Quando ninguém vê (3ª Parte)

Janice seguiu em direção ao quarto mal pisando no chão. Era uma vontade doida de correr, gritar, pular, gargalhar. Ele a olhara e com insistência. Assim que fechou a porta atrás de si, pulou, sacudiu a cabeça, correu de um lado para o outro, movimentando os braços, prendendo a respiração, até exaurir o turbilhão de emoções. Com a mão no coração, ofegante, lutando para conter a respiração e o riso histérico, foi à penteadeira e olhou-se no espelho. Na sua frente, uma mocinha, corpo de menina, franzina, seios ainda despontando, discretamente levantando a chita do vestidinho florido. Achou-se até engraçadinha. Será que ele achava também? Começou a se admirar mais detidamente. Se achava meio descorada, mas como ruborizara com quase tudo, o mínimo esforço, dava para passar. O diabo eram aqueles lábios finos. Além do mais, não podia ficar correndo e pulando no dia da quermesse só para ficar corada. Se pudesse ao menos usar alguma maquilagem. E os cabelos? Escorridos, partidos no meio, soltos, afastados do rosto por uma atraca branca. Se ao menos pudesse usar uma fita, ou uma fivela, ou mesmo uma atraquinha mais enfeitada. Queria ser mais bonita. Ficou inventando penteados, tranças, apertando as bochechas e mordendo os lábios para ficarem vermelhos, fazendo poses, até que o sono veio. Sonhou que havia um monstro devorador de pessoas que se acalmava com música e que o seu Serafim tocava uma flauta enquanto ela atravessava um descampado.

Acordou cansada, tensa. Dia assim tão cheio do que fazer, tantos os preparativos para a quermesse de logo mais, só não passou mais depressa, devido a sua ansiedade de menina-moça. A manhã até voou sem que ela percebesse, lenta foi a tarde, e quanto mais se aproximava a hora dos folguedos e da missa, mais os minutos se arrastavam. Foi se arrumar muito cedo, umas duas horas antes. Fez o que pôde para se embonecar, mas os recursos eram tão poucos. Os mesmos vestidinhos de chita, quase todos do mesmo modelo, as mesmas atraquinhas de uma cor só, lisas, sem enfeite, nenhuma maquilagenzinha, nem um batonzinho sequer. O jeito era escovar bem os cabelos, passar uma água de colônia, morder bastante os lábios e beliscar as bochechas. No final, mirou-se no espelho, tentando se animar. É, até que não estava tão mal assim.

Quando a família Fortes chegou na pracinha, Padre Libório fez questão de vir recebê-los pessoalmente. "Seu Claudionor, Dona Edith, Dona Cáritas!", o homenzinho veio ao encontro dos Fortes, acenando-lhe, as duas mãos para o alto, o típico passinho miúdo e ligeiro. Esse daí está que é uma cobra na areia quente. Não pode ver dinheiro que fica todo ligeirinho, um azougue, repara! Dona Edith, tentando segurar o riso, respondeu ao deboche do marido com uma cotovelada, e uma ordem de que se calasse.

Realmente o bom padre estava eufórico, não cabia em si de alegria. A quermesse era um sucesso, nunca vira tanto dinheiro naqueles dez anos de ministério no povoado. As barraquinhas vendiam sem parar, as prendas do bingo de daqui a pouco caíam do céu, havia gente de fora, vinda expressa para os festejos, nada podia dar errado. Padre Libório olhava para o topo de sua capela e já podia até vislumbrar o sino monumental que faria pouco do da matriz do município. E se bendizia, agradecia a Deus o milagre da multiplicação do pão, e sorria, bom anfitrião que era, aos seus fieis, em especial àqueles que traziam boas prendas. Hoje nem me demoro no sermão, quanto mais tempo minhas ovelhas ficarem na nave, menos contribuem para a obra do Senhor.

Na gincana, a equipe vencedora fora a encarnada, vitória apertada, batalhada ponto a ponto, prova a prova. Janice explodia de entusiasmo a cada lance. Era feliz. Por vários momentos até se esquecera de procurar por seu anjo na multidão.

Dona Cáritas é que não desgrudava os olhos da neta. E quando a perdia de vista por um instante que fosse, ficava num pé e noutro, indagando a todo mundo pela menina. Estará essa rasga-mortalha adivinhando alguma coisa? Seu Claudionor até estranhou. Caduquice da mamãe, Nonô. Avia! A missa já vai começar.

A missa foi conduzida o mais rápido que a liturgia permitia. O leilão foi outro sucesso. Os olhinhos do padre Libório piscavam ao tilintar constante das moedas nos bolsos da batina. Eram tantas prendas, tanto já se arrastava o leilão, que todos já não aguentavam mais, a multidão já se contorcendo de cansaço e se coçando por um arrasta-pé.

Finalmente os primeiros acordes da sanfona, os batuques do zabumba e os tilintares do triângulo troaram em todos os cantos e corações da pracinha.

– Vixe! Já prestou! Agora vai começar o frege e já está é tarde. Ô Edith, junte nosso povo que já está na hora de a gente capar o gato. – Seu Claudionor espichou o pescoço, passeou os olhos em volta e avistou Janice a poucos passos, numa palestra animada com Lourdinha e outras mocinhas, suas colegas.

Dona Edith, que acompanhara o olhar do marido, concluiu: Só falta a mamãe.

– Hum, pode reparar na sacristia, como num está lá de cavilação com o Padre Libório. Se não for, ô coisa parecida. – Dona Edite foi, se rindo da implicância do marido.

De repente o alvoroço: um pipoco de briga. Gente desabalada para todos os lados, gritaria, olhos esbugalhados, rostos contraídos de susto e medo. Uma espécie de rinha se formou no centro da multidão. Seu Chico Bilina, compadre de seu Claudionor, arrumara confusão logo com quem, com o Tião Queixada, o cabra mais valente, abusado e encrenqueiro do povoado. Os dois rolavam atracados pelo chão, e era só murro, chute, bofete e dedo no olho. E Seu Chico, apesar de mais velho, estava que era uma fera e batia mais que apanhava.

Não se sabe de onde, nem de quem partiu a ideia infame de pôr mais lenha no que já era um fogaréu, fato é que apareceu uma peixeira no meio da arena sem ver nem pra quê. O diabo do Queixada foi quem primeiro se apercebeu do ocorrido e não deixou escapar a chance que se lhe surgia justo no momento em que estava para pedir saia. Mais depressa que coceira de cachorro se desvencilhou do adversário, rolou no chão e, num movimento de felino vadio, agarrou a faca, riscando com ela a terra batida, nos olhos injetados, a gana de assassino sem controle. Foi a gota que faltava para seu Claudionor.

– Já chega! – Sua voz de trovão estremeceu a plateia e os adversários. Fez-se um silencio de campo santo. – Acabou. Umbora, rebola a peixeira, cabra. E o senhor, compadre, se aquiete e deixe de valentia que a confusão acabou.

– Saia da frente, saia, seu Claudionor, que hoje eu despacho um... – Queixada rugiu por entre os dentes, olhando por baixo, uma mucura acuada.

– Saio não, senhor. E o senhor vai soltar essa peixeira é agora. – Seu Claudionor ordenou, a voz grave, baixa. Queixada chega engoliu em seco.

Padre Libório, que viera decretado da sacristia, antevendo o iminente derramamento de sangue, pôs-se entre o encrenqueiro e o Fortes e avalizou:

– Faça, meu filho, o que seu Claudionor está pedindo, faça.

Nesse momento, seu Chico Bilina, já completamente esquecido, revoltou-se. Sentiu-se ignorado, ultrajado, antes o centro das atenções, agora um João Ninguém, um borra-botas que se escondia atrás da batina do padre e das calças do compadre.

– Mas que porra é essa? Quem é que está brigando aqui? Ninguém pediu ajuda aqui, não, que eu já tava quase...

– Se cale, Compadre. – O tom de seu Claudionor não admitia controvérsia. – O senhor não acha que já foi confusão demais por hoje, não? A coitada da comadre está ali que é uma agonia atrás da outra, repara. Deixe de ser besta que o senhor não é mais moleque pra andar com isso, não, homem!

– É isso mesmo, meus filhos, acabaram-se as confusões. – Padre Libório não deixou escapar a deixa e ajuntou, voltando-se para Queixada. – Solte, meu filho, a faquinha, solte.

O silêncio era atroz e alimentava a tensão como carvão à ardência de um fogareiro. O tempo parou à espera da decisão do valente.

– Cacete! – E com essa exclamação Queixada pôs termo a quizila. Rebolou a faca no chão, atrevido, e, de um safanão, girou nos calcanhares e saiu possesso de raiva.

O suspiro da multidão foi tão ruidoso e forte que pareceu um vendaval. A confusão acabou e com ela também a festa. Todos, exaustos e excitados, não habituados que eram a tanto movimento e confusão, a vidinha de cada dia, eterna e abençoada mesmice, começaram a se dispersar, comentando e aumentando o acontecido.

Foi quando zuniu a voz de taquara rachada de dona Cáritas às costas do Fortes.

– Valei-me, minha Nossa Senhora! E a Nicinha, quede?

Um sopro de gelo correu a espinha de seu Claudionor. Daí foi o destroço. Cadê essa menina, meu Deus? Quede a Lourdinha? E o padre, onde é que está? E a comadre Célia? O compadre Bilina não terá visto essa menina? Daonde, viu nada, um velho daqueles metido em confusão, tão bom de criar vergonha. E dona Zulmira? Ah, está ali, mas a pobre anda ceguinha. Vai lá em casa pra ver se estará por lá. E na igreja, já repararam? Onde andará metida essa menina, minha Nossa Senhora? Ah, mas hoje dona Janice apanha, não tem nem perdão! E a De Lourdes, ainda não voltou lá de casa com notícias? Ô diabo lerda! Calma, seu Fortes, fique calmo.

Outra voz veio pôr em suspenso as interrogações, aquela agonia toda. Dessa vez uma voz arrastada, obsequiosa, de uma humildade ofídica.

– Tenho pra mim que sei mais ou menos aonde a filha do senhor andará, seu Claudionor...

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