Quando ninguém vê (Final)
No outro dia, Janice acordou toda estuporada, ofegando, o coração batendo tão forte e acelerado que chegava a lhe doer o peito. Terá sido um pesadelo? Levou a mão à face e sentiu o quanto estava inchada e que mal podia abrir a boca, uma dor funda lhe trespassando todo o lado esquerdo do rosto. Foi não, tudo verdade. Desespero, medo e vergonha. Enterrou a cara no travesseiro, tentou fazer uma prece, se pegar com Nossa Senhora dos Aflitos, ainda tinha uma esperança, uma louca, desvairada esperança: e se ainda estivesse sonhando?
– Acorda, Janice, teu pai está t'esperando na sala. – A inflexão metálica da voz de Dona Edith a trouxe de vez à realidade e a lastimou tanto quanto a fivela do pai.
Essa daí nunca lembrou que tinha uma filha, agora vinha lhe fazer cobrança, falando desse jeito, toda aborrecida, como se se importasse. Pois sim! Teve vontade de chorar, quase chorou, quase. Controlou-se, respirou a encher completamente os pulmões e levantou-se.
Na sala, seu pai, com o braço na tipoia, e o Adonias.
– Te senta. – Seu Claudionor lançou-lhe um olhar petrificador e a esmagou, implacável, com a notícia. – Esse daí vai ser teu marido. A partir de hoje vem todo dia...
– O quê?! O senhor está de brincadeira, papai! – esqueceu até a dor no queixo.
– O casamento – prosseguiu como se não houvesse sido interrompido – vai ser o mais rápido possível. Já falei com o padre Libório...
Janice, numa reação inesperada, desatou a gargalhar. Olhava a figura patética, encolhida numa cadeira a um canto da sala e mais tinha vontade de rir. Era de uma humildade suplicante, mal vestida, crestada de sol, envelhecida e sem esperança, e diziam que aquilo ia ser seu marido, aquele homem, seu marido. Ria desesperadamente como se o mundo fosse acabar naquele dia. As lágrimas começaram a descer e nem ela nem ninguém podia dizer se ria ainda ou se chorava.
– Eu não me caso... Prefiro a morte... Eu me mato, eu me mato!
– Pensasse nisso antes de ter entregado os tampos pro primeiro que te apareceu.
Janice sacudia a cabeça desesperada, acuada: "Eu não me caso... Eu me mato, juro que me mato, tomo veneno... ou, então, entro mar adentro, pronto! Eu juro!
A figura no canto da sala se mexeu nervosa, como que sufocando, passava o dedo pelo colarinho encardido da camisa, abotoada até o último botão, afastando-o do pescoço.
– Se mata coisa nenhuma! O Adonias vem aqui te visitar toda noite, como eu ia dizendo... Faz de conta que foi ele quem te desonrou...
– E por que com ele e não com Serafim? Por quê...?
Ao nome do responsável pelo cabaço da filha, Seu Claudionor estremeceu. Fechou os olhos um instante, respirou fundo.
– Nããão! Meu Deus, eu vou enlouquecer! – Segurava a cabeça, os olhos de louca. – Pois eu fujo! (gritou) Fujo! O senhor nunca mais me ver! Vou me embora dessa casa!
– E deixa de ser minha filha. Eu te renego, Janice Maria. Deixo de ser teu pai... – as palavras saíram por entre os dentes trincados.
– Eu não me caso. – Janice repetiu num fio de voz. – Não me caso...
– Vamos ver. – E com isso pôs fim a conversa, desviando o olhar para além da soleira da porta da frente. Parecia cansado.
Vinte e dois dias depois, Janice entrava pelo braço do pai na nave da pequena igreja de São Pedro da Amarração, que, pela ocasião, estava toda enfeitada com flores de laranjeira e, obviamente, entupida de gente.
– Repara! Nunca vi noiva chorar desse tanto...
– É mesmo, coitadinha, parece mais um bode embarcado.
O desejo de todos era que a cerimônia não se arrastasse por muito tempo. Nunca Amarração tivera tanto assunto para conversa.
Adonias, vendo a noiva vir ao seu encontro, transido de alegria, agradecia ao santo padroeiro por toda a sucessão de oportunidades que lhe levaram a concretizar a ambição de toda uma vida. Era um homem abençoado.
***
– Se a gente fosse tu, saía dessa, bicho. Além de ser filha do dono da pensão, que é uma fera, é mais trancada que cofre forte. Batata como é encrenca, não é não, Adonias? – conversavam no banco em frente ao boteco do Filipinga, enquanto derrubavam uma meiota da branquinha. – Tô falando, quem avisa amigo é. E ademais, não sei para que essa frescura, só pra comer, qualquer uma dessas cunhãzinhas serve. Não é não, Adonias? – E Chaguinha Caixeiro ria histérico, apertando e ajeitando a própria excitação.
Serafim sorria dos amigos e para os amigos, assumindo uma afetada postura de galã de cinema: – Mas eu quero é aquela, pronto, encasquetei.
– Hum, vai acabar é indo embora sem comer ninguém.
– Vamos ver... E digo mais: de hoje não passa. O negócio vai ser nesse festejo mesmo. Aquela ali está gamada por mim, macacada. Já está no papo. Pode apostar. – riu cafajeste.
Adonias ria também, ria nervoso, por dentro seu coração disparando. Queria só ver a cara do velho Fortes, tão metido a sebo, com a filha descabaçada. Será que esse janotinha consegue?
– Pois eu duvido muito. Moça direita, séria. – mordeu os lábios, apertou o guidão da bicicleta e limpou disfarçadamente o suor da outra mão na calça surrada. – E olha que eu conheço aquele pessoal. Até aposto...
– Um engradado de cerveja? – Serafim encheu o peito, sempre doido por um desafio.
– Só se for um nosso contra dois teus. – o gaiato do Chaguinha se animou
– Pode ser!
– Fechado! – O caixeiro já podia sentir a bebida gelada escorregar por sua goela. – Esse festejo promete, menino, promete.
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