Tão espontâneo quanto um afeto (1ª Parte)


Sentiu as pernas fraquejarem e, para seu desgosto e autorreprovação, o sangue fugir-lhe do rosto, ao abrir a porta e se deparar com o ex-marido. Segurou firme no trinco e no umbral da porta para se apoiar e disfarçar o tremor de sezão que lhe ia por todo o corpo. Tentou ser coloquial, pôr o máximo de naturalidade na voz:

– Tarcísio? – apenas conseguiu tartamudear-lhe o nome.

– Posso entrar, Socorro?

Ele parecia tão envelhecido, cansado, encolhido. Podia jurar que até mais baixo do que quando saíra de casa meses atrás. Engoliu em seco, armou-se.

– Pra quê? Não tem mais nada seu aqui.

– Deixa eu entrar pelo amor de Deus, Socorro. – suplicou, a voz trêmula, baixando a cabeça e comprimindo os olhos fechados com o polegar e o indicador.

Pensou em se opor, quis tornar a ressaltar que dele ali não havia mais nem vestígio. Mentira, havia lembranças, e como doíam. Mas uma força como que exterior a sua vontade a fez afastar-se, dando passagem àquele homem que destruíra uma vida que levara mais de trinta anos para construir.

Quando Tarcísio anunciara, eufórico, a aposentadoria, Socorro recebeu a notícia com um sorriso amarelo. Já vinham há mais de ano se preparando para o grande dia, ele, torcendo para o tempo voar, ela, querendo que o mesmo se arrastasse o mais devagar possível. O que esse homem faria dentro de casa o dia inteiro, meu Deus? Socorro conhecia bem o marido, sabia o quanto a inatividade lhe azedava os ânimos. Aprendera, inclusive, que as férias do casal deveriam ser ocupadas integralmente, ou com uma viagem, ou com passeios, oficinas, cursos, o que fosse. Três dias no máximo de ócio eram suficientes para ele quase a matar de raiva e ansiedade por vê-lo de volta ao trabalho.

Assim, quando surgiu a ideia de o marido voltar a estudar, cursar jornalismo, sonho antigo e sempre adiado, foi a primeira a apoiá-lo. Depois de três meses sofríveis de aposentadoria, o homem virado numa fera presa, subindo pelas paredes, o projeto pareceu a Socorro um achado, a grande solução. Pressurosa, quase que insidiosa, não apenas o animou, como também tratou de derrubar todos os obstáculos que o próprio Tarcísio levantava, na sua indecisão e reticência de voltar para uma sala de aula na idade em que estava. Arregimentou e articulou em prol de sua causa toda a família, amigos e até pessoas da igreja.

Socorro conseguiu. E, satisfeita e orgulhosa de seu feito, acompanhou maravilhada o entusiasmo juvenil e contagiante do marido, que o remoçara em um semestre pelo menos uns cinco anos.

A partir de meados do segundo semestre do curso, porém, Tarcísio mudou, tornou-se irritadiço, monossilábico, o cenho constantemente franzido. Socorro estranhou:

– Meu filho, a faculdade era para lhe fazer se sentir renovado, para você se ocupar, e não se "preocupar". O que está acontecendo? Muita matéria para dar conta, você não está conseguindo acompanhar?

– Mais ou menos. – foi lacônico.

– Pegue menos disciplina, então. Para que essa sangria de acabar o curso logo? Não tem porquê. – Deu a "solução", convencida de que ele, sem o bom censo dela, era como uma criança.

De forma que Socorro nunca esperara que, menos de mês depois daquela conversa, Tarcísio anunciasse uma paixão tardia e fulminante por uma colega de curso e, consequentemente, o fim do casamento. Tamanho foi o inusitado da notícia, tamanho o assombro, que, no primeiro momento, Socorro nem sofreu. Uma sensação de irrealidade a envolveu e foi quase com indiferença que acompanhou o marido saindo de casa, puxando as malas, cabisbaixo, ombros derreados, olhos vermelhos e adeus embargado.

Os filhos, a família, parentes de ambos os lados, todos ficaram do lado da esposa abandonada. Amigos, vizinhos e conhecidos também. Fizeram romaria na porta de Socorro para lhe prestarem a velha solidariedade curiosa, bem comum nesses momentos. E todos saíram de lá confusos e um tanto decepcionados com a serenidade e o desdém incompatíveis com o que se espera de uma mulher traída e trocada por uma ninfeta com pouco mais de um terço de sua idade.

Socorro ficou naquele estado letárgico por um tempo que, mais tarde, não soube precisar, dias, uma semana, talvez um pouco mais. O choque de realidade veio quando de um incidente, bastante banal até, pelo menos aparentemente, ocorrido logo na primeira vez em que saíra de casa depois da separação. Fora levada pela filha mais velha, muito preocupada com a calma antinatural da mãe, aliás como os outros dois filhos, para fazer compras num supermercado e reabastecer a dispensa, àquela altura quase vazia. A ideia da filha era ir devolvendo aos poucos a mãe à rotina, ir gradativamente ocupando-lhe os dias. O plano no final das contas teve um resultado positivo, mas não pelos caminhos imaginados por sua mentora.

Aconteceu que, ao passar pela seção de perfumaria, displicentemente, Socorro pôs no carrinho um frasco de espuma de barbear. Pressurosamente, a filha catou o produto e devolveu a prateleira:

– Para que espuma de barbear, mamãe?

Socorro estacou como se tivesse levado uma pancada nos rins. Olhou para o carrinho desfalcado do último item, olhou para a filha, para a prateleira.

– É. Tem razão. Para que espuma de barbear se sou uma mulher largada? – e foi aumentando o tom de voz. – Devia ser proibido que uma mulher abandonada depois de trinta anos de casamento comprasse espuma de barbear. – já gritava a plenos pulmões. – Nunca mais eu compro espuma de barbear, nunca mais! – a filha, no auge do desespero, ora corria de um lado para o outro, ora dava-lhe tapinhas nas costas, ora implorava com mímicas e caretas por silêncio ou simplesmente que falasse mais baixo, ora escondia o rosto com as mãos, ora se desculpava com os curiosos, ora os desafiava e insultava. – Eu não posso mais comprar espuma de barbear! Eu não posso! – os joelhos se lhe vergaram ao peso de sua desolação, e ela caiu de quatro no meio do supermercado, expulsando de si aos urros todo o horror daquela traição jamais suspeitada.

Daquele dia em diante, começou seu calvário. Para conseguir parar de chorar e de se autoflagelar, precisou de ajuda psiquiátrica. Até se cogitou na família a possibilidade de internação. Definhou, envelheceu, caiu em depressão, desceu ao fundo do poço. Mas sobreviveu. O carinho, o apoio dos filhos, da família, dos amigos a levantaram. Isso e sua índole orgulhosa.

E agora, que se habituara à "viuvez", que suas feridas já não a envenenavam, aquele homem surgia do inferno para lhe atormentar.

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