O Encontro das Paralelas (Final)
Empurrava colherada após colherada do segundo prato, para não dar tempo sequer de pensar. Decidira que não olharia mais para a mulher, nem para seu suor semicremoso, muito menos para a sujeira que os meninos faziam, uma farra de farelos de pão e sopa espalhada pela mesa. Ô, filhotes, comam direitinho. Deixa, depois eu limpo. Ela e aquela mania de desautorizá-lo na frente dos filhos. Só recorria a sua sucateada autoridade de pai, quando os moleques a intimidavam com a teimosia, que a certeza cada vez maior de impunidade lhes reforçava. Nessas horas, experimentava uma deliciosa sensação de vingança. Tinha vontade de dizer um debochado "te vira". Não o fazia, óbvio. O lar já era suficientemente sufocante para lhe estreitar ainda mais os cômodos, fomentando um clima de discórdia na sacrossanta paz conjugal. Virgem Santa! Esquecemos a oração! Com o grito da mulher, errou a boca e derrubou uma colherada de sopa na camisa. Não, ainda dá tempo. Você puxa, amor? Mas já estamos quase acabando. E o que é que tem? Papai sempre puxava a oração da cabeceira. Mas você e essa sua eterna má vontade. Suspirou resignado e uniu as mãos em prece. Vamos, meus filhos, de mãos postas igual ao papai, vamos. Senhor nosso Deus, damo-Vos graças por este alimento sobre nossa mesa, e Vos pedimos que ele venha nos fortalecer para que sejamos dignos das promessas de Cristo e do amor de Maria, amém! Acho que você esqueceu um trecho. Deus entende e perdoa, e eu já acabei. Estou satisfeitíssimo. Já? Espera a gente acabar, então. Outro suspiro, dessa vez menos de resignação e mais de enfado. Você sabe, não sabe, amor, como é importante para mim que os meninos cresçam dentro da fé católica? Eu sei, amor, eu sei, e também acho importantíssimo. A esposa lhe sorriu como uma mãe condescendente, a um filho rebelde. O que seria da humanidade se não fosse a fé e a moral religiosa? Seríamos uns animais, uns símios. Ele olhou para os meninos se lambuzando e brincando selvaticamente com a comida. É, seríamos uns símios.
Enquanto caminhava para o carro, pensava no Pastor. Ainda não conseguira digerir a longa conversa-sermão que tiveram dois dias atrás. Quando ele a chamara, depois do culto, para um particular, o coração lhe havia seguramente descido, no mínimo, para o útero. Trancados na secretaria da igreja, ele, impassível, primeiro lhe fizera chorar ao expor, à luz fluorescente da sala, os anseios mais íntimos, suas angústias e tormentos de Balzaquiana, como se fosse um bruxo que a tudo via e sabia. Depois, enigmaticamente, tirou da manga versículos do livro de Provérbios, capítulo 31: "Mulher virtuosa quem a achará? O seu valor muito excede ao de rubis. (...) Muitas filhas têm procedido virtuosamente, mas tu és, de todas, a mais excelente! Enganosa é a graça e vã é a formosura; mas a mulher que teme ao Senhor, essa será louvada." Me chamou de feia. Sua reação inicial foi de indignação. Retesou-se. Ele buscou-lhe a mão álgida e úmida, apertou-a entre as dele e, olhando-a fixa e intensamente, arrematou com mais uma citação sagrada. Isaías, capítulo 4, versículo 1: "E sete mulheres naquele dia lançarão mão de um homem, dizendo: Nós comeremos do nosso pão, e nos vestiremos do que é nosso; tão somente queremos ser chamadas pelo teu nome; tira o nosso opróbrio." E dito isso, largou-lhe a mão e levantou-se, indicando que já terminara. Agora, reflita na Palavra, irmã. Afagou-lhe o ombro e deixou-a naquele inferno de encruzilhadas. O que lhe quisera dizer com tais passagens, Jesus? Que era feia, isso nem se discute. Mas pelo resto da citação, podia supor que ele lhe dissera não se importar com isso. E aquilo de que valeria mais que joias preciosas? Corou de esperança e volúpia. Se tivesse parado por aí, mas não, continuou. O que significaria aquilo de sete mulheres para um homem? Que lhe queria para amante? Impossível. Não podia ser. E o negócio de agarrar um homem? Seria para ela tomar a iniciativa? Tinha a coisa do pão e da roupa. Seria uma mensagem subliminar de que não estava disposto a lhe sustentar? Isso, naquele momento, pareceu-lhe reforçar a trilha interpretativa da ligação extraconjugal. Melhor isso do que o "opróbrio" de ser uma encalhada, seria isso? Entrou no carro e, antes de dar partida, uma ideia inexorável e soberana lhe ocupou toda a mente, dessas que imobilizam a vítima e só lhe permitem o movimento rumo à sua caprichosa satisfação.
Preciso sair, respirar, enlouqueço se ficar mais um minuto aqui. Ele, com desespero precariamente controlado, levantou-se. Vou fazer uma caminhada. O quê? Que novidade é essa? Você não ouviu que o médico falou do meu colesterol. É, amor, mas isso faz mais de mês e você não ligou a mínima. Pois é, mas hoje o pessoal do trabalho estava falando que isso é perigoso se a gente não cuidar. Mentiu. Não custa fazer uma caminhadazinha todo dia para prevenir, não é, não? Não acha que já está muito tarde? Nada. Mas já vai? Espera ao menos a gente acabar, poderíamos ir todos juntos. O quê? Você está brincando, não é? Como é que se faz caminhada? Respirou fundo. Amor, caminhada se faz com um certo ritmo e cada um tem o seu. O meu para você seria provavelmente muito rápido, o seu para mim devagar demais, junte a isso os meninos e não seria caminhada, seria um passeio, não adiantaria nada. Mas eu vou ficar sozinha com as crianças? Você sabe muito bem que não dou conta. Amor, pelo amor de Deus, uma hora, ou até menos, trinta minutos, é pedir muito? Tem dó. Não se importou com o bico mal-humorado da mulher. Os meninos ainda se divertiam com a comida. Melhor ir logo antes que eles se cansem da porcaria que estão fazendo e venham grudar em mim. Volto já.
Mando uma mensagem para ele? Não. Ou mando? As sete mulheres agarraram seu homem, se não o tivessem feito... Como seria o resto da história? Ele não tinha prosseguido. Será que elas conseguiram? Olhou para a Bíblia. Se não estivesse tão atrasada, procuraria agora. Mas, por outro lado, se ele quisesse que ela soubesse o final da passagem teria dito. O que importava era que elas teriam agarrado seu homem. Num impulso frenético de suicida, lançou-se para o celular, localizou na agenda o número do Pastor e começou a digitar. Meu querido Pastor, aquela nossa conversa de ontem foi maravilhosa e cheia de bênçãos. Me fez tão bem, você nem imagina. Podemos nos encontrar em outra ocasião a sós para continuarmos o assunto? Cordialmente. E enviou. Cordialmente? Por que estragara tudo com aquele maldito cordialmente? Por essas e outras, que, aos 39, ainda estava solteira. Além de feia, era inconsequente, para não dizer burra. Por que não releu a mensagem? Certamente, se o tivesse feito, teria apagado o cordialmente. Será que escrevi errado alguma coisa? Releu a mensagem. Pelo menos erro de português não houve. É, não estava tão mal assim. Uma euforia a arrebatou. Saiu da vaga cantando pneu. Provavelmente, agora ele já teria lido, não desgrudava do celular um minuto, sempre a postos para atender um irmão em dificuldade. O que estaria pensando? Será que responderia? Estava trêmula e vibrante, uma vontade louca de gritar. Saiu da garagem do condomínio e afundou o pé no acelerador. Precisava chegar logo, olhar para ele e ao menos ter alguma ideia do que acontecia.
Na rua, encheu os pulmões de ar. Trinta minutos só para si. A liberdade era embriagadora. Teve vontade de correr. Conteve-se. Não, não voltaria em trinta minutos. Queria mais tempo, tinha o direito. No entanto, sabia, trinta e um minutos depois de ter saído, com certeza absoluta, o smartphone vibraria nervoso e o sorrisinho dela, afetado como sempre, apareceria no visor. Passou a mão pelos bolsos da bermuda. Esquecera o celular. Ato falho, pensou com um sorriso dúbio e algo cruel. A vontade de correr voltou mais forte. Por que tinha que se conter sempre? Apressou o passo, começou a correr meio sem graça, mais um trotar que a corrida desabalada exigida pela a sensação inebriante de espaço que experimentava. Faria caminhadas agora todas as noites. O duro seria voltar depois. Os parcos faróis passavam em alta velocidade, ignorando as placas de 60km/h, e os deslocamentos de ar por eles provocados bafejavam-lhe o rosto como sopros cálidos de uma boca gigantesca.
O celular vibrou. Olhou para o banco do passageiro e viu o visor acesso. Uma mensagem havia chegado. Pegou o celular, olhou para frente. O automóvel mais próximo estava a uma distância segura. Abriu a mensagem. Sua vaca ordinária, quem fala aqui é a mulher do seu querido pastor. Só quero que você saiba que hoje mesmo a congregação toda... Conseguiu ler até aqui, o sangue que lhe fugira do rosto no "vaca ordinária" faltou-lhe também nos dedos trêmulos e inseguros. O celular escapou-lhe e rolou para o chão do carro. Olhou para frente, piscando várias vezes, respirando com dificuldade, o corpo sacudido por rápidos espasmos, como se padecesse de sezão. A pressão baixou muito. Jesus, não posso desmaiar, estou dirigindo. Tentou controlar a respiração. Foi pior, uma crise de choro explodiu do seu peito pela garganta e pelos olhos em soluços dolorosos e lágrimas grossas. Pouco enxergava da pista. Não quis afastar, porém, as lágrimas com a mão para não borrar a maquiagem. Não pode ser. O que a outra teria visto na primeira mensagem de tão comprometedor, meu Deus? Nada. Nadinha. Tão inocente. Ou não era? E será que aquela mensagem tão desaforada era mesmo destinada a ela? Não terminara de ler, podia ser engano. Cadê o celular? Esticou-se, procurou às cegas primeiro com o pé livre, esforçando-se para concentrar atenção na capacidade tátil dos membros inferiores, depois, abaixando-se, com as pontas dos dedos da mão direita, tentando sempre continuar de olho na pista. Não achou nada. Impacientou-se. Levantou-se e mordeu com força a própria mão, enquanto ao mesmo tempo abafava com esta um grito esganiçado ou de desespero, ou de raiva, ou de frustração, ou de medo, ou, o mais provável, de todos esses estados anímicos misturados.
Enquanto corria, teve a percepção fulminante e desacelaradora de que suas carnes estavam ficando moles. Os músculos da juventude agora eram flácidos. E o pior era o peitoral. Tem muitas mulheres com peitos tão muxibentos quanto os meus. Os enormes e impávidos seios da estagiária tornaram a lhe agitar a imaginação. Como seriam sem sutiã? Continuariam tão empinados? Sentiu o contato deles nas próprias costas, como se lhe estivessem roçando naquele momento. Recordar é reviver. Sorriu para si. Estaria ela, como imaginava, interessada nele? Mulher não é visual, não se importa se o peitoral do homem é ou não flácido. Era muito mais nova que ele, mas também não tanto. Teria ele colhão para ter amante? Seria preciso muito sangue frio. Mas por que não? Sentia-se leve agora, quase feliz. Começou a correr mais rápido, lembrou-se de que melhor seria correr no parque, quis atravessar a rua, mas não podia, nem queria diminuir o ritmo, passaria correndo. Depois desse carro dá.
O celular vibrou novamente, o visor tornou a se acender ¬− outra mensagem – e sua luz azul fez com que o aparelho se sobressaísse na escuridão do interior do automóvel. Estava ele em frente ao banco do passageiro, perto do câmbio de marchas. Olhou para a estrada. Será outra mensagem da bruxa ou dessa vez seria do Pastor? Ou quem sabe de outro conhecido, que, àquela hora, já saberia de tudo? Será que a cidade inteira já sabia? Mas sabia do quê, se não fizera nada. Precisava pegar o celular. Afrouxou um pouco o cinto de segurança, o carro da frente estava muito distante, o trânsito já se normalizara. Pegaria num instante. Mergulhou para a direita, esticando-se toda. O carro desgovernou-se um pouco, como se tivesse passado por um desnível da pista, o que foi bom, porque fez o celular vir ao encontro de seus dedos. Nesse exato momento, no entanto, uma pancada de algo no capô, como que, pareceu-lhe, uma enorme jaca madura − o que seria bem possível se ali houvesse uma jaqueira esticando contorcionisticamente seus ramos para o meio da rua −, ao que se seguiu um barulho aterrador de vidro estilhaçado. Tal estranheza fê-la deixar escapulir para mais longe ainda o celular. Merda! Levantou-se e deu de cara com o muro aproximando-se perigosamente do seu farol dianteiro. Por instinto, virou a direção para a esquerda, pisando fundo no freio. Bateu de frente no primeiro poste, ao mesmo tempo em que o carro se enchia de um branco-gelo asfixiante.
Só percebeu que os dois faróis não iam passar por ele, mas por cima dele, tarde demais. Ou quase tarde demais. Até teria dado tempo, questão de milésimos de segundo para ele, num impulso atávico de felino, ter se jogado para o meio da rua, na tentativa desesperada de se livrar da colisão, ainda que correndo o risco de ser atropelado por outro carro, o que não seria o caso, já que não vinha nenhum outro a uma distância tão curta, a ponto de não conseguir frear ao ver um corpo estatelado no meio do asfalto. O diabo foi que se distraiu, ou por outra, ficou paralisado de assombro ao ver que o carro aparentemente não era pilotado por ninguém, um carro fantasma. Talvez passe por mim. Depois o baque e o voo, como se fosse um boneco atirado longe por uma criança birrenta. Uma sensação de descontrole, de inevitável, esvaziou-o de si. Demorou tanto para que o asfalto viesse ao seu encontro, teve tempo para pensar em muitas coisas, mas nada mais lhe parecia importante, tudo tão pequeno. A única coisa definitivamente relevante, talvez de toda sua existência, era o instante em que o asfalto lhe abraçaria com sua escuridão de piche. Tudo nele era expectativa daquele momento poderoso, imenso. Nem o antes, nem o depois existiam mais.
Ela, depois de lutar com o air bag por um tempo que lhe pareceu demasiado longo, saiu do carro zonza, nauseada, confusa. Pernas trôpegas, caiu e levantou-se umas tantas vezes. Descobriu o salto quebrado e livrou-se dos sapatos. Rasgaria as meias naquele asfalto. Conseguiu, então, dar alguns passos. A vista embaralhada, sem foco. Onde estaria? O que teria acontecido? Piscou várias vezes. Foi quando divisou no asfalto um corpo. Um homem deitado numa posição estranha e diria impossível, se não visse com seus próprios olhos. Foi até ele como num sonho. Estava noutra dimensão. Parecia-lhe que nem tocava o asfalto com os pés, apesar de quando em vez ter que tocá-lo com as mãos para poder novamente levantar-se e continuar andando. Agachou-se e virou-o. Bonito, apesar do sangue. Não, bonito não, simpático, o que já era muito bom. Lembrou-se, então, do enredo de uma novela, vista com entusiasmo no tempo em que ainda não se entregara a Jesus: a mocinha conhecera o mocinho, atropelando-o. Brigaram, fizeram as pazes, brigaram de novo, sofreram e depois viveram felizes para sempre. Graças, Senhor, graças! Jesus fecha uma porta, mas abre outra. Com esforço, puxou-o para o colo, segurando-o como a um bebê com um braço e limpando-lhe o sangue e a sujeira com a mão livre, numa imitação involuntária e pós-moderna da Pietá. Dorme, mas acordará. Riso e lágrimas de realização. É meu, meu, só meu! E me amará como nenhuma mulher foi amada. Graças, Senhor!
Quando chegaram a assistência, a polícia, os bombeiros, foram necessários quatro homens para fazê-la largar o cadáver.
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