Tem gente que demora a morrer


Sussurrou, os lábios grudados no telefone, a mão tapando a boca e parte do nariz:

– Alô. Sou eu. Não posso falar muito. Dei uma escapadinha só para lhe contar. Morreu. – risadinha curta, nervosa. – Finalmente, morreu.

– Morreu? Quem mor... – hesitação, constatação, natural descrença. – Eu não acredito.

– Morreu. Morreu, sim. Juro por Deus. Fulminante. Hoje de manhã. – riso úmido, euforia.

Uma gargalhada histérica, meio forçada, do outro lado da linha.

– Graças, meu Deus! Graças!

– Pois é. – controlou-se, sua vontade era de sair cantando, sambando e se espalhando pela rua, como se seguisse um trio elétrico. – Deixa eu ir. Minha família, a dele, tem um mundo de gente lá fora. A essa hora o corpo já deve ter chegado na capelinha.

– Livre, meu amor, você está livre. – Logo se corrigiu. – Estamos livres. – Tão bom dizer "nós". – Eu e você, livres, livres. – Nunca um plural fora usado com tanta volúpia.

Ela mordeu forte o indicador do punho cerrado, e a dor ajudou-a a manter a sanidade, controlar a embriaguês daquela felicidade desesperada.

– Me deixa ir. Vão estranhar. – soluçou.

– E quando a gente se vê? – atalhou, de repente apreensivo de que algo os separasse outra vez, medo da esmola grande. Sussurrou, rouco de desejo e ansiedade. – Quero te ter nos braços. Quero dizer baixinho no teu ouvido: minha, minha.

– Credo. – divertida. – Deixa ao menos o morto esfriar. – Seu sangue fervia.

– Se depender de frieza, gelado ele já era vivo, agora então... – não resistiu, foi cruel. Precisava sê-lo, afinal de contas o defunto, mesmo inocente, estagnara-lhe a vida por anos.

– Você é de morte. – Fechou os olhos com força e fez uma careta exagerada, um exercício facial horrendo. Seria possível alguém enlouquecer de contentamento? – Já vou, meu amor. Tenho que ir. Um espaçozinho, te ligo. Beijo.

Desligou antes que ele falasse. Se ele dissesse mais uma palavra, seria capaz de largar tudo, mandar às favas as aparências e convenções, correr ao seu encontro e amá-lo ao ar livre, em público.

Olhou-se no espelho, não parecia viúva, os olhos brilhavam demais, a pele tão fresca. E a escova que fizera no salão da Júnia dois dias atrás também não ajudava, ficara boa demais. Se soubesse, não teria feito, porque forças agora para molhar os cabelos e estragar o penteado, não tinha, estava se achando tão bonita e lisa. A viúva tem que ser desgrenhada, abatida, horrorosa, é isso que todos esperam.

E se perto do caixão não desse conta de chorar? A ideia monstruosa provocou-lhe uma contração do esfíncter e um arrepio por todo o corpo. Não, o choro era imprescindível, não tem nem perdão. A beleza na viúva é até aceitável, mas a falta de lágrimas, nunca! Pensou em sua vida dupla até ali, amante e marido, cada qual mais exigente, mais inflexível nos seus respectivos papeis. Talvez, se se concentrasse no tempo, anos e anos, que havia perdido, chorasse, nem que fosse de raiva.

Com um suspiro resignado, prendeu os cabelos num rabo de cavalo. Puxou alguns fios para dar uma impressão de desleixo. Teve uma vontade sobre-humana de usar um batonzinho que fosse, ou mesmo um pó, talvez um leve ruge. Mas resistiu heroicamente. Deu outro suspiro, dessa vez mais profundo, e saiu do quarto.

Do corredor já se ouvia o choro manso dos parentes, um coro de respirações entrecortadas, soluços contidos, assoares e frases feitas, sobressaindo-se de toda aquela fungadeira o gemido fino e aparentemente ininterrupto da sogra. Todos choravam, menos ela, a viúva, logo quem, olhos secos e brilhantes. A aflição provocou-lhe dor de barriga e calafrios. Uns óculos escuros, precisava de óculos escuros para ontem. Ah, e um lenço, de preferência um pouco úmido já. Voltou ao quarto. Sua vontade era de não sair dali até que a casa estivesse vazia de parentes e curiosos. Tentou se acalmar. Procurou os óculos. Tão espalhafatosos, meu Deus, mas pelo menos é grande. Ah, dane-se, melhor óculos chamativos do que olhos sem lágrimas. O lenço, não podia ir sem o lenço.

Procurava desesperadamente um lenço decente nas gavetas, quando lhe ocorreu a brilhante ideia. Existe o estado de choque! A pessoa fica com olhos secos e calmos, em muitos casos é até mais patético do que muitas lágrimas. Só a viúva que amou muito o marido é capaz de entrar em estado de choque. Será que daria conta de simular um? Como seria? Correu ao espelho do guarda-roupa, experimentou algumas expressões. Olhos ligeiramente abertos, vazios, olhar parado, um tanto calmo demais, boca entreaberta. É, achou que não estava de todo mal. Restava saber se conseguiria interpretar tão bem e por tanto tempo, a ponto de que deduzissem e se convencessem do estado de choque. Mas agora, logo agora que tudo estava no fim, não era hora para se acovardar. Respirou fundo, contemplou-se no espelho, tentou se enganar de que estava pronta, fez um sim decidido com a cabeça e foi.

No corredor, voltou a fazer a cara de viúva em choque que treinara há pouco. Estaria igual? Se tivesse outro espelho no caminho para se olhar, seria bom. Talvez a cabeça um pouquinho inclinada para um lado. Achou que estava muito bem. Não haveria quem dissesse que não estava realmente em estado de choque. Os braços moles, sem vida, nada de pendulá-los alternadamente como as pessoas normais fazem quando caminham. Isso, estava realmente muito bom. Mais alguns passos e estaria na sala. Ocorreu-lhe que, daquele jeito, mais pareceria ela uma alma penada, como se ela tivesse morrido, em vez do marido. A tão estapafúrdia ideia, sentiu um abalo tremendo, uma sensação de tragédia, de nudez interna. Sabia que aquele pensamento infeliz seria sua ruína. Mas era tarde demais, estava na sala.

Todos se voltaram à entrada da viúva, sobressaltados, como que surpreendidos em atitude indevida. Ela passeou os olhos pelo ambiente, tentando evitar as fisionomias quase assustadas. Todos a contemplavam maravilhados, ansiosos, uma interrogação nítida na testa, as mentes, unânimes, tentando desesperadamente catalogar aquela entrada triunfal e estranha. Houve um silêncio de cobrança de pênalti, ninguém ousava sequer respirar. O tempo parecia haver parado.

Por mais tentasse fugir, o magnetismo do olhar dos outros foi mais forte e sugou implacavelmente o dela. Parecia que viram um fantasma. Tal pensamento aliou-se ao anterior, imiscuíram-se, embolaram-se, e, como uma massa de pão à qual se acrescenta poderoso fermento, começaram a borbulhar, a inchar, a crescer. Desesperada, ela tentou controlar a respiração, trincou os dentes, concentrou-se com todas as suas forças a permanecer com lábios neutros. Logo, percebeu que o problema agravava-se a cada expiração, já que o ar saía entrecortado e acompanhado de gemidos cômicos, finos e lastimosos da mais profunda agonia. Se pudesse apenas inspirar, sem ter que expirar, poderia se controlar. Se seus pulmões tivessem uma capacidade inesgotável de acumular ar. Era na volta dele, ansioso para sair por suas narinas ou boca, que o caldo entornava. Se ao menos o ar encontrasse outro caminho, pensou, mesmo que fosse por baixo. Foi a gota d'água. Se o pensamento penúltimo havia sido uma colherada de fermento, o último foi o mesmo que um pacote inteiro despejado. A massa se avolumou ainda mais célere, a reação, como se não bastassem as enzimas dos próprios pensamentos, era ainda mais estimulada pelos rostos atônitos dos parentes. A certeza do abismo se aproximando dos seus pés sufocou-a a ponto de minar-lhe as últimas resistências. A gargalhada estridente, quase demoníaca, varreu toda a sala, congelando sangue em veias e fazendo eriçar os pelos mais impressionáveis dos presentes.

Não há sensação mais libertadora do que a de alguém que não tem mais nada a perder. Nunca uma risada fora mais prazerosa e longa. Ouvia indiferente os parentes fecharem os olhos e os ouvidos com as desculpas costumeiras. Histerismo. Pobrezinha, rindo de desespero. Colapso nervoso. A única que, mesmo se esforçando, não pôde engolir os estilhaços de gargalhada assim tão escandalosa e se calar, foi a matriarca da família. Num instante as lágrimas da senhora secaram, evaporaram ao calor da indignação. Isso é um acinte. Ela tem que se controlar, ora mais! O que a rua vai dizer?

Foi a raiva secular que a sogra lhe inspirava, fustigada pelos seus olhares de acusação e suas palavras ásperas, o que salvou a viúva de passar todo o velório do marido dobrando-se de rir. Aos poucos e a contragosto, a barriga doendo a quase não aguentar, ofegante e trêmula, o acesso de riso foi passando. O que essa velha tem a ver se rio ou deixo de rir? Acha que ainda vai mandar em mim depois da morte do filho? Pois sim, ela não perde por esperar.

Mas havia ainda seus parentes, os pais, irmãos, tios e primos, a esses devia lágrimas de viúva inconsolável e, por esses, resolveu se valer das lágrimas do riso e fingi-las de pranto. Emendou num choro afetado. Bateu os pés no chão infantilmente, pôs as mãos na cabeça e deu escândalo. Eu quero meu marido! Sacolejando em soluços exagerados, parecia quase dançar com os ombros um mambo inaudível. Como sou cínica, meu Deus! Os parentes acorreram com os corações partidos, ampararam-na e empurraram-lhe, quase garganta abaixo, um copo de água com açúcar, que lhe embrulhou o estômago de tão doce. Pelo canto do olho, viu a sogra ainda aborrecida, mas satisfeita com o show que acabara de presenciar. Velha azeda, sorte teve o marido de morrer novo! O pai, sem jeito, não era homem que lidava bem com emoções, acercou-se, olhos vermelhos, inchados, pôs-lhe a mão no ombro. A gente tem que ser forte, minha filha! A sogra levantou logo a crista. De jeito nenhum, a viúva tem que ser é fraca e exibir a dor da viuvez como um troféu. A rua não perdoa a viúva que não dá escândalo. Que isso, mamãe? A senhora tem cada palpite. A cunhada mais nova, a única que prestava daquela gente, levantou-se em tímida rebeldia. Será que ela entenderia e lhe perdoaria o amante? Apostava que não.

Precisamos ir, a capela quase não tem gente da família, pode pegar mal. Um espírito de porco tinha que lembrar aquilo. Não queria ir, não queria mais ver o marido, nem mesmo dentro de um caixão. Foram oito anos cuidando de um enfermo terminal. Terminal uma vírgula! Que terminal é esse que leva oito anos para terminar, meu Deus?! Sessões de quimioterapia, vômitos, náuseas, gemidos abafados, internações, salas de espera, camas duras de acompanhante, oito anos, oito anos. Não sabia como não se acabara junto com ele, como mantivera o viço. Que escolha fizera, meu Deus! Por isso, o adágio popular apregoa e com a máxima razão: quem muito escolhe com o pior se acolhe.

Ainda na época do colegial, com a leviandade própria de uma juventude vazia e lúbrica, conhecera e namorara ao mesmo tempo o finado e o amante. Optara por um, por ser mais velho, filho de uma família boa, empregado público, com situação e, sobretudo, por não ter pelos no peito. De fato, a ausência de pelos na época lhe parecera um motivo inconteste para escolha decisiva. Como fora estúpida. Lembrava-se direitinho do dia em que vira Giovanni sem camisa depois de uma pelada na quadra do colégio, aqueles pelos lisos e longos cobrindo todo o peito gotejante de suor. Sentira uma náusea tão medonha, por pouco não engulhara na frente do rapaz. Sem pensar, dispensou o infeliz sem dó nem piedade e correu para os braços do outro. Se pudesse voltar atrás. Quase quinze anos perdidos. É, quinze em tese, já que encontrara Giovanni depois de uma década e este a ajudara a passar pelo calvário da doença do marido. Como pudera sentir nojo daquele peito, seu atual tapete felpudo! Como amava aquele homem, como o desejava. Quanto tempo ainda teria que esperar para assumi-lo? Seu amor era forte, resistira a cinco anos de reclusão em quartinhos sórdidos, espremera-se em automóveis, apressara-se em minguados horários de almoço, valera-se de escapulidas breves à farmácia, camuflara-se entre consultas, mas agora, depois de tantos apertos, literalmente falando, clamava, exigia ar puro e luz solar.

Seis meses! Cria que seis meses seria tempo mais que suficiente para assumir o "novo" romance. Mais um ano de namoro e noivado. Em dezoito meses estaria casada. Apertada no carro entre a mãe e uma cunhada, suspirou sonhadora. Lembrando dos bons momentos que viveu com meu irmão, não é, cunhada? Foi arrancada do devaneio. Fez uma careta involuntária de contrariedade. Isso mesmo, temos que nos concentrar na imagem dele feliz e saudável. Sua vontade era de abrir a porta do carro e empurrar aquela mulher. Grunhiu de impaciência. A mãe a enlaçou e puxou-a para seu colo farto e úmido de suor, enquanto pedia com gestos desconexos que a outra não falasse no finado genro. Mamãe transpira demais. Sabia pecado ter nojo do suor materno, mas não se continha. Desculpou-se pensando que, por ojeriza ao suor alheio, estragara a vida, ao escolher o marido errado, portanto, já fora punida. Já estou melhor, mãezinha. Esforçou-se para se afastar do abraço sufocante. Que calor, meu Deus. Já ia pedir para que abrissem mais a janelas do carro, quando este dobrou a esquina e a alvura da capela ofuscou-lhe a vista. Meus óculos escuros. Quase gritou. Esqueci. Desesperou-se. Será que ainda conservava os olhos marejados desde o acesso de riso? Esperança! Óbvio que não. E se não conseguisse chorar? Calma, estão aqui na minha bolsa. Você deixou cair na sala quando. A mãe ia dizer ataque histérico, mas se conteve. Deixa estacionar que lhe dou, filha. Carro apertado, não se pode nem se mexer. Pensou que, se não fosse pela obesidade materna, estariam até folgadas no banco de trás. Só a senhora mesmo, mãezinha, para cuidar bem de mim. Fungou dengosa e teatral no lenço de papel.

A igreja estava quase cheia. O finado, apesar de ter poucos amigos, homem caseiro e trabalhador, era de um clã mais prolífero que família de coelho. Taí, coelho, afinal, uma boa comparação para o finado nos áureos tempos dos primeiros anos de casamento. É, porque depois nem isso. Saboreava a crueldade dos pensamentos contra o morto, como quem morde um picolé numa tarde quente de verão. Era um prazer, mais, era quase uma necessidade desancar a memória do falecido e toda sua raça. Uma tia-avó veio e a surpreendeu com um abraço apertado demais, quase a derrubando. A gente tem que ser forte, nós somos como uma vela, qualquer vento apaga. Sentiu a umidade do rosto da senhora atravessando-lhe o vestido e grudando-se-lhe no ombro. Seriam só lágrimas, ou coriza também? Tinha vontade de empurrar a velha para longe. Teve que se conter. Suplicou ajuda à cunhada, que veio ao seu socorro. Livre do torno que era aquele abraço insólito, só conseguia se fixar na umidade no ombro, contorcendo-se interiormente de asco. Se pudesse tomar um banho. Quantos abraços daquele mais teria que suportar? Levantou o queixo, forçando uma sofrível dignidade de viúva, e foi, sem olhar para os lados, decretada e a passos largos em direção ao féretro.

Até que haviam feito um bom trabalho no defunto, parecia até que a morte lhe restituíra a saúde, tão corado, o rosto até mais cheinho, uma expressão serena, como se dormisse. Tão diferente do vulto macerado e agonizante da véspera. Uma boa maquiagem fazia milagres. O defunto lembrava-lhe o homem com quem casara, mais envelhecido e magro, é claro. Sentiu uma pressão no peito, um bolo na garganta. Que bobagem era aquela agora? Ternura tardia? Remorsos? O que fizera de sua vida? O que fizera com a vida daqueles dois homens que a amaram com loucura? Sim, porque não havia dúvida, o marido a amara também. Quantas vezes não sufocara as dores terríveis da doença no travesseiro para não lhe perturbar o sono? Muitas. Sabia, porque, o sono frágil e tenso, acordava sobressaltada várias vezes por noite e lá estava o pobre, suando frio, tremendo, mordendo a fronha, contorcendo-se todo. Você já dorme tão pouco, não queria lhe acordar. Não está tão forte assim. Agastava-se com ele, odiando-lhe o que, então, dizia ares de mártir. Ele baixava a cabeça e aceitava as asperezas da esposa, prometendo não fazer mais, o que a deixava ainda mais possessa. Ali, diante do morto, no entanto, aquelas lembranças a sufocavam, a oprimiam. Com espanto, percebeu que os olhos se inundavam de lágrimas quentes. Um soluço doído se lhe rompeu garganta afora e ela debruçou-se sobre o corpo do marido. O som daquele choro, grave, forte, chocava-a tanto, que quase duvidava vir da própria boca. E quanto mais chorava, mais imagens do marido lhe vinham, a lua de mel em Roma, a primeira viagem internacional de sua vida, os primeiros aniversários de casamento, os quais sempre passavam num lugar diferente, as pequenas atenções, lembrancinhas e surpresas que ele gostava de lhe fazer, seu ar quieto, pensativo, de uma humildade canina, o estoicismo com que enfrentou todos os anos da doença. Agora, ante a morte, o fim de um caminho, agora que nada mais podia ser feito, sentia uma compaixão tão profunda por aquele marido, que sua vontade era de subir naquele caixão e lhe abraçar o rigor mortis até suas carnes se misturarem para sempre. Amor?

– Djanira?

Uma voz muito sua conhecida atingiu-a como um raio invertido, que subisse das entranhas da terra e lhe eletrocutasse a alma. Tremendo dos pés à cabeça, virou-se lentamente. Distante poucos metros, uma interrogação furiosa nos olhos arregalados, Giovanni. Inconscientemente, prendeu a respiração. O que mais poderia fazer além disso? Explicar ao amante as lágrimas, agora suspensas, mas que ainda lhe molhavam a face? Explicar como, se nem ela as entendia, meu Deus? Mandá-lo embora, enxotá-lo como a um cachorro lazarento, o homem que há menos de uma hora amava com paixão? O que dizia? Não o amava mais? Para onde fora o amor? E as outras dezenas de olhares cravados nela? Como lhes explicaria qualquer atitude que tomasse? Todos saberiam. Diriam: Tinha amante. O esperado, o comum seria que aparecesse no velório os casos amorosos do falecido, não os da viúva.

– Que choro todo é esse, Djanira? Para que o carnaval? – Giovanni, rangendo os dentes, cuspia cada palavra como se rosnasse, olhos cravados nos dela.

Parece maluco. Está maluco de raiva. Dor de corno. Traíra o amante como o marido morto. Pelo silêncio que se fazia, era como se todos estivessem dentro do mausoléu da família.

Giovanni caminhou em sua direção. Ai, meu Deus, o que ele vai fazer? Ele suava, narinas dilatadas, um touro enfezado ao vermelho de um manto tremulante. Desviou o olhar do dela, e observou por arrastados segundos a tranquilidade do morto. Seus lábios se arreganharam num esgar cruel e vitorioso. Aproximou-se mais. Ela não conseguia se mexer. Então, ele deu o bote: puxou-a para si e abraçou-a com brutalidade e lascívia, cobrindo-a de beijos molhados de suor e baba, beijos que logo se transformaram em mordidas. Ela sentiu a masculinidade do amante comprimir-lhe a perna. Por sobre o ombro dele, viu os olhos esbugalhados de todos, os queixos chegando aos respectivos umbigos. Entre todos, os olhos do pai se sobressaíam. Nada lhe era mais terrível que o horror e a condenação paterna. Com uma súbita fúria de leoa parida, começou a chutar, esmurrar, empurrar o amante, gritando: canalha, desgraçado! Me larga, cão! Foi tudo muito rápido. Antes que os homens da família acorressem em seu socorro, desprendeu-se com tamanha violência, que perdeu o equilíbrio e caiu em câmera lenta para trás. Não sentiu o corpo chegar ao solo, antes, um clarão lhe explodiu da nuca por toda a cabeça, e depois a escuridão.

Mais de trinta anos se passaram desde então, e até hoje, na cidade e redondezas, a lenda urbana da viúva mais honesta de que já se teve notícia, a mulher que preferiu a mais tola e simbólica das mortes (bateu a cabeça na quina do caixão do finado) a macular a própria honra e a memória do marido, ainda faz muita gente esticar o lábio inferior e balançar a cabeça de admiração.

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