizar. Os três tinham ido até as margens do lago cortar capim fresco para Caramelo, uma gratificação por tudo o que ela havia passado nas últimas horas. – Eu posso te levar em casa se você quiser, Jill.

— Vou pegar carona com Barb. – ela o respondeu, o olhar o percorrendo, o querendo, assim como o dele fazia com ela – Você deveria ir dormir um pouco.

Se Barb não tivesse sentindo a tensão entre os dois, se não tivesse visto como eles se obrigavam a não se tocar, ela não teria acreditado. Jesse e Jill. Ali estava uma coisa improvável em centenas de formas diferentes, mas que ela botava fé.

— Tudo bem então. – ele respondeu com um aceno de cabeça, não tão sério como costumava ser antes – Até depois.

— Até. – Jill e Barb responderam juntas e as duas o observaram se afastar até Pietro aparecer e jogar a chave do jipe para as mãos de Barb. Ele também estava de carona com ela.

Com todo mundo destruído como estava, nada mais aconteceria naquele dia, mas Jill prometera que no seguinte iria até Denton para que ela e Barb pudessem finalmente conversar em paz. As duas se despediram dentro do carro em frente a casa dos Mcmillan com mais um abraço e um desejo de bom descanso. Barb e Pietro pegaram então a estrada que seguia para o sul, na direção da cidade.

Assim como Jesse, fazia mais de vinte e quatro horas que Pietro não dormia e Barb não conseguia compreender como é que ainda conseguia estar tão animado. Dentro do carro, ele não parava de comentar tudo o que tinha acontecido, completamente extasiado por achar que estava no caminho certo, que ser um veterinário especializado em equinos era o que queria para sua vida profissional. Barb, é claro, o incentivou a continuar, a perseguir o sonho de fazer mestrado na área, mesmo que sua atenção estivesse concentrada em outro lugar. Na verdade, em outra pessoa.

Já em casa, enquanto a água morna escorria pelo seu corpo exausto, Barb fechou os olhos e tentou parar de pensar em Collin. Fazia mais de dez anos que ela lutava contra si mesma, que evitava e se negava por medo de uma premonição, uma promessa de um futuro que ela não queria que fosse o seu.

Aonde aquilo tudo a tinha levado?

Ela não sabia dizer.

A única coisa que podia afirmar com certeza era que ainda o amava, que ainda estava irremediavelmente rendida à ele como sempre esteve, não importava o quanto se empenhasse em não estar.

Ouvi-lo dizer seu nome sendo sussurrado contra à sua pele, dito num agonizante tom de prazer... Sentir o quanto ele a desejava, o quanto havia esperado pelo instante em que ela o permitiria voltar a tocá-la... Barb ousava dizer que para Collin era a mesma coisa. Mesmo depois de tudo o que ela tinha feito, ele ainda tinha sentimentos por ela.

Foi por isso que decidira fugir sem sequer se despedir naquela noite, quando ele adormeceu em seus braços. O deixar era a única opção, a única coisa que podia fazer para se proteger porque sabia que, quando acordasse, Collin usaria todas as armas que possuía para fazê-la mudar de ideia. E ele teria tido sucesso.

A promessa que havia feito para a avó antes dela morrer? Não havia mais forças em Barb para a manter. E talvez, nem mesmo razão.

Barb se enrolou numa toalha de qualquer jeito e saiu do banheiro à procura de seu telefone, o encontrando na mesa da cozinha junto a sua bolsa. Ela puxou uma cadeira para se sentar, por medo de que suas pernas fraquejassem e elas realmente o fizeram. Achou que Collin não atenderia, que devia estar com raiva por ela tê-lo deixado mais uma vez e que seu telefone tocaria até que a ligação caísse na caixa postal. Só que ele atendeu antes mesmo que o segundo toque terminasse.

— Barb? – ele quis saber cheio de surpresa, não acreditando que era mesmo ela na linha, ainda que tivesse sido seu nome a aparecer na tela do telefone.

— Hey! – ela respondeu de uma vez, sem sequer tomar fôlego, sem pensar no que estava fazendo – Ahn... Estava pensando... a gente podia... sei lá!... Talvez... conversar um pouco?

Do outro lado, fez-se silêncio total. Foi quando ela percebeu o ruído ao fundo, gente rindo alto, conversando, música ao longe. Não era nem meio dia e Collin já estava numa festa.

Ou ainda estava em uma.

— Eu quero muito conversar com você! De verdade, Barb! É tudo o que eu mais quero! – Collin garantiu, algo já na primeira palavra que saíra de sua boca indicando que um porém se seguiria – Mas agora não dá. – ele completou – Eu tô prestes a subir no palco.

Uma gargalhada debochada de mulher soou ao lado dele, e aquilo foi o suficiente.

Barb engoliu em seco, obrigando tudo o que gerara aquela loucura de ligar para o ex a desaparecer, a se enterrar bem fundo dentro dela para que nunca mais houvesse uma chance de que voltasse à superfície, para nunca mais a tentar a cair naquelas mesmas armadilhas. Sua vó sempre tivera razão.

— Esquece que te liguei, Collin. – ela respondeu endurecendo a voz, levantando o queixo, se fechando – Ótimo show pra você.

— Barb! Esper-

Collin ainda tentou, mas ela já havia jogado o telefone contra a parede da sala.

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