Precário como um limite (3ª e última parte)
Trêmulo e mortalmente pálido, encostou-se na parede. Fazia um esforço sobre-humano para se concentrar e entender. Foi com surpresa que percebeu sua, a princípio, tímida ereção. Um desejo mórbido e irresistível de expiar o quarto dos pais e ver o que faziam. Mas, não eram seus pais, não podia ser, seus pais estavam velhos. Mordendo os lábios, aproximou-se novamente da porta.
Não, não era sua mãe, nem seu pai. Era a sua mulher, que, de olhos fechados e rubor de fogo nas maçãs do rosto, gemia e arranhava as costas do amante. Fixou-se naquelas costas largas e morenas que iam e vinham numa cadência marítima. Conhecia aquele homem... Não era o pai, não era ele, era outro... Sua mente estava tão lerda. Sim, conhecia aquele homem. Era o jovem síndico do prédio.
Afastou-se do quarto, dessa vez, não movido por instinto, mas por uma resolução que parecia externa à sua vontade, uma força que comandava inexoravelmente seus movimentos. Não raciocinava, não pensava. À sua frente somente a imagem de umas nádegas musculosas indo e vindo e em seus ouvidos os gemidos da mulher, assumindo proporções sonoras de dobres de sinos.
Foi até o escritório, pegou a chave escondida dentro de uma bíblia, abriu a última gaveta da escrivaninha, pegou a caixa, abriu-a com extremo cuidado e empunhou a arma.
Voltou ao quarto, abriu a porta com naturalidade e, sem uma palavra ou hesitação, ergueu o punho, mirou e atirou. O primeiro tiro atingiu o meio das costas do rapaz. Contemplou admirado o aparecimento, como que por encanto, de uma rosa vermelha, derretendo-se em néctar, naquelas costas morenas que arquearam e, logo depois, relaxaram.
A mulher não conseguiu refrear o próprio orgasmo. Abriu a boca, maravilhada com a sensação que a atingiu como um raio. Ele esperou, meio envergonhado, imaginando que em sua calça uma mancha úmida estivesse se espalhando.
Trêmulo, ergueu novamente o punho e mirou no meio dos olhos da mulher. O semblante dela era incrivelmente calmo, uma calma transcendente que somente as pessoas que estão a milésimos de segundos do inevitável são capazes de sentir. Somente os olhos dela estavam desmesuradamente arregalados e cravavam-se fundo nos dele, invadiam-no.
A bala cravou-se onde ele havia mirado. Os olhos arregalados dela perderam o brilho vital, todavia continuaram cravados nos dele. Só, então, ele se deu conta do horror de tudo aquilo, e um medo terrível de animal acuado o dominou, um medo irracional do olhar acusador de morta. Por um momento uma certeza medonha o trespassou, a certeza de que aquele olhar iria acompanhá-lo para o resto da vida, sem descanso, sem perdão.
Cambaleando e o mais rápido que suas pernas trêmulas lhe permitiram, tentou fugir daquele lugar.
Andou, andou, andou. Andou muito e por muito tempo. Perambulava pela cidade completamente maravilhado com sua suposta insanidade. Estou louco e, como tal, não tenho responsabilidade nenhuma pelos meus atos. Nenhuma! Era tão atraente, tão sedutora a ideia de ser inocente, independente do que fizesse, inocente sempre. Tão bom ser louco! Quem poderia culpá-lo pela morte da esposa e do amante? Se sou louco, sou inocente, não sei o que eu fiz, não posso ser responsabilizado por nada, em absoluto! Por mais que argumentasse consigo mesmo, continuava a olhar para trás e ao redor de si, sobressaltado.
Por que estou tão nervoso, se sou inocente? Por que não consigo agir como inocente? Por que essas mãos frias, esse suor pegajoso? Tenho que me acalmar. Se nem sei mais o que é real, para que o medo? Talvez eu até já esteja preso. Talvez ainda esteja no apartamento. Talvez ela ainda esteja me olhando. E novamente aqueles olhos mortos e acusadores cravaram-se-lhe nos olhos da alma.
De repente, uma mão asquerosa agarrou a sua e ele não conteve o grito de horror. Era um mendigo que esmolava numa calçada e, ao vê-lo passar, no desespero de, àquela hora do dia, ainda ter quase vazia sua latinha, agarrara sua mão.
– Uma esmola, moço, pelo amor de Deus!
Pôs a mão no bolso à cata de alguma moedinha. E lá estava a arma, a mesma que tanto procurara ainda há pouco. Soltou o objeto no colo do mendigo como se este estivesse em brasa.
Saiu correndo sem olhar para trás. Correu até sentir seus pulmões arderem. Parou no alto de um viaduto. Encostou-se na mureta para recuperar o fôlego. A mente estava vazia. Só pensava que tinha que continuar correndo. Olhou para baixo. Os carros passavam em alta velocidade. Como num sonho, sem entender o que fazia, subiu na mureta e, sem hesitação nenhuma, pulou. Caiu, caiu, caiu no vazio. Ao longe um choro de mulher. Dona Sônia? Uma sirene. O asfalto aproximava-se rápido, mas não chegava, não chegava nunca. Luzes vermelhas. Muitos rostos, um círculo de olhos. E continuava caindo... Uma queda infinda. Terror absoluto.
No dia seguinte, os jornais da cidade noticiavam a indignação da sociedade ante o falecimento de um jovem psiquiatra, pai de família, mais uma vítima da violência, morto, atropelado, a poucos metros do seu consultório, durante uma perseguição policial a um grupo armado e perigoso de assaltantes de banco. Ao lado da notícia, duas fotos: uma, antiga, do morto e outra, recente, da viúva inconsolável, durante o velório do marido, em meio a uma manifestação de familiares, amigos e pacientes por paz e segurança.
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