O Imune
Do quinto andar do edifício oficial, olhava a multidão em ondas, respingada aqui e ali de máscaras de herói libertário de cinema americano. Bramiam cartazes rústicos, com dizeres entre irônicos e revoltados, gritavam palavras de ordem naquela voz sussurrada, grave, urgente, e intimidavam pela gigantesca maioridade numérica até mesmo os imunes e erguidos em totens de prerrogativas... pelo menos os que tinham o bom senso e ainda um resquício de consciência para tal.
− Uma massa buliçosa como o estouro de carne putrefata. – pensou alto. Achou interessante a comparação, inusitada, e se encheu de orgulho por sua capacidade de fazer associações e metáforas. Por isso mesmo é que se achava um ótimo orador. Hitler também o era, só que, ao contrário do ditador, ele não era louco, nem psicopata, só esperto. Talvez um dia escrevesse um livro. Bem que gostaria de ter o nome na lista dos escritores mais vendidos. Quem sabe não tivesse a dupla vocação, política e literatura. Raro era, para não dizer inédito, mas quem sabe. O diabo seria conciliar...
− Meu Pai Eterno, e agora, Deputado?
Até se assustou, completamente esquecido da presença apoucada do assessor.
− E agora o quê? – estranhou.
− Como o quê? Isso. – apontou para baixo com o queixo fino. – Não foi o senhor mesmo que me chamou para ver a massa... como é mesmo?
− Ah. – gesto de enfado, voltou a sentar. – E daí?
− Ora, doutor, estou pensando como é que vamos embora hoje? Se pusermos um pé fora daqui, somos linchados.
− Deixa de exagero, Jubileu.
− Bem que eu disse: devíamos ter ido embora na hora do almoço. Cantei a pedra bonitinho.
− E deixar os gringos no vácuo? Endoidou, Jubileu? Meu mandato termina para o ano e eu ainda sou pobre, criatura. Parece que bebe.
O outro até esqueceu por alguns instantes seus temores. Depois de tantos anos, o cinismo do seu dono ainda o surpreendia. Estreitou os olhos, abriu a boca e balançou a cabeça, na certeza de que suas caras e bocas não seriam notadas.
− De mais a mais, está reclamando de quê? Tem alguma coisa para fazer em casa? Eu, nada e aposto que você menos. Uma terça-feira. Se ainda fosse quinta, não digo, até eu estaria desesperado para não perder o voo. Além do mais, o negócio que fechamos hoje bem vale umas horinhas extras, é ou não é, Jubileu? Vai-me dizer que sua comissãozinha...
Um estouro abafado, seguido de vidro se estilhaçando e gritos, alguns desesperados, outros bélicos, cortou a fala do deputado. O assessor encolheu a cabeça entre os ombros, escondendo precariamente a calvície com os dedos entrelaçados, e afastou-se rápido da janela.
− Valha-me, Cristo!
– Psiu! Olha o histerismo, Jubileu. – a vontade do deputado mesmo era de rir, não se sabia, nem ele mesmo, se pela comicidade patética dos maneirismos raquíticos e ansiosos do assessor ou de nervoso, dadas as claustrofóbicas circunstâncias. Foi firme, no entanto, segurou-se. – Nem parece que é homem.
– Mas, deputado.
– Mas o quê, Jubileu? Estamos no quinto andar, homem, cercados por seguranças. Olha lá, até a tropa de choque está nos guardando. – De fato, os manifestantes eram repelidos por escudos, cassetetes e bombas de efeito moral. – Ih, o cheiro está vindo aqui. Vou logo fechar essa janela. Liga o ar, Jubileu. Olha, mas seguros que isso, só nosso dinheiro na Suíça.
O assessor não estava muito convencido da inalcançabilidade do gabinete. Fazendo esforço para não torcer as mãos, alternando olhares rápidos para baixo e para o chefe, quis aparentar otimismo.
– É, acho que o senhor tem razão. Primeiro eles teriam que passar por nossa força policial, não é? O pessoal da segurança do prédio. E são tantos andares, tantas salas. – Gritos ardidos, xingamentos, tumulto. Rápido, contornou a mesa.
O deputado não pôde mais conter o riso.
– Eita, homem frouxo! Não é homem, não, Jubileu? Está como medo de quê, seu?
– Ora, Deputado, não é propriamente medo. É só cuidado. – Atrapalhou-se. – O que não entendo é de onde isso surgiu.
– Isso o quê? – pachorrento, acessou sua conta. Gostava de olhar cifras.
– Essa moda de manifestação. Antigamente, era uma vez na vida, outra na morte. Geralmente, umas arruaçazinhas de professores com pires nas mãos, coisa à toa que ninguém nem levava em consideração. Muito pelo contrário, com a valiosa ajuda da mídia, eram até mal vistos pela sociedade. Agora não. Essa multidão de gente. E violentos. Quantas vidraças já não quebraram? Dilapidando o patrimônio público.
– Deixa, Jubileu! O que é que tem? Melhor para nós. Quanto mais vidraça quebrada, mais licitações, mais contratos. – Fez um gesto insidioso. – Percebeu? – Voltou-se para a tela do microcomputador, satisfeito com os zeros que via. De repente, empertigou-se.
Jubileu, como se picado por cobra, deu um pulo: – O que foi, Deputado?
– Meu genro! Ele trabalha com vidro, um dos negócios dele, se não me engano.
– O da Glorinha? Mas não eram molduras, Deputado?
– Ora, Jubileu, quem mexe com moldura, automaticamente mexe com vidros. Se não, subcontrata, ora! O que a gente não pode é perder essa bocada. Anota aí, Jubileu. Falar amanhã como sem falta com o Oséas.
O outro, diligente, rabiscou na agenda. Antes de concluir a observação, parou de escrever, na cara uma interrogação, como se tivesse, por exemplo, uma dúvida ortográfica.
– Que foi?
– Deputado, será que? Não, é que eu estou aqui pensando. Essas manifestações todas, os holofotes todos voltados para nós. Não seria uma imprudência se aproveitar dos danos causados por esses vândalos para... faturar?
– Mas, criatura, não são tantas vidraças assim.
– Por isso mesmo! Não seria se arriscar por muito pouco?
– Claro que não! De grão em grão, já sabe! Se não formos nós, será outro. E outra, que holofote é esse, Jubileu? Não tem holofote nenhum, deixa de ser mela-cueca! Se há algum, são os da imprensa, e estes estão muito bem direcionados para os atos de vandalismo! – estreitou o campo de visão com as duas mãos, postas verticalmente em cada têmpora.
Seguiu-se o som de uma pequena explosão, outra vidraça transformada em farinha.
– Olha aí, outra! – esfregou as mãos. – Isso para mim é o som de uma caixa registradora. – Riu mais sórdido do que nunca. – Anota aí, Jubileu, amanhã como sem falta quero uma reunião com meu genro.
O assessor deu de ombros. Terminou sua anotação. Suspirou. Puxou o colarinho, incomodado com o aperto da gravata. Tentou lutar contra a inquietação que lhe envenenava a habitual isenção.
– Doutor, não sei, não, mas tenho pra mim que essa moda de manifestação é um perigo. Nessas ocasiões, sempre um cordeiro é sacrificado para aplacar o furor democrático.
– Ih, falou bonito, hein, Jubileu. Está aprendendo comigo! – debochou sem dó nem piedade. Mudou o tom em seguida, estreitou os olhos e falou sério. – Escut'aqui, rapaz, já que está se revelando um bom aprendiz, aprende outra coisa: cada um desses animais que estão aí embaixo se estivesse no meu lugar, faria a mesma coisa. Sem tirar, nem pôr. Ou até pior. Qualquer um. E sabe por quê? Por que está no nosso DNA cultural, Jubileu. Sabe, sou dos que acham que além da bandeira, do hino, do brasão e do selo, cada povo deveria se distinguir do outro por um verbo. Exatamente, um verbo. Por exemplo, para os americanos, o verbo seria "ter"; para os ingleses, talvez "manter"; os portugueses, "recordar", e assim por diante. E sabe qual seria o nosso verbo? Aproveitar. Somos um povo voraz, Jubileu, vivemos como se amanhã fosse o apocalipse. É por causa do nosso verbo que para fugir de um engarrafamento e deixar muitos carros para trás, pegamos o acostamento ou uma faixa que sabemos que na frente vai afunilar, dando assim nossa eficiente contribuição para que o engarrafamento quadruplique de extensão nas horas de pico. É por causa do nosso verbo que vamos a uma festa, por exemplo, de aniversário, e comemos feito náufragos resgatados, até passar mal. E ainda disputamos a lembrancinha da festa, se dividimos a mesa com alguém de outra família. É tudo por causa do nosso verbo. Não, não vou nem longe. Fiquemos na nossa realidade. Você certamente já viu como ficam as pessoas de um determinado setor, quando chegam materiais de expediente novos. Parecem urubus na carniça. É ou não é? Nas mesas, os porta-canetas abarrotados, as gavetas entupidas de post-it e marcadores de páginas. Mas todos se digladiando, avançando feito lobos para garantir a tira de carne. – Levantou-se. Foi até a janela, mãos nos bolsos. – Sabe por que não me assusto com isso, Jubileu? Por que eu faço parte daquela turba ali embaixo. Eu sou eles.
Jubileu a tudo ouvia calado, olhos vítreos, balançando a cabeça fatalista em concordância.
– Mas eu concordo contigo, Jubileu. Vai ser preciso o sacrifício de um cordeiro. Você me acha com cara de cordeiro, Jubileu? – Silêncio. – Hein? Acha ou não acha? Fala.
O outro só teve forças para tartamudear um quase inaudível "não, deputado".
– Exatamente. Porque não sou, Jubileu. Eu sou lobo. Como eles. – apontou com o queixo para baixo. – Mostrando meus dentes, defendendo o meu pedaço de carne. E esse aqui é o meu lugar na alcateia. Sempre vai ser. Mesmo depois da minha aposentadoria e morte. Outro, igualzinho a mim, dentes tão grandes e afiados como os meus, vai sentar nesse gabinete e ser eu.
Um clarão, quase místico e um tanto teatral demais, anunciado por uma explosão rápida e fulminante, recortou a figura, por um instante luminoso, enegrecida do Deputado. Seguiu-se uma onda de calor e uma chuva sólida de pequeninas gotas de vidro. Jubileu, por instinto, virou a cara para trás numa careta de quem acabou de tomar uma colherada farta de óleo de rícino, antes de se jogar da cadeira. Por quanto tempo ficou de quatro no chão, não soube dizer. Mas só se levantou, quando se sentiu seguro.
– Deputado? – guinchou, ainda com a cabeça escondida muito precariamente entre os braços. Silêncio. O esfíncter se lhe contraiu feroz e profeticamente, o que lhe provocou um arrepio por todo o corpo. – Deputado? Que foi isso, pelo amor de Deus? Foi uma bomba, Deputado? – Silêncio. Ele não pôde mais, ergueu-se trêmulo e cauteloso, entrincheirando-se na mesa do patrão.
O ar seco e frio da noite invadia arrogante a sala, agora que não era mais contido por vidraças em duas janelas, e com ele trazia os sons da rua fervilhante, os gritos, os protestos, os tiros, as sirenes.
Em pé, impávido, de frente para a janela, continuava o deputado, imóvel.
– Deputado. – o assessor levantou-se, tremendo dos pés a cabeça. – Não seria prudente o senhor se afastar da Janela? – Nenhuma palavra. Engolindo em seco, ofuscado, quase hipnotizado por uma sensação de desgraça inevitável, contornou a mesa, foi até o seu dono e lhe tocou o ombro. – Deputado?
Um tremor quase imperceptível sacudiu o corpo do político. E então ele se virou lentamente na direção da voz longínqua de seu assessor. Por sua face congelada em um pasmo fantasmagórico, o olho direito escorria numa lágrima grossa e sangrenta.
Antes de perder os sentidos, Jubileu ainda prestou um último serviço naquela noite ao patrão: seu urro formidável apressou os seguranças a invadirem a sala.
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