Quando ninguém vê (4ª Parte)

Janice nunca soube direito o que lhe acontecera àquela noite. Num instante, conversava animada com suas colegas, todas suspirosas pelo forasteiro, no outro era arrastada quase que sem tocar os pés no chão, espremida, sufocada num mar revolto de cotoveladas, empurrões.

E assim, levada de roldão, Janice foi indo sem entender, sem vontade, sem rumo, até esbarrar em alguém, um rochedo que a impediu de continuar sendo arrastada pela multidão. E ali quedou-se protegida até serenar o maremoto humano. Só então levantou devagar a cabeça e seus olhos se encontraram. Por um momento deixou de existir, deixou de ser e mergulhou destemida na imensidão escura de mar ao crepúsculo daquele olhar.

Era seu anjo moreno, de cabelos muito bem penteados para trás, lustrosos e recendentes a brilhantina, e olhos com a mesma serenidade triste de uma imagem de São Francisco de Assis. Suavemente ele deslizou os dedos por seu rosto e uma sensação de paz infinita envolveu-a, invadiu-a, apagando qualquer outro sentimento ou sensação. Fechou, embevecida e por alguns segundos, os olhos e ao abri-los viu que o anjo lhe sorria. E a noite daquele olhar e o dia daquele sorriso atordoaram-na, estremeceram-na. Não é desse mundo, tinha certeza, é uma aparição, um milagre.

Sentindo-a tremer, ele julgou-a com frio e, com o máximo de suavidade de que era capaz, puxou para si. Janice riu extasiada, os olhos enchendo-se de lágrimas. Foi nesse estado de graça que ela se deixou conduzir por aquelas mãos gentis, sem qualquer interrogação ou receios na mente.

Caminharam para praia. Aos poucos a escuridão da noite os foi envolvendo, a luz dos lampiões ficando para trás, tênue e melancólica. Janice não entendia o que lhe acontecia, nem ao menos conseguia raciocinar. A única coisa que seu juízo turvo lhe permitia conceber era a certeza fatalista de que entrava num mundo feérico, encantado, a morada dos anjos.

E a noite escura pontilhada de estrelas fantasmagóricas, ao mar, ao vento, sobrelevaram-se a tudo. Cada toque, cada carícia, cada sensação, Janice sentiu como se fosse a própria natureza que lhe arrebatava o corpo e o moldava ao bel-prazer. Veio a dor, quase insuportável, mas também era a natureza, não havia como lutar, e nem queria, fazia parte do seu destino. Cravou as unhas nas costas de seu anjo e engoliu o grito e o choro.

No entanto, havia algo mais além da dor. Era uma sensação estranha, sem comparação com o que já sentira ou sequer imaginara. No começo, tímida, de uma humildade tocante, era não mais que uma alga perdida num mar turbulento de dor. Aos poucos, todavia, foi tomando corpo, crescendo, crescendo, e de repente já não era mais apenas uma pequena alga, era uma ilha imensa, que continuava expandindo sua porção de terra, já continental, inexorável, mar adentro, incólume às ondas gigantescas que pareciam querê-la submergir. Janice, extasiada, contemplava, sentia todo o sublime daquele encantamento, amparada e conduzida pelas mãos ásperas, mas de toque suave de seu anjo. Era como se voasse, podia sentir o vento das asas de seu guia no rosto. Chegou a ponto de não poder mais controlar suas reações: ria, chorava, gemia, gritava. Até que houve a explosão que, partida de seu ventre, envolveu-a e fez dela um turbilhão de sensações, espasmos, vida.

O primeiro baque da realidade implacável, depois de cessada aquela viagem fantástica, foi o frio da noite, o vento gelado da beira-mar, e o segundo, a consciência da própria nudez. Estremeceu e foi enlaçada pelos braços do seu anjo. Deu de ombros e aninhou-se no peito dele, esfregando o rosto e deliciando-se com a maciez dos pelos finos e lisos. Pro inferno a nudez e o frio! Seu mundo agora era aquele abraço e em seu mundo, estava decidido, ninguém precisava de roupa. Sorriu àquele pensamento e aconchegou-se mais ao anjo. Foi então que percebeu algo maravilhoso: seu anjo tinha um coração, e que batia... e ele respirava também, uma respiração que cada vez ficava mais compassada e serena. Veio então a paz, uma paz infinita. Será que ainda estou viva?

– Meu anjo... – Sussurrou.

– Sou anjo não, coração. Sou mais que anjo, sou Serafim. Ou você não sabe que Serafim é mais que anjo?

– Meu anjo... – Insistiu ela, tonta, boba de ventura, sem ter nada para dizer. Como as palavras, às vezes, sobretudo nos momentos mais importantes da vida, são dispensáveis e até mesmo obscenamente inoportunas. Foram somente essas as que trocaram, e mais pra quê?

Perderam juntos a noção do tempo. Talvez tenham dormido, ou talvez não, o certo é que apenas se deixaram ficar ali abraçados, nus à beira-mar.

Tal torpor romântico, no entanto, não durou muito, nada tão bom pode durar muito. Primeiro foi um tremor de congestão que percorreu todo o corpo do anjo, depois, quase que simultâneo, o disparar do coração que Janice ouvia tão embevecida, uma verdadeira rufada de tambores circenses.

– Cachorra! – Às suas costas ribombou um trovão devastador, pareceu-lhe que o mundo desabava.

Não houve tempo para nenhuma reação, a não ser o susto. Mal ouviu o trovejar daquela voz, já era arrancada pelos cabelos de seu refúgio e arremessada como se uma gata vadia para o lado. Ampararam-lhe uns braços magros e umas mãos calosas.

– E tu, canalha do meio dos infernos, agora vou te ensinar a não desgraçar mais a filha alheia. – Seu Claudionor não falava, rugia, uma onça ferida de morte.

Janice a princípio não conseguiu pensar em nada, só em se vestir. Cadê o diabo do vestido, meu Deus? Assistia sem reações seu anjo tropeçar nas próprias pernas, enquanto vestia as calças, gaguejar súplicas, de uma humildade canina, quase cômica. Lembrou-se de um par de palhaços que vira certa vez numa companhia de saltimbancos tristes e miseráveis, perdidos no mundo, que, pelo povoado, passaram há uns tempos, e quase achou graça da situação.

Somente depois de parcialmente vestida (não conseguia alcançar o zíper das costas) e do primeiro chute de seu Claudionor, a bota de bico quadrado cravada nas costelas do Serafim, é que se lhe destravaram a língua e as cordas vocais. Esvaziou os pulmões num berro que ecoou por todo o povoado e voou para cima do pai, de punhos cerrados. Mas, foi tolhida pelas indefiníveis mãos que há pouco lhe ampararam da queda. Indignada, debateu-se, unhou, chutou o ar, gritou feito possessa, tudo em vão. Mas continuaria lutando por toda a eternidade se seu Claudionor, parando por um instante a surra de criar bicho que se empenhava em dar no vagabundo comedor de cabaço de moça direita, não lhe arriasse a mão na cara. A violência da bofetada foi tamanha que Janice quase perde os sentidos.

– Leva essa infeliz pra casa, que depois que eu acabar com o serviço aqui, vou acertar as contas com essa ordinária. – E dito isso, voltou-se para o estropiado Serafim, que aquelas alturas só conseguia grunhir e se arrastar numa patética tentativa de fuga.

Janice deixou-se arrastar por aquelas garras, grunhindo negativas, zonza demais para conseguir escapar. No meio do caminho, Seu Claudionor os alcançou e de um safanão arrancou a filha das mãos do pau mandado, os dedos fortes cravados no braço alvo da moça, feito um torno.

– Deixa que com essa daqui agora me entendo eu. Aquele outro lá nunca mais desonra moça de família. – Deu um riso chocho e sádico. – Agora é só nós dois, sua cabrita.

– O que o senhor fez com ele? – E agora, meu Deus, será que ele ainda me quer?

Seu Claudionor soltou um gemido junto com o ar dos pulmões como se levasse um pancada nas costas. Voltou-se para a filha, uns olhos de possesso e, com toda sua força, desferiu-lhe uma bofetada de quebrar queixo. Janice caiu no chão feito um fardo de capim, engasgou-se com areia e sangue. Tossindo e ofegando, cuspiu um dente e golfadas intermináveis de sangue. Foi levada para casa carregada.

– Toma! Taí a vagabunda da tua neta. – E arremessou o fardo no velho e desbotado estofado da sala.

– O quê? – Dona Cáritas estava atônita, o queixo pendendo sem vida.

– Peguei essa ordinária vadiando com um safado na beira da praia... Aquele mata-mosquito, Dona Cáritas, aquele que estava hospedado aqui, debaixo do nosso teto. A vontade que eu tenho é de... – e rangia os dentes de ódio.

Dona Cáritas, muda de espanto, a cabeça latejando no esforço de entender o que se passava, olhava de um para o outro e articulava palavras sem som, olhos esbugalhados. Não pode ser. Não pode ser. Desgraça! Desgraça! Acabou-se tudo!

– Mas isso não fica assim, não. Ah, mas não fica mesmo. – Seu Claudionor andava de um lado para o outro, o olhar inquieto, o rosto contraído e a respiração ofegante, tudo nele vibrando de raiva e desespero. – Eu te arranjo um marido, o primeiro idiota que me aparecer, te caso daqui pro final da próxima semana. Na minha família nunca se teve notícia de uma perdida. Eu desafio o filho duma égua que me diga que algum dia uma Fortes tenha dado para vagabunda, uma só. Eu desafio! E não vai começar por ti, não, Janice Maria, isso eu te garanto. Te enfio uma aliança no dedo e limpo o nome de minha família, nem que seja a última coisa que eu faça...

Dona Cáritas voltou a si diante de perigo maior que a desonra da neta: Não, homem de Deus! Tem jeito, tudo tem jeito. A gente resolve...

– Cala a boca, velha do diabo! Se der mais um pio, te boto no olho da rua!

– Pois eu não me caso! – Janice, que até então havia ficado como caíra, meio que sentada, meio que deitada, o rosto escondido numa almofada de crochê, deu um salto como se uma boneca de mola.

– O quê? – Seu Claudionor parou atônito.

– Não me caso, não me caso. – E repetia rangendo os dentes, cópia fiel do pai. – Não me caso e não me caso, pronto!

– Está me desfiando, Janice Maria? – Seu Claudionor falou calmo, quase brando, como se estivesse fazendo a pergunta mais natural do mundo.

Janice estremeceu, titubeou, mas, por fim, levantou a cabeça, respirou fundo e disse sua palavra final: – Não me caso.

– Eu mato... Eu mato... Eu mato... – Seu Claudionor foi repetindo num tom progressivo de voz, enquanto desafivelava o cinto.

– Não, papai... Não, papaizinho... – Janice recuou até voltar a cair sentada no estofado.

– Cachorraaa! – E o grito foi ficando cada vez mais estridente à medida que o braço descia com toda a força o cinturão.

Tamanha foi a violência do açoite, que o ombro de seu Claudionor se deslocou. Desde que levara uma queda, tentando amansar um maldito potro, que seu ombro saía do lugar por qualquer besteira. Seu grito, a princípio de ira, tornou-se berro de dor. Janice, ferida no braço pela enorme fivela do cinturão, desfaleceu ao ver o sangue escorrendo e manchando o vestido.

Quando Dona Edith chegou da casa dos vizinhos (andava à procura da filha), encontrou já a desgraceira feita: a mãe dando uma piloura de um lado; o marido de olhos esbugalhados sem coragem de se mover, o ombro, uma dor do cão; a filha desmaiada e sangrando no estofado, o queixo inchado, já começando a arroxear; e os curiosos chegando à porta. 

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