Precário como um limite (2ª Parte)


Na manhã daquele dia, ele parava o carro no estacionamento privado em frente ao Centro Clínico, onde consultava, na zona sul da cidade.

Estava atrasado. Perdera a hora. Tivera uma noite péssima. Pesadelos. E, como a respiração pesada e ruidosa dela durante o sono irritava-o sobremaneira, demorou a pegar no sono novamente, sufocando-se com o travesseiro na tentativa infrutífera de abafar aquele som cavo que enchia todo o quarto como uma presença física. Só voltou a adormecer com o dia clareando.

O sol já alto, quentíssimo para aquela hora da manhã, ardeu-lhe na pele e feriu-lhe os olhos. Uma pontada forte nas têmporas. Pensou que não poderia atender a nenhum paciente com aquela dor de cabeça. Como iria se concentrar? E o sono? Pior ainda. Como atender um paciente que apresentasse, por exemplo, um quadro de ansiedade social, aliado a um rebaixamento patológico de autoestima, bocejando de dois em dois minutos? Riu ao imaginar a situação. Pediria a Dona Sônia que providenciasse o quanto antes uma garrafa de café forte e bem amargo.

Lembrou-se de uma farmácia próxima, só atravessar a rua, alguns passos adiante. Podia muito bem comprar algo para aquela dor de cabeça. O diabo era aquele sol. Bem que poderia pedir a Dona Sônia que lhe fizesse a gentileza de... Mas estava tão perto. Revirou os olhos, encheu os pulmões de ar e soltou com força, estufando as bochechas. Deu meia-volta.

Na faixa de pedestres, esperou impaciente o sinal abrir para atravessar. O pedestre luminoso ficou verde. Preparou-se para atravessar, quando ouviu um carro dobrar a esquina, cantando pneus. Não se preocupou, continuou a atravessar a pista. Olhou para o carro que se aproximava sem diminuir a velocidade. No seu encalço, uma viatura policial que também dobrara a esquina, quase dando um cavalo de pau.

A dor de cabeça fora esquecida. No meio da rua, ele via o carro se aproximando cada vez mais. Podia ter corrido, mas não o fez. Na verdade, não conseguiu, as pernas subitamente de chumbo. Uma calma intensa esmagou-lhe o peito como um torno. O tempo parou liquefeito. Fechou os olhos e esperou. Um barulho ensurdecedor, terrível, quase eterno, seguido de um silêncio ainda mais aterrador. Depois, como que emergindo de um lago, o som da sirene foi, num crescendo, invadindo, inundando toda a rua.

Lentamente ele abriu os olhos. Pessoas saiam às ruas, corriam, ávidas por sangue. Carros freavam. Caos. Seguiu com o olhar as pessoas que corriam. Mais adiante, um carro capotado. A viatura parada. Policiais armados protegiam-se atrás das portas do carro, na expectativa de sobreviventes acuados. Nada mais perigoso que alguém que não tenha mais nada a perder.

Longos e arrastados segundos se passaram para que ele compreendesse o que sucedia. Como a sirene da viatura, apenas mais lentamente, sua consciência emergiu de um lago de águas turvas e caóticas. Teve medo, ainda não estava seguro. Sentiu-se só no meio do caos. Precisava correr para algum lugar seguro, um lugar familiar. O extremo alívio de escapar de um perigo iminente enchia-lhe de uma energia monstro, tinha que extravasar aquela força, para não explodir, para não morrer de alívio, queria gritar, mover-se freneticamente, gargalhar, conteve-se. A única maneira coerente que achou para extravasar todo aquele ímpeto foi correr o mais rápido possível.

Correu para o Centro Clínico. No saguão do edifício, sentiu-se protegido. Tentou controlar a respiração, acalmar-se. Pessoas passavam por ele, apressadas, em direção à rua. Olhou-as e, no meio delas, viu Dona Sônia. Quis chamá-la, avisá-la de que chegara, impedi-la de arriscar-se, mas, quando venceu os escrúpulos de gritar-lhe e violar o silêncio respeitoso da clínica, a recepcionista já atravessara a porta de vidro e descia a calçada. Chegou a levantar o braço direito, a espichar o pescoço, a abrir a boca e a sorver o ar para soltá-lo no chamado: Dona Sônia! Mas convencendo-se da inutilidade do gesto, abaixou o braço meio sem jeito, olhou para os lados para ver se alguém vira sua intenção frustrada. Deu de ombros, e apertou o botão do elevador.

O consultório estava vazio. Estranhou. Desde que começara a clinicar, avalizado pelo pai, também psiquiatra, uma das carreira mais sólidas no meio psiquiátrico, nunca chegara para encontrar a sala de espera vazia. Ainda mais àquela hora do dia. Ah, só podia ser por causa do acidente. Quem não gosta de sentir o cheiro de sangue? Às vezes, acreditava em vampiros. Riu cansado, suspirou e entrou em sua sala. O jeito era esperar até os bombeiros limparem a sujeira.

A cabeça ainda doía. Deitou-se no divã. Logo Dona Sônia chegaria. Sempre fora muito responsável. Não tardaria fora, em pleno expediente. Daqui a pouco começariam as consultas. Queria tanto dormir um pouco. Aquele acidente tinha sido providencial. Quem sabe, se houvesse alguma vítima fatal, não demorariam, Dona Sônia e os pacientes, um pouquinho mais. Relaxou. Quando Dona Sônia voltar, vem primeiro ver se cheguei... avisar sobre os pacientes... perguntar se já posso começar a atender... Quem serão os pacientes de hoje? Não lembro. Relaxou mais ainda. Dormiu. Um sono pesado, sem sonhos, quase uma morte.

Acordou sobressaltado. Quanto tempo dormira? Olhou no relógio, quase meio dia. Estranho que Dona Sônia o tivesse deixado dormir tanto. E os pacientes, meu Deus? Correu para a sala de espera. Vazia. Ué?! Dona Sônia terá dispensado os pacientes? Talvez... Talvez o tenha visto dormir e não o quis incomodar. Mas dispensar os pacientes assim, sem consultá-lo? Quis aborrecer-se com a recepcionista, mas o alívio de não ter atendido ninguém, uma manhã inteira só pra si, e o privilégio de dormir um pouco o impediram de ter uma queixa sincera contra sua funcionária. De qualquer forma, forjou um aborrecimento: Dona Sônia vai ouvir! Não pode sair tomando decisões por mim. É paga para receber ordens, ora bolas!

Olhou o relógio. Meio dia. A próxima consulta seria às 15h. E se fosse para casa? Teria tempo ainda de almoçar, de tomar um banho, de refazer-se. Isso. Era exatamente o que faria.

O trânsito estava surpreendente fluido para aquela hora. Havia calculado que estaria em casa em uns quarenta minutos, mas não demorou sequer vinte. Preferiu não entrar na garagem subterrânea do prédio, deixar o carro estacionado ali mesmo em frente seria mais prático e rápido.

Com um alívio que lhe esvaziou os pulmões e o coração, entrou no elevador. Tão bom vir em casa na hora do almoço. Pensou que seria tão bom poder fazer mais vezes aquela extravagância. Preciso rever meus horários de atendimento, falar com Dona Sônia, quem sabe...

No corredor, silêncio, era um prédio de paredes grossas. Tirou as chaves do bolso para abrir a porta do apartamento. Que estranho! A porta estava entreaberta. Imediatamente seu coração disparou, tornou-se lívido. Se acreditasse em presságios... Mas a sensação de perigo iminente foi mais forte que qualquer racionalização. Pensou logo em assalto, sequestro, ou coisa pior. Imaginou que encontraria a casa revirada e sua mulher morta ou ferida, grave ou até irremediavelmente ferida. Talvez ainda desse tempo de pegar o assaltante, ou, Deus me livre, não é bom nem pensar, ou assassino.

Entrou com muita cautela, cuidando para não fazer o menor ruído. Aos poucos foi sendo envolto, engolfado por sons estranhamente familiares, mas que sua mente não conseguia, ou não queria definir. Como que hipnotizado, seguiu os sons. Vinham do quarto. A porta também estava entreaberta.

Uma sensação de irrealidade o engolfou. Ali, na cama, na sua cama, uma mulher, sua mulher, gemia e se contorcia sob um homem. Instintivamente afastou-se para que não o vissem. Sentiu-se como um menino que flagra os pais na intimidade de marido e mulher. Sentiu culpa e vergonha. Por quê? Não sabia. Sua mente teimava em não alcançar a compreensão total daquela cena.


(Continua...)

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