Quando ninguém vê (2ª Parte)


O povoado de São Pedro da Amarração, havia já algumas semanas, estava em polvorosa com a iminência da quermesse em celebração ao dia do padroeiro dos pescadores. Mais que uma festa devota, era o acontecimento social do lugar, a maior de todas as festas, para não dizer a única. E, numa empolgação quase profana, toda a gente do lugar se mobilizava nos preparativos do grande evento, dividindo-se entre reformar a capelinha, enfeitá-la e por extensão a pracinha em frente, montar as barraquinhas, organizar a gincana entre as equipes azul e encarnada, preparar os confeitos, cevar a melhor criação para ofertar no leilão em prol da paróquia, arrumar a casa, cerzir, remendar, engomar e, às vezes, até tinturar a melhor roupa, ou, conforme a fartura do ano, fazer uma visitinha ao Armarinho São Pedro e comprar na mão de dona Edith um corte de tecido, uma chita que fosse, para um traje novo.

Janice desistira fazia tempo de participar da animação dos festejos, seu Claudionor Fortes não deixava. Aonde que filha minha vai andar metida nesses freges. Mas, homem, é coisa da igreja. É bom que a menina participe. E os gaviões, Edith? E os gaviões? Hum, seguro morreu de velho. E fim de conversa. Todo ano era aquilo. Desde que se entendia por gente. Já se conformara, ou pelo menos, conformada ficava depois que tudo passava, até o próximo festejo, quando o movimento frenético de formigueiro destroçado tornava a tomar conta do povoado. Então, novamente se lhe enchia o espírito de uma esperança tênue e precária, e depois de amarga frustração e revolta, que lhe faziam chorar escondida no banheiro ou no silêncio escuro do quarto. Todo ano igual ao anterior.

Naqueles festejos, até a chegada do forasteiro, o romance lido às escondidas de certa forma a compensara do desgosto anual. A leitura proibida deixava-lhe na boca um sabor agridoce de desforra. Ao devassar as páginas amareladas e bolorentas do livro, uma sensação poderosa de rebeldia e de clandestinidade lhe fazia tremer de volúpia, e aquilo tanto deixava o tal romance ainda mais atraente, como lhe aplacava um pouco a indignação.

No entanto, o herói romântico, pulando de forma assim abrupta das páginas do romance, veio mudar, agitar a superfície líquida daquela cacimba escura e aparentemente tranquila. Quando Janice voltou ao seu quarto tarde da noite, após se certificar daquela maneira atabalhoada da permanência na pousada do seu Jesus de Via Sacra, calculou que, por certo, ele ficaria no povoado até a quermesse, ou melhor, só até a quermesse, e a lembrança de sua impossibilidade também certa de ficar na pracinha depois da missa, assistindo pelo menos ao leilão até o final – os primeiros acordes das sanfonas de oito baixos, coitada, só mesmo deixando a janela do quarto aberta e pedindo a Deus para o vento trazê-los –, fulminou-lhe como um corisco, mal ela fechou a porta do quarto e o breu da noite lhe cobriu. Acendeu o candeeiro e o resto da noite passou-a de olho grelado. Sua rede encheu-se de espinhos, o ar do quarto envenenou-se, e sua cabeça rodopiou mil vezes em busca de uma saída para situação assim sem remédio, uma esperançazinha por mais doida que fosse, e nada. Os primeiros raios do dia e a brisa fresca da manhã venceram suas inquietações e a embalaram num cochilo inquieto.

Acordou assustada com o vozeirão paterno troando pela casa inteira, deu um pulo da rede, quase cai, desorientada, alvoroçada, o coração disparado, os olhos esbugalhados, foi até a porta, voltou, olhou-se no espelho da penteadeira. Sair no corredor de camisola, parece que estou variando. Trocou-se o mais depressa que pôde. Será que já serviram os hóspedes? Voltou a se olhar no espelho. Ave Maria! Estou parecendo uma visagem, cruz credo! Olha os cabelos. Pegou um pente, tentou se pentear, mas os cabelos estavam muito embaraçados. Ô, Minha Nossa Senhora, vou é desse jeito mesmo! Não, pelo menos, vou amarrar essa palha num rabo de cavalo. Pronto! Melhorou um bocadinho. E esses olhos inchados e vermelhos? Dá não! Tenho que ao menos passar uma água no rosto. E esse bafo de onça? Ô Meu São Pedim da Amarração, fazei com que não tenham servido ele ainda. E assim foi desembestada ao banheiro e depois à cozinha, tomando, evidentemente, o cuidado instintivo de não invadir os domínios da avó na carreira e acabar despertando suspeitas.

Chegou tarde, já tinham servido as mesas dos hóspedes, que agora eram cinco. Procurou por uma desculpa razoável ou mesmo esfarrapada para ir ao refeitório, mas não encontrou nenhuma. Amuou-se, mas, como de hábito, guardou tudo pra si, e mostrou-se mais animada, mais eufórica e bem-humorada que o de costume.

No decorrer do dia soube, graças ao enxerimento de Lourdinha, uma das crias da casa, o nome do mata-mosquitos: Serafim Paixão. Tem nome de anjo, é mais até que um nobre cavalheiro. Soube ainda que era solteiro, descompromissado, tinha quase trinta, embora não parecesse, e morava na cidade. Também confirmou seus cálculos, quanto à permanência do rapaz no povoado, retardara seu trabalho para poder aproveitar os festejos do padroeiro. Gostou de ter mais informações sobre seu Jesus de Via Sacra, mas acabou por se aborrecer com os ais, suspiros, tremeliques e trejeitos gaiatos e impregnados de sensualidade da caboclinha, enfezou-se, humilhou a infeliz e ainda enredou-a para a avó: bichinha mais preguiçosa essa De Lourdes; faz nada direito, serviço porco. E por um fuxico? Menino, aquilo é uma cigarra, fala que dá bom dia a cavalo! Queria era que gostasse de trabalhar o tanto que gosta de futricar a vida alheia. Tomei-lhe de um abuso.

Na hora do almoço, Serafim Paixão novamente não apareceu. Janice passou a tarde numa aflição só, da sala para o refeitório, do quarto para a varanda, da cozinha para o quintal, não achava canto. Será que ele vai chegar que horas? Será que ele vai passar por aqui? Ou por ali? Ou por acolá? E será melhor encontrar com ele aqui, ou ali? Não o encontrou em lugar nenhum. Chegou a hora de irem à novena, naquele dia, o oitavo, realizada na casa da viúva Dona Zulmira, a professora do povoado, pessoa de grande estima de toda Amarração. Janice foi praticamente se arrastando. Queria ter ficado em casa a espera do folhetinesco mata-mosquitos. Esperança!

O entusiasmo com que foi recebida pela alfabetizadora, sua antiga mestra, em nada lhe minimizou a frustração e o aborrecimento, o que não lhe impediu de mostrar o sorriso tímido e angelical que tanto encantava a idosa viúva. Sempre que a encontrava, a ela e a família, a professora se lastimava por não ter mais saber para continuar a lhe orientar os estudos. Aluna boa está aí, ouviu, seu Fortes, aplicada de dar gosto. Quisera eu, minha filha, ser mais saberosa para continuar lhe ensinando. A menina ia poder passar do primário pro ginasial sem nem ter que se apartar dos paizinhos. Por falar nisso, quando é mesmo que o Seu Fortes vai mandar essa criança continuar os estudos na cidade? Pode demorar muito não, senão já viu.

Seu Claudionor sempre pigarreava e mudava o rumo da conversa, por dentro, maldizendo. Ê, velha broca! Toda vez a mesma lenga-lenga. T'esconjuro! A verdade é que o Fortes temia pela sorte da filha, sozinha, entregue às liberdades da vida na cidade. Assim passada a decepção primeira de seu primogênito não ser o varão que esperava, o meninão que, logo começasse a engatinhar, colocaria num lombo de cavalo e levaria para conhecer palmo a palmo as tantas propriedades, acostumando-o, antes mesmo de o pequeno se entender por gente, ao mando; caiu-se de amores pela filha, e a maneira que sua rudeza encontrava e permitia demonstrar todo aquele bem-querer era abafando a filha de zelos, proibições, conselhos e temores a tudo e todos que se achavam além dos limites do seu quintal e varanda. Vê-la partir para completar os estudos naquelas terras onde sabia as moças viverem frouxas, sem termos, a mercê de todo e qualquer pilantra aproveitador e desencaminhador de filhas alheias, era seu maior desassossego e pior assombro. Sabia, contudo, inevitável a separação e as preocupações, afinal de contas não podia negar à filha o direito de estudar, mas por enquanto ia pelos menos adiando-lhe a partida, na esperança de um milagre que lhe resolvesse a questão.

A novena arrastou-se por tanto tempo que, a Janice, pareceu-lhe não chegar mais em casa antes do nascer do sol. Ainda tinha a esperança de ser abençoada por um olhar de seu serafim naquele dia, mas, quanto mais ansiava pela volta ao lar, mais se mutiplicavam as Ave-Marias e os Mistérios. Quando finalmente, a família pôde voltar daquele martírio, a menina já não tinha ilusões de encontrar seu anjo matador de mosquitos acordado. Vinha cabisbaixa, já nem disfarçava mais seu desapontamento e desgosto. Dona Cáritas até notou o abatimento da neta e comentou. Janice foi abrupta, quase grosseira:

– Nada não, vovó. É sono.

E só veio levantar a cabeça para não tropeçar nos batentes de casa. Minha Nossa Senhora! O coração disparou, o sangue fugiu do rosto. Lá se está ele, meu Deus! O mata-mosquitos conversava com Chaguinha Caixeiro na varanda da pensão. Seu susto ao erguer a vista e ser devassada por aquele olhar verde, incisivo e petulante, foi tão grande que ela girou nos calcanhares e quase saiu correndo, se não fosse por esbarrar no pai.

– Que foi minha filha? Desembestou?

– Hein! Não... eu... acho que esqueci o terço na Dona Zulmira. – Ele está me olhando. Por que esse chão não se abre e me engole?

– Nice, minha filha, e não esta aí o terço na sua mão?

– Ai é! Jurava que tinha deixado lá. Ando com uma cabeça... – Continua me olhando. Como é bonito! Meu Deus do Céu, e se o papai der fé?

Dona Cáritas apertou os olhos e sentenciou:

– A Nicinha tem logo é que ir dormir. – No que falava, cravava os olhos no mata-mosquitos, com uma ferocidade tal que desconcertou o moço e o fez baixar a vista. – Está cansada. Hoje ela passou o dia numa desinquietação que só ela.

– Ora, e a bem de que, essa menina? – Seu Claudionor já ficou de orelha em pé.

Janice gelou:

– Hum, nada não, senhor. Arrumando as coisas. – E lançou um olhar acusativo a avó.

– Hum, acho bom! Pois então vá se deitar logo que já é quase dez horas, tarde que só. – E quase que pra si. – Sua avó quase não deixa a gente vir embora, de fuxico com a Dona Zulmira.

Dona Cáritas nem se dignou a responder à provocação do genro. Na verdade, nem a ouvira, ou se ouvira, não compreendera, a cabeça ainda na varanda, num certo par de olhos verdes.

– Bença, papai! Bença, mamãe! Bença, vovó!

– Deus te dê boa sorte!

Dona Cáritas ainda esperou a neta vir beijar-lhe a mão, receber-lhe a benção e retirar-se, para falar como quem acaba de se lembrar de uma obrigação:

– Valei-me, as cadeiras ainda estão na varanda, vou botar logo pra dentro antes que me esqueça.

– Vá não, mamãe! Deixe que a Lourdinha bota. Ô Lourdinha!

– Deixe, Edith, deixe, minha filha. Só tem umas três. Boto num instante.

Na varanda, Dona Cáritas pegou o mata-mosquitos já indo no rumo dos chalés.

– Psiu! Ei, moço! – sibilou a velha, chamando-o com um aceno brusco da mão. – Sabe aquela mocinha que passou inda agora por aqui? É minha neta e é moça de família. E, só pro seu governo, não é pro bico de qualquer pé-rapado, não.

A velha falou baixo, compassado, intercalando cada frase dita com longos e agudos silêncios, enquanto encarava, sem desviar os olhos flamejantes um instante sequer, o semblante impassível do jovem à sua frente. Ele também não pediu arrego, sustentou valente o olhar implacável de sua oponente, e, quando, pelo silêncio que se prolongava, notou que a velha terminara, cumprimentou-a com o leve inclinar de cabeça, virou-se e sumiu no breu do oitão da casa.

Dona Edith ainda ficou alguns instantes na varanda, olhando para a escuridão em que sumira o hóspede, algo incomodada com o silêncio impertinente do rapaz, sua fisionomia insondável, marmórea, lhe aperreando o juízo. Um calafrio a fez girar nos calcanhares e entrar em casa o mais depressa que suas pernas finas e cansadas puderam.

As cadeiras dormiram na varanda.


(Continua...)

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