Quem disse que Freud morreu?
Estava no meio do longo corredor de uma escola e inteiramente nu. Sua primeira reação, antes mesmo de se perguntar como viera parar ali e naquele estado, foi a de cobrir as vergonhas com as mãos, o que é perfeitamente natural e compreensível, ainda que, ante situação tão esdrúxula e vexatória, gesto praticamente inútil.
O que estou fazendo aqui, meu Deus? Não consigo lembrar. No momento, no entanto, não podia dar-se ao luxo de parar e ocupar o raciocínio com a tentativa vã e pouco pragmática de recordar a sucessão de eventos que o trouxeram até ali. Precisava fazer algo. Mas o quê?
Uma dor de barriga devastadora anunciou-se sem cerimônia. Um suor frio cobriu-lhe instantaneamente a testa, arrepiou-se-lhe a nuca. Precisou concentrar todo seu ser na ação heroica de contrair ao máximo toda a estrutura muscular do último esfíncter do seu aparelho digestivo e não se borrar completamente ali mesmo. Por um momento deixou de existir, somente seu ânus existia.
Aos poucos a batalha foi sendo decidida a seu favor, mas a guerra, esta, sabia, era perdida. Aquele inimigo sujo e inexorável jamais oferecia longos períodos de trégua e invariavelmente se fortalecia ataque após ataque, fazendo seu adversário curvar-se impotente e dar-lhe passagem.
Um banheiro, onde acharia um banheiro? Um reservado seria a saída perfeita: resolveria tanto o problema da sua nudez, ainda que paliativamente, quanto o das suas urgências pouco dignificantes.
Lembrou-se, então, de que dentro das salas de aula havia um banheiro, na verdade um vaso sanitário e uma pia dispostos num dos cantos de cada sala e desta não separados sequer por um biombo, apenas distintos do resto do ambiente por uma elevação no piso de um degrau. Quem teria sido o animal do engenheiro ou arquiteto que teria projetado uma aberração daquelas? Haveria algum louco que, no meio da aula, pedisse licença e usasse a privada nada privada?
A tal pensamento, uma nova investida das tropas inimigas e consequente contração das parcas defesas de sua retaguarda. Ah, se houvesse alguma sala vazia, se um algum professor tivesse adoecido, ou morrido, e a turma tivesse sido dispensada.
Recrudescimento do ataque adversário, gotas de suor escorrendo pela face lívida. Não havia como escolher ou procurar alguma sala vazia. Entrou na primeira por que passou, uma quase no fim do corredor.
A aula não havia acabado e a sala estava lotada, mas o professor aparentemente se havia ausentado. Aquele estabelecimento de ensino não devia ser destinado à educação básica. Os alunos todos muito bem vestidos, camisas de manga longa, gravatas, paletós dependurados nos encostos das carteiras, as mulheres maquiadas, cabelos escovados, tailleur na medida. Devia ser alguma faculdade e, olha, bem elitizada. Seria ele um calouro vítima de algum trote? Por que não lembrava, meu Deus? Sabia do banheiro no canto da sala, mas não sabia o que se estudava ali. Estava tão confuso.
Num golpe de vista certeiro, percebeu uma carteira vazia exatamente no meio da sala. Tentando parecer natural, pediu uma licença rouca, quase inaudível, e, sem esperar resposta, marchou como se o chão fosse de gelatina, direto para o dito assento. O constrangimento da própria nudez ante os olhos tão bem vestidos da sala era como um treinamento para uma morte dolorosa.
Gozado. Essa sala. Tão parecida com o quarto de seus pais.
O ato de sentar-se enfraqueceu-lhe as defesas e o inimigo fez uma investida brutal. A cadeira por todos evitada tinha um defeito, um furo no assento, portal por onde as tropas vencedoras desfilaram com alarde de trombetas, orgulhosas, rumo à tão almejada liberdade. Num esforço supremo, reuniu todas as suas defesas e impediu que parte dos exércitos inimigos lhe vencessem o bloqueio. Revoltadas por no último momento terem sido feitas prisioneiras de guerra, ainda tentaram rebelar-se, porém, enfraquecidos pela baixa de parte das tropas, não lhe restaram alternativa que não retrocederem em busca de reforço.
Apesar de ter conseguido uma pequena vitória, sua derrota era bem mais fragorosa, e como cheirava mal. Ele não via, nem tinha coragem de ceder à curiosidade, muito normal, comum até, de encarar o que de si sai, mas a imagem vívida em sua mente era como uma fotografia: o monte uniforme e roliço de excremento bem em baixo de seu assento, num ponto de uma centralidade absurda, exatamente equidistante dos quatro pés da cadeira.
Vencido e humilhado, a única postura digna a tomar, se é que se pode falar em dignidade numa situação tão insólita e infame, era a de uma fingida naturalidade. Como se fosse a coisa mais normal do mundo defecar no meio de uma aula. A quem pensava enganar? No entanto, não havia o que fazer.
No afã de aparentar indiferença e superioridade, lutava até gotejar-lhe a testa contra os músculos dos cantos da boca, que tremiam e teimavam em curvarem-se para baixo. As mãos, de uma algidez úmida e repugnante como as dos anfíbios, agarravam-se ao tampo da carteira com a força de um afogado a uma tábua de salvação.
Se ninguém percebesse, seria uma graça tão grande, meu Deus. Como em resposta a esse pensamento, um odor grosso e morno apoderou-se de toda a sala. Cochichos, risadas abafadas, cadernos frenéticos e ruidosos abanando seus donos, reprovações, resmungos, cadeiras arranhando o piso numa busca inútil por uma periferia menos fétida. Por que Deus não o levava de uma vez? Nunca a morte lhe pareceu tão doce. Todos se sentiriam culpados e cruéis se ele caísse morto, fulminado, ali mesmo.
Entra o professor. Imediatamente, um dos alunos pede permissão para abrir a janela, afinal de contas, com semelhante mau cheiro, quem poderia se concentrar na aula. Alguém resmunga da falta de compostura de quem fazia uma coisa daquelas. O professor autoriza. Dois alunos próximos à única janela da sala levantam-se e a abrem de par em par, revirando os olhos de alívio ao aspirarem o ar puro exterior.
O professor retoma a aula. Começa a falar em inglês. Não pode ser. Em inglês?! Se ao menos pudesse se concentrar na bendita aula, mas não entendia uma palavra nem do que o professor dizia, nem dos apartes dos alunos, também em inglês. Nem ao menos tinha forças para rir amarelo ou balançar a cabeça em concordância, quando a maioria da sala o fazia. Nunca se sentira pior na vida. A sensação de inferioridade chegava a doer nos ombros e na nuca.
Por que essa maldita aula não acaba? Até quando vai essa tortura?
Um novo ataque das tropas inimigas, que mesmo enfraquecidas pela baixa do primeiro batalhão, ainda era dignas de respeito, o fez, impaciente, mudar de posição na cadeira. Poderia agora vencer muitas outras batalhas, no entanto, naquele momento, o que mais desejava na vida era poder se render de uma vez por todas e até aplaudir o desfile dos exércitos adversários, vencedores natos, rumo à conquista da liberdade. O que devia fazer era levantar e dirigir-se de uma vez por todas ao sanitário do canto da sala, afinal de contas o que tinha a perder? Nada. Já estava no fundo do poço. Era levantar e de cabeça erguida ir ao sanitário. Só alguns passos. No máximo, teria que desviar de algumas carteiras, pedir algumas licenças, só. Mas onde forças para aquele gesto digno?
O professor fechou o livro, indicando (Glória a Deus!) o fim da aula. Uma pontada forte, um ataque surpresa e covarde o fez empertigar-se na cadeira. Como que, então, as tropas não estavam tão fracas assim?! Nunca se deve subestimar um inimigo.
Os alunos foram deixando a sala, conversando entre si, descontraídos, sem pressa nenhuma. Os desgraçados pareciam retardar a saída de propósito. Lembrou-se da ânsia com que esperava pela hora do intervalo, no tempo em que estudava. Saía da sala quase a galope.
Uma aluna, com passos lânguidos, olhar insinuante, aproximou-se do professor, pretextando uma dúvida. A infeliz não podia flertar no corredor? Ah, claro que não! E deixar todos perceberem semelhante impudor?! Eles estão se comendo com os olhos, meu Deus. Ela mordendo o lábio inferior, ele sorrindo cínico. Se fosse um homem de caráter, de personalidade, diria: Não estão me vendo? Por que não vão terminar logo essa pouca vergonha em algum lugar reservado?
No entanto, os três não eram os únicos na sala. Com um estremecimento, quase um susto percebeu que havia uma quarta pessoa. O magnetismo de um olhar insistente o fez desviar a atenção do lascivo casal. Um homem muito bonito, de impressionar até outro homem, o fitava com uma obstinação aquilina, um sorriso velado, um olhar de predador.
Desconcertou-se. O que aquele homem queria? Parece que sabe de alguma coisa. Mas sabe o quê? A mente frenética, os olhos inquietos acompanhando o raciocínio tenso, tentou lembrar-se de algum podre do passado. O que ele poderia saber, meu Deus? Não, não sabe de nada. Aquele olhar quer dizer outra coisa. Mas, o quê? Apesar de não querer, ele sabia.
Levantou-se abruptamente. E se procurasse outra sala vazia? Pelo visto aqueles dois mais um pouco fariam sexo ali mesmo, em cima da mesa do professor, em cima dos livros e provas. Não sairiam da sala tão cedo.
Ainda tentando aparentar a naturalidade que estava longe de sentir, pisando frouxo, sem conseguir articular direito os movimentos do corpo, rumou para a porta.
Uma mão o retém pelo ombro já à porta da sala. O homem de olhos de águia. Olhos tão claros, tão bonitos. Ah, se tivesse olhos como aqueles.
Queria lhe pedir um favor. Poderia massagear meus testículos. É que estou suspeitando de que tenho câncer. Eu precisava que alguém visse se existe algum nódulo. Seus olhos pareciam sinceros, mas aquela boca curvada naquele sorriso dúbio...
Engoliu em seco. Quis protestar, recusar-se categoricamente. E se fosse uma piada?
Mas aqui? Olhou em direção a braguilha do outro. Sentiu algo despertar em si, algo que logo seria bem visível, para seu maior desespero. Nunca uma nudez fora tão dolorosamente absoluta.
Qual o problema? Olhos claros tão inocentes.
Nenhum. Muito natural um homem massageando os testículos de outro à procura de um tumor, tudo isso em pleno corredor de um colégio, ou faculdade, seja o que for. Quis ser irônico, mas só conseguiu evidenciar o próprio nervosismo. Enquanto falava olhava constantemente para as duas extremidades do corredor deserto. Pensei que esse corredor fosse mais comprido.
Mas pode ser câncer. Mordeu o lábio inferior. A propósito, estamos num curso.
Ah, ótimo! Que diferença faz ser colégio, faculdade, ou curso, meu Deus? Ainda pensou em perguntar: curso de quê, hein? Mas ficou sem jeito.
Aqui não, na sala. Atravessaram o corredor, que não era tão longo assim. Que sala mais parecida com a antiga sala da casa de seus pais. Até a disposição dos móveis, o piso, e o sofá, igualzinho. Sentaram no dito sofá. Um numa ponta, o outro na outra.
Sem modéstia ou aviso, o homem dos olhos claros estirou-se ao longo do sofá, deitando a cabeça em seu colo. Com uma mão, bem devagar, tirou a camisa de dentro da calça, mostrando um pouco da barriga de pelos lisos.
Num sobressalto, levantou-se de uma vez empurrando a cabeça do homem de olhos claros. Aqui não! Olhava de um lado para o outro e com as mãos em concha tentava esconder a vergonha crescente. Onde, então? No banheiro? Aqui tem algum que seja reservado? Claro. A resposta do outro o surpreendeu. Tanto que queria, que precisava de um banheiro agora há pouco. Tanta vergonha que podia ser evitada. Gozado, não precisava mais.
Seguiu o homem de olhos de águia. O banheiro também ficava no corredor, em frente à sala de aula de onde saíram. Tão fácil, meu Deus, como não vira antes?
Entraram no reservado. Engoliu em seco novamente, a garganta ardia. Não havia mais como esconder com as mãos o tamanho pulsante de sua vergonha.
Com um sorriso de escárnio, o homem de olhos de águia abriu o zíper da calça, mostrando uma profusão de pelos púbicos.
Acordou sobressaltado com a humilhação morna e úmida de ter-se derramado no pijama. Soltou um palavrão abafado. A mulher não estava mais no quarto. Sempre acordava antes dele. Ainda bem, coisa mais vexatória um homem casado, daquela idade, naquela situação.
Meio que se aparando para não escorrer para o colchão, ou meso para o piso, meio que afastando da pele a umidade já fria do tecido do pijama, correu para o banheiro do quarto.
Será que ela ainda estava em casa ou já fora para o trabalho? Se estiver na cozinha, melhor seria contar logo o tal sonho antes que esquecesse algum detalhe. Sonho mais maluco. Veria se os dois anos de psicologia da esposa serviram para alguma coisa. Se não soubesse interpretar o sonho, então fizera bem em largar o curso. Ótimo consolo para mascarar o fracasso de não terem podido arcar com as mensalidades da faculdade.
Não, melhor que ela não estivesse melhor que já tivesse ido. Assim, se lavasse somente a mancha viscosa do pijama e o deixasse estendido no banheiro, talvez secasse durante o dia e não precisasse por no cesto de roupa suja, afinal de contas acabara de tirá-lo do guarda-roupa, nem uma semana de uso.
Além do mais, teria primeiro, antes de contar para quem quer que fosse, editar a parte do testículo canceroso. O que diriam ou pensariam?
Ela não estava mais em casa, e ele, muito atrasado. Banhou-se e vestiu-se às pressas. Que sonho, meu Deus! Decidiu não tomar café. Queira Deus o ônibus não tenha passado ainda.
Saindo do prédio, viu que o sol, arrependido, escondia-se atrás de nuvens carregadas. Será que vai chover? Nem trouxera guarda-chuva. Melhor voltar e pegar um. Mas e se perdesse o ônibus? Não, não vai chover, não.
Perto da parada, teve que correr feito um desesperado, balançando os braços na esperança de que o motorista se apiedasse dele. Teve sorte.
Mal entrou no ônibus, o céu pareceu desabar. Eita, a esperança é que esse pé-d'água passasse ou afinasse até chegar na sua parada.
Pegou um congestionamento dos diabos. Enfim, pelo menos motivo para chegar atrasado teria. O diabo é que teria que compensar o horário ficando até mais tarde.
Mais de uma hora depois, puxou a cordinha para que o ônibus parasse. A chuva estava só uma garoa. Se corresse, talvez nem se molhasse tanto.
Dobrando a esquina, uma quadra antes do seu trabalho, um onda de lama quase de sua altura o engolfou. Putz! Ainda levantou o braço para um gesto obsceno de protesto, ainda encheu os pulmões de ar para dar som à sua indignação, mas reconheceu o carro importado do chefe. Em vez do dedo médio em riste, um aceno débil, em vez do palavrão, um sorriso amarelo. O motorista pareceu ignorá-lo, seguiu seu percurso completamente indiferente. Talvez não o tenha visto.
Olhou para um lado, olhou para o outro, em busca de testemunhas. Se as havia, o pudor e o medo de se contaminarem com o ridículo e a miséria alheia obrigaram-nas a dissimular muito bem o flagra.
Examinou o estado daroupa. Melhor passar no banheiro antes de entrar na sala. Melhor molhado quesujo de lama.
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