Quando ninguém vê (1ª Parte)
Janice acordou cedo, impressionada que estava com a história de mais um dos romances da "coleção das moças", que sua avó lhe emprestava às escondidas do pai. De tão envolvida pelas reviravoltas da intriga, dormira abraçada ao livro e, bem não acordara, esfregara os olhos e continuara a ler, sem nem se importar com a porta aberta. Lia assim despreocupada, quando sentiu uma presença na porta, a sensação de um olhar fixo nela. Tomou um susto tremendo e, sem pensar duas vezes, jogou o livro dentro da rede, embaixo do lençol.
– Ave Maria! A senhora quer me matar de susto, vovó? – sussurrou.
– Pois então feche a porta. Já pensou se fosse seu pai? – a velha senhora sorriu entre divertida e orgulhosa.
Dona Cáritas, ao passar pelo quarto da neta e vê-la deitada na rede com o livro aberto em direção à janela para aproveitar as primeiras claridades do dia, pensou, peito inflado, que aquela menina ia ser diferente da mãe, não ia escolher para marido o primeiro 'beiradeiro' que aparecesse. Ia gostar de estudar e sairia daquele desterro. E ela, Cáritas, iria junto. Ria satisfeita, quando entrou na cozinha. Daí, não tardou para que a casa começasse a se bulir inteira. A velha tomara para si a função de acordar a casa desde sempre e a exercia com pontualidade.
Uma mistura de pigarros, bocejos, arrastares de chinelas, panelas se batendo, portas e janelas se abrindo, era mais um dia, igualzinho aos outros, que nascia. Rapidamente, Janice, no que ouviu o barulho das esporas do pai e sua voz de trovão acabando de acordar a casa e enchendo-a de sua presença, levantou-se e, ligeiro, escondeu o romance no fundo do baú, embaixo dos lençóis e toalhas. No corredor encontrou o pai, pediu a benção, ele lha deu junto com uma rápida carícia nos cabelos em desalinho ainda.
Janice foi ao banheiro, passou uma água no rosto, ajeitou os cabelos e correu para a cozinha.
– Bença, vovó! Ajuda?
– Deus te abençoe, minha filha. – e segredou com um olhar brejeiro. – E o romance?
A neta olhou pros lados e, com um sorriso mais maroto ainda, desenhou um "ótimo" com os lábios. Dona Cáritas sorriu em aprovação, ia falar algo sobre o livro, mas, em vez disso, como o genro entrara na cozinha, depois de um bom dia seco dirigido a este, pediu à neta para ajudá-la com os hóspedes, que anotasse os pedidos. Disse-lhe que eram só três e que o cardápio do café era beiju, cuscuz de milho ou de arroz, bolo de macaxeira, café preto ou com leite e suco de cajá.
Janice foi com o tédio maquinal de quem já fizera aquilo milhares de vezes. Ao abrir a porta que separava a casa do refeitório, porém, sentiu o coração parar e o sangue fugir-lhe completamente do rosto. Não podia acreditar no que via. Ali, sentado junto à janela e olhando em sua direção, estava o herói romântico do livro que lia. A mesma pele morena de sol, os olhos de um verde escuro, grandes, um tanto puxados, sombreados por longos cílios, as sobrancelhas grossas, quase unidas, a barba bem aparada, os cabelos negros, volumosos, que lhe caíam até quase os ombros como um Cristo de Via Sacra. E aquele sorriso enigmático. Meu Deus do céu, ele está rindo pra mim. Ora, rindo pra mim, está é mangando de mim, isso sim. Mas também eu aqui com essa cara de bocó. De fato, quedara-se por tempo demais parada, boquiaberta, olhos esbugalhados, amparada na porta. Engoliu em seco, ajeitou os cabelos, sem saber onde pôr a cara, seguiu em direção às mesas, olhos pregados no chão.
Atendeu primeiro o outro hóspede, o gaiato do Chaguinha Caixeiro, hóspede habitual (o terceiro ainda dormia), que, como sempre, soltou as mesmas velhas gracinhas ao fazer o pedido. Depois, num fio de voz repetiu para o personagem que pulara do seu romance as opções do cardápio para o café da manhã. Ele não tirava os olhos dela e ela pouco tirava os dela do chão, e quando o fazia era só para se certificar da insistência daquelas fontes verdes de calor que lhe abrasavam as faces. Voltou para a cozinha trêmula, afogueada, ofegante. A avó não deixou escapar a perturbação da neta.
– Nada não, vovó. Voltei correndo.
Dona Cáritas, vivida, esperta como quê para desvendar intrigas e segredos, olhou a neta de soslaio e, na hora de levar os pedidos, fez questão de acompanhá-la ao refeitório. Mal entrou no salão já descobriu o motivo do destempero da neta. E algo na velha senhora, uma voz quase imperceptível deu alarme de perigo. Na cozinha a velha sondou:
– Bonito rapaz o hóspede novo, né, Nicinha?
– Qual? – Janice demorou tempo demais a responder e, quando o fez, foi com os olhos baixos, disfarçando concentração no que suas mãos faziam mecanicamente.
– Ora qual! – Dona Cáritas semicerrou os olhos. – O Chaguinha Caixeiro é que não é. O outro, claro. Bonito, mas um pé-rapado. Mata-mosquitos! Funcionário público dos mais fuleiros. Hum, além disso, uma cara de safado, que só vendo. A mocinha que der trela para moço daquele naipe, coitada, não é nem bom pensar.
Janice ouviu a preleção da avó com um vago aperto no peito. Eles mal haviam trocado duas palavras e ela já temia algo que os pudesse separar. Achou-se uma besta e pensou que àquela hora ele nem se lembrava mais de quem o tinha servido no café da manhã. Tentou se concentrar nos afazeres, mas o pensamento volta e meia rodeava um certo par de olhos verdes. Desejou ansiosa que chegasse a hora do almoço.
Ao meio-dia, somente os outros dois hóspedes compareceram ao refeitório. O coração de Janice se apertou de frustração. O resto do dia permaneceu calada, toda macambúzia. O pai até estranhou:
– Estará doente, minha filha? Parece que hoje anda meio amorrinhada.
– Nada não, papai.
De tardezinha, ele ainda não havia voltado. Ao jantar, a tagarelice mercantil de Dona Edith, sempre às voltas com as novidades e negócios, bons e maus, do armarinho da família, por ela administrado, encheu a sala e Janice pôde recolher-se na sua decepção, quase revolta. E nem coragem, nem meios, nem pretextos ela achava para indagar a alguém sobre a permanência ou não do herói romântico como hóspede da Pousada.
À noite, todos foram à novena em devoção a São Pedro, era o sétimo dia e dessa feita sediado na casa do Compadre Chico Euclides. Janice até pensou em inventar um pretexto para poder ficar em casa a espera do desconhecido, mas nem encontrou algum, nem se o tivesse encontrado teria tido coragem de usar. Foi, a contragosto, mas foi. Bem não voltaram, logo todos se recolheram. A gente do interior costuma dormir cedo e aqueles dias de novenas, excessos só permitidos por serem somente uma vez por ano.
Janice esperou, imóvel na rede, a casa adormecer e, depois que o frágil silêncio da noite, entremeado de ressonares, se estabeleceu, ela, aveludando ao máximo os passos, deslizou para o quintal, atravessou-o e, devidamente informada sobre qual quarto assuntar, foi decretada em direção aos aposentos do forasteiro. Estava decidida a entrar, tocar nos objetos por ele tocados, bulir nos pertences dele, cheirar as roupas de cama. Nesta determinação febril, sem querer pensar em nada para não perder a coragem, no que levou a mão ao trinco da porta, ouviu o ranger do armador de rede e um leve pigarrear. O coração disparou-lhe com tal intensidade que ela, tonta, as pernas trôpegas, na ânsia de fugir, deu um passo em falso e arreou-se no chão com um baque surdo. De um pulo pôs-se em pé, correu para o oitão, dando a volta no quartinho, e agachou-se rente à cerca, parcialmente escondida nas sombras de um comigo-ninguém-pode, pelejando, a boca aberta, para conter a força ciclônica da própria respiração e não fazer mais barulho do que já fazia o bumbar do seu coração. Ouviu que o mata-mosquitos abriu a porta, saiu do quarto, deu alguns passos. Rezou para que ele não desse a volta no quartinho, a lua estava que era um dia, e ela com um vestido creme, clarinho, escondida praticamente no limpo, seria descoberta no ato. Se pegou com todos os santos, já quase chorando.
O estranho não a descobriu, ainda andou alguns passos, apurou os ouvidos, arregalou os olhos tentando devassar as sombras trêmulas do quintal, mas depois deu de ombros e voltou a entrar no quarto.
Algum tempo depois (quis se certificar que estava salva de todo), ao retornar à camarinha, Janice ia trêmula, as pernas ainda bambas, mas feliz: seu cavaleiro errante dormia a poucos metros de si.
(Continua...)
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