Tão espontâneo quanto um afeto (Final)
– Sim, Tarcísio, você veio fazer aqui mesmo o quê? – rompeu o silêncio asfixiante.
Tarcísio, sentado, continuou de cabeça baixa, o rosto escondido entre as mãos, os cotovelos apoiados nas coxas, imóvel, exceto por um leve tremor que lhe percorreu o corpo à pergunta hostil da ex-mulher.
– Ela me abandonou. – gemeu por fim. – Fugiu com o professor de pilates da academia. Foram para São Paulo no carro que eu dei pra ela. – rompeu em soluços. – Cinco meses. Foi o pagamento pelo carro. Cinco meses. – E não pôde mais continuar.
Socorro tremia, uma raiva voluptuosa que se consome e se satisfaz com o próprio fogo, uma euforia agressiva, feroz, insana, uma vontade de gritar, de gargalhar. Mordeu o lábio inferior, tanto que sentiu o gosto de sangue na boca, gosto de justiça. Não, justiça não. O justo teria sido ele não a ter abandonado. Era o gosto da vingança mesmo, tão doce, tão quente, tão forte.
Levantou-se com pudor da fervilhante satisfação que o som grosso do choro daquele homem lhe causava. Foi à cozinha. Ofegante, apoiou-se à pia, debruçou-se, encostou a testa no mármore frio. O coração parecia-lhe a qualquer momento rebentar. Permitiu-se um riso silencioso, trincado nos dentes, demoníaco. Bateu com a testa na pia algumas vezes. Ergueu-se, aprumou-se, tentou controlar a respiração. Pegou um copo, encheu de água do filtro e adoçou com duas colheres generosas de açúcar. Voltou para a sala.
– Toma. Bebe. – estendeu o copo ao ex-marido.
Tarcísio, com um olhar vermelho e alagado de gratidão e humildade, pegou o copo com as duas mãos, e foi bebendo devagar, o corpo de vez em quando sacudido por soluços que se foram gradativamente espaçando.
– Muito bem, Tarcísio. Quer dizer, então, que você foi passado para trás e achou interessante vir aqui e chorar suas mágoas no meu ombro, logo no meu ombro? – Socorro foi irônica, sua mágoa ainda não estava satisfeita. Ia, inclusive, dizer "chorar sua dor de corno", mas achou que seria vulgar e indigno dela, a esposa traída.
– Não. – Tarcísio apressou-se em dizer, levantando para ela sua fisionomia súplice, contrita, atormentada. – Eu vim aqui, porque minha vida acabou e eu preciso do seu perdão para morrer. – Voltou a chorar.
O sangue de Socorro gelou. De repente, o gosto inebriante de ver o traidor padecendo da mesma dor que lhe impingira azedou, foi substituído por outro, repulsivo, seco, uma baba espessa que se lhe grudava na língua.
– Como é que é, Tarcísio? Que história é essa? – o mesmo tom materno, que aprendera a usar com o marido no decorrer daqueles anos todos, tornara a se impor, um hábito difícil de ser suplantado.
Entre lágrimas, ele contou-lhe tudo. Depois de ser abandonado, ele caíra prostrado de desgosto, raiva e impotência. Nunca se sentira tão só. Para falar a verdade, sentia-se só desde quando ainda estava com a outra. Sua solidão de cadáver insepulto, agora ele sabia, começara mesmo no momento em que cruzara a porta de sua casa, e, se dizia aquilo, não era para obter dela o perdão, mas porque era a pura verdade. Sua gastrite de sempre piorou, perdeu o apetite, emagreceu, e, julgando ser consequência de seu quadro depressivo, tardou em procurar ajuda médica. Somente quando vieram as diarreias frequentes, as tonturas e a dor nas costas, marcou consulta, fez exames, mas já era tarde.
– Câncer no pâncreas. Estágio avançado. – crise forte de choro. – Eu estou morrendo...
Ela se sentia sendo estrangulada por uma força sobrenatural, nem a saliva conseguia engolir. Onde antes só havia a alegria feroz da vingança, agora uma necessidade serena de proteger, uma ternura infinda, uma piedade urgente e transbordante inundava tudo, uma vontade quase que irresistível de abraçar aquele homem desgraçado, frágil e só. Soube com absurda clareza a partir dali que o perdão não é uma decisão racional, que na verdade nem é uma atitude que se toma diante de um agravo, que o verdadeiro perdão é um estado de espírito tão espontâneo quanto um afeto.
Não o abraçou, como tremia por fazê-lo, seu orgulho de fêmea, que ainda protestava debilmente contra aquela misericórdia irrestrita e incondicional, barganhou aquela última concessão de não tocá-lo.
– Bobagem. – endureceu a voz, aquela hora não era para fraquezas. – Hoje em dia a medicina como está, logo logo lhe deixam novo.
– Me desenganaram. – balançou energicamente a cabeça em negativa. – Disseram que minhas chances eram muito pequenas e que...
– E não sabe ir a outro médico, não? Esses casos exigem uma segunda opinião, até uma terceira, se for o caso. – Levantou-se, precisava se recompor, não podia fraquejar na frente dele. – Vou dar uns telefonemas, procurar na internet. Quero saber quem é o melhor oncologista dessa cidade. Você procura qualquer médico e. Pois muito bem, as chances são pequenas, mas existem, ora.
Correu da sala e fechou-se no "escritório", o cômodo onde estava o computador, os livros e as suas relíquias acumuladas em três décadas. Lá desabou. Mordeu a própria mão para abafar os soluços.
Quando voltou para a sala, já havia engolido novamente as emoções.
– Pronto. Já marquei uma consulta para amanhã às duas e meia da tarde. O endereço. – estendeu-lhe um papel rabiscado nervosamente. – Querendo, posso ir contigo. Na frente do médico, nunca sabe dizer direito o que está sentindo.
Tarcísio olhou para aquela mão estendida, não se conteve, agarrou-a como se fosse sua salvação, cobrindo-a de beijos, lágrimas e saliva.
– Deixa de besteira, Tarcísio. – Puxou a mão nervosa. – Cada uma. E outra: ninguém me diga que uma luta já está perdida, antes mesmo de começar. Amanhã você se prepare, que a guerra pode até ser muito dura, mas eu te mostro, Tarcísio, como você vence essa. Ou não me chamo Maria do Socorro.
Não venceram, mas lutaram juntos, e não só contra a doença, mas contra também a incompreensão alheia, família, amigos, a maioria horrorizada com aquele perdão, que julgavam uma fraqueza, uma falta de vergonha na cara e de amor próprio.
– Perdão tem limite. – comentava-se. – Não digo que ela virasse as costas pro sujeito, mas trazer para dentro de casa de novo, francamente.
Os próprios filhos, inconformados, se opuseram acintosamente.
– Mamãe, olha, estamos decepcionados com a senhora. Aceitar aquele homem depois de tudo o que ele lhe fez.
– Aquele homem é o pai de vocês. – Socorro empertigou-se, falou baixo, rasgando as palavras entre os dentes, mas, na posição de ré ante aquele júri familiar, logo abrandou o tom de voz. – O que vocês queriam que eu fizesse? A quimioterapia é terrível.
Mesmo a comunidade da igreja olhava para os dois com uma condescendência algo maliciosa e reprovadora. Passaram a ir cada vez menos ao culto, até abandonarem de vez. Interessante os códigos morais que a sociedade respeita e segue, pensava amargurada, se fosse um assassino que me tivesse tirado a vida de um filho, por exemplo, que Deus me defenda, todos admirariam e louvariam minha capacidade de perdoar. No entanto, ninguém aceita, nem entende o perdão de uma infidelidade, chegam a achar quem perdoa mais execrável que o próprio infiel. Todos me condenam, me julgam, me exilam, assim como fizeram com ele.
Assim, os dois párias tiveram ainda mais motivos, como se já não bastasse a história de uma vida, para ficarem juntos, unidos mais do que nunca, até o fim.
E agora ali, sozinha, diante do túmulo do marido, uma sensação de preenchimento, uma tristeza sem amargura, branda, suave, de quem fez o que tinha de fazer, o que quis fazer, e tem a consciência em paz, ela se sentia quite com a vida.
– Adeus, Tarcísio. Adeus. – Sussurrou antes de virar as costas ao túmulo e caminhar para fora do cemitério.
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