Inocente de todas as culpas (Final)
Quanto tempo levara para recobrar o controle dos pensamentos? Não sabia. O cérebro só voltou-lhe a funcionar depois de outra cãibra, ainda mais intensa que as duas primeiras, uma que lhe impediu de respirar por quase tempo demais.
Com a dor perdendo espaço, o ar invadiu-lhe os pulmões aos borbotões e ele se engasgou com a própria saliva. Acesso de tosse. O esforço magoou-lhe ainda mais os músculos tensos e doridos.
Esmaecido o engasgo, a primeira sensação consciente foi a umidade fria e humilhante embaixo das próprias coxas e nádegas. Ele, um médico, diretor de hospital, urinara-se de puro pavor. Aquilo lhe doeu com uma infâmia e sua mente rebelou-se contra a falta de informações a respeito de sua real situação. Ele, que era tão bom, não fazia mal a uma mosca, muito pelo contrário, sempre tão caridoso, até trabalho voluntário já fizera, pouco, mas fizera, como é que alguém podia praticar uma enormidade daquelas com ele, com ele? Não fizera nada para merecer aquilo, nada. Erros, alguns todo mundo comete. Era humano. Quem nunca errara que atirasse a primeira pedra.
Chorava. Um homem na sua idade, posição social, prestígio, só com a roupa de baixo, mijado e chorando feito criança. Meu Deus, por quê? Nunca prejudicara a ninguém. Devia ser um mal-entendido, na certa o confundiram com outro. Nunca fizera mal, nunca. Pelo menos, não um que merecesse semelhante castigo. Se ao menos soubesse do que era acusado, se ao menos pudesse se defender das acusações. Quem poderia odiá-lo tanto? Quem? Uma esposa traída? Não, um adultério não justificaria uma barbárie daquelas. Nem assassinato justificaria. De mais a mais, Marta era uma santa, uma alma boa, pura, uma pomba sem fel. Até fria era. A esposa ideal para um homem como ele. Nunca sequer questionara uma decisão do marido. Não, Marta jamais se sujaria com um crime tão vil, ainda mais por mera vingança. Simplesmente não era do seu feitio, tão católica. Sentiu uma ternura imensa pela esposa, uma vontade de todo o ser de revê-la. Por um momento, quase se arrependeu pela Gil, mas a imagem da residente, linda, jovem, fresca, sinuosa como uma serpente, mesmo de jaleco, não lhe deixou dúvidas: não era sua a culpa. Quem, em sã consciência, poderia acusar-lhe? Qualquer um estava sujeito a cair em tentação, ainda mais quando a tentação era a Gil. Se havia uma culpada era a própria Marta. Quem a mandara envelhecer? A velhice na mulher era pior que falta de caráter. E sempre frígida, desinteressada, evitando-o. Possuí-la era como, Deus o livre, não era bom nem falar. Marta nascera para ser mulher de um necrófilo, isso sim. E a outra? Linda, branca, olhar felino, seios pequenos, redondos, a pele, uma pétala de rosa, família boa, educação exemplar, médica competentíssima. Uma vagabunda! Senão, que outra espécie de mulher seduziria um homem com o dobro de sua idade, ou mais, casado, pai de família, inclusive com filho homem?
O filho. Havia o filho. Batera na cara do filho uma vez, ele já homem feito, de barba. Dissera-o vagabundo, moleque. Cortara mesada. Expulsara-o de casa. Mas isso já fazia tanto tempo. Um filho poderia guardar anos a fio rancor tão terrível por um pai? Não, claro que não. Não o seu Álvaro, tão bom, uma alma doce como a mãe, fraco, sem fibra, nem colhões. Não, Álvaro não lhe guardava rancor nenhum. E ele sabia, agora que tinha um bom emprego, mulher, filha, ele sabia, tudo o que fizera fora por zelo de pai. Qual homem assistiria de braços cruzados a derrocada do filho? Tudo o que fizera fora para lhe abrir os olhos, fazê-lo enxergar o abismo para o qual caminhava, se insistisse naquela obsessão por teatro. Onde já se viu trocar o Direito pelas Artes Cênicas! Um absurdo sem tamanho. Quem permitiria que um filho se envolvesse e fosse levado por aquela gente torpe, suja, lasciva, da pior laia, um bando de pederastas vagabundos, sem sequer senso moral? Hoje, Álvaro sabia, entendia seu velho pai. Não, onde andava com a cabeça? Chegar a presumir que o filho fosse capaz de arquitetar um parricídio. Riso nervoso. Parricídio. Devia estar louco mesmo. Já admitia até a própria morte. Não. E Deus? Deus o abandonaria? Não. Não a ele, que ia a missa todos os domingos, ou quase todos. Havia de chegar o socorro. O filho, a família daria por sua falta, acionariam as autoridades. Ainda o salvariam. Como pudera duvidar de sua família amada? Não, uma monstruosidade daquelas não poderia ser obra de parente, de ente querido, era coisa de gente de fora, gente de má cepa. Mas quem? Um paciente, talvez. Não, sempre fora bom médico, nascera com a vocação. Desde pequeno, na fazenda do pai, "operava" calangos, sapos.
Veio-lhe à mente, vívida, como uma fotografia, a imagem do ribeirão que cortava as terras do pai. Engoliu em seco. Não queria pensar no ribeirão. Precisava pensar nos pacientes. Haveria dentre eles algum com motivo para vingança? Não, não podia pensar no ribeirão. Houve aquela negra grávida, aquela que morrera de eclampse. O marido ficou alucinado, soube depois. Os jornais noticiaram, fizeram carnaval. A família até deu entrevista para uma emissora de televisão local, fizeram escândalo ante as câmeras. Gente pobre não tem pudor do próprio sofrimento, parece que sentem prazer em esfregar suas desgraças na cara alheia. Acusaram-no de negligência, de racismo, ora veja, de brutalidade, o diabo, exageraram. É certo que fora um tanto rude. Mas também, invadiram-lhe o escritório, imagina a audácia, chegaram exigindo, batendo na mesa. Isso é um hospital público, ou não é? Um acinte. Quem o poderia culpar? Não havia leitos, nem obstetras de plantão. E ele, cansado, esgotado, não era mais um menino, e ainda atrasado para aquela bendita reunião do Rotary, não podia atender. Tentara explicar que sua especialidade era outra, cardiologia, mas era uma gente burra, acabara se exaltando, enxotando. Uma opressão no peito, um mal-estar, respiração difícil. Talvez hoje atendesse. Seria aquela família seus algozes? Eram pobres, de onde arranjariam recursos para capturá-lo? Afinal de contas, qualquer sequestro, seja dos mais vagabundos, exigia certa infraestrutura. Teriam feito subscrição na vizinhança? Uma vaquinha para o crime. Riso-choro. Descontrole.
Uma nova cãibra, ainda mais forte que as anteriores, espalmando-se por todo o trapézio direito, redondo, deltoide, e refletindo-se até o tríceps, por pouco não o faz perder os sentidos. Como as outras, não passou de todo. Em seu rastro, uma dor cansada, um desconforto trêmulo, que lhe sacudia o corpo e lhe derramava cera derretida dos olhos pela face congestionada.
Não tivera culpa. Uma aposta, e jogara limpo. O pensamento começou-lhe vindo aos soluços e rouco como seus gemidos. Quem? Quem poderia acusá-lo por uma brincadeira inocente? Duas crianças descobrindo o próprio corpo, não podia haver nada mais puro. Respiração ofegante. Asma. A boca tão seca. Há quanto tempo não bebia um gole de água? Sempre se descuidara de beber. Tinha até problema nos rins, cálculo renal. A correria era tanta. Se tivesse bebido mais. Uma morte por desidratação era terrível. Boca seca, cansaço, esse mal-estar, sensação de desmaio, sintomas de desidratação avançada. Talvez estivesse ali por mais horas do que imaginava. Não podia chorar, não podia perder líquido. Por quanto tempo ainda manteria a sanidade sem um gole de água? Ia morrer. Sabia. Tinha que manter a calma, não podia chorar. Assassinado. Longe de tudo e de todos, exceto de seu próprio assassino. Tanto medo. Era mentira. Não jogara limpo. Ele, o mais velho do grupo, sempre levava vantagem em tudo. Sabia que ganharia o jogo, por isso apostara. E não era inocente coisa nenhuma. Já conhecia cabras e galinhas. Disso era culpado. Mas era tão jovem, pré-adolescência, nem alma tinha ainda. Além disso, que culpa tinha de ser o irmão um parvo, um mofino, que invariavelmente perdia as apostas e brincadeiras? Acaso, assim como ele, também não apostava e estava sujeito a perder e ter que pagar a prenda infame? Até preferiria que quem perdesse tivesse sido um dos filhos dos peões. Mas não, sempre o idiota do irmão, sempre o envergonhando. E nunca ninguém poderia acusá-lo de trapacear, nunca. Mas isso era uma história tão antiga, para que pensar no ribeirão agora? Não fazia nem sentido. Meio século, ou mais. Ninguém espera meio século para se vingar. E outra: seu irmão não lhe guardava mágoa, talvez nem lembrasse. O pobre o venerava, no máximo lhe tinha inveja, o que era perfeitamente compreensível. Ele, rico, respeitado, carreira sólida; o infeliz, um pobre comerciante de bairro, escravo do próprio sustento. Não, não sabia por que ainda insistia em desconfiar de familiar. Já tinha decidido: o algoz era um estranho. Gente invejosa que não suporta o sucesso alheio. Um adversário político talvez. Quem sabe coisa de comuna. Ah, os militares no poder novamente. O país não estava esse caos, tudo fora do lugar, a gente de bem, a elite, como ele, correndo perigo, à mercê dessas hordas indigentes.
Outra lembrança antiga, quase apagada pela rotina de muitos dias sobrepostos. Teriam aqueles miseráveis escapado dos porões? Seria possível? Aqueles sim teriam um motivo. Um motivo torto, evidentemente. Sim, porque no final a História mostrara quem estava certo, não? Mostrara sim. Ele. Ele era o certo, ele que sempre tivera posição, destaque, ele, que era invejado e admirado, ele, que estava do lado da ordem, da moral, do país. Se havia uma coisa de que não se arrependia era de ter ajudado, na época da universidade, as autoridades a caçarem aqueles subversivos, aquela gentalha ensandecida, que queria levar nossa pátria ao caos. Onde já se viu acabar com a propriedade! O que sustenta uma sociedade é a propriedade, o que nos separa dos animais. Ah, não, disso não se arrependia, muito pelo contrário, tinha orgulho. E, se guardara segredo de suas atividades patrióticas, não era por vergonha, ou remorso, era porque não gostava de se jactanciar, nunca fora um garganta. Agora, se alguns pereceram, a culpa não era dele. De jeito nenhum. Se havia culpados, estes eram os policiais que se excediam nos interrogatórios. Geralmente essa gente tem índole má, são sádicos, nem podia ser diferente, é traço vocacional, só se diferenciavam dos bandidos por estarem do outro lado da linha precária que separa crime e lei. Senão, como combater os malfeitores? Mas não, não podiam ser aqueles infelizes. Dos poucos que denunciara, nem meia dúzia, talvez um pouco mais, só dois haviam descoberto suas atividade de informante infiltrado e, por isso mesmo, tiveram que pagar preço maior que o devido. Sumiram. Mas, naquela situação, quem o poderia culpar? Era a própria pele que estava em jogo, era a lei da sobrevivência. Qualquer um faria o mesmo. Eles teriam feito o mesmo se os papeis fossem invertidos. Só sendo muito hipócrita para acusá-lo. Além do mais, estava fazendo seu dever cívico. E aquilo já fazia tanto tempo. Será que eles haviam escapado? Se haviam, por que esperar tantos anos para destruí-lo? Aqueles dois miseráveis, comunas desgraçados. Não, agora lembrava, não foram só os dois que caíram. Dinah... Ah, Dinah, você escolheu o rapaz errado. Tanto que ele a havia tentado, dado em cima, salivado. Mas, você, Dinah, preferira aquele subversivozinho de meia pataca metido a Che. Se você caiu junto com seu namoradinho maconheiro e o comparsa dele, Dinah, acaso teria ele alguma culpa? De forma alguma. Você fizera sua escolha, Dinah. E ele, inocente. Tão inocente, e Deus é testemunha, que jamais lhe passara pela cabeça vê-la, uma moça tão meiga e delicada, cair nas mãos daqueles milicos selvagens. Não fora o que planejara. Jamais. Pensara, sim, em consolá-la depois do sumiço do outro, mostrar-se amigo desinteressado e, por fim, seduzi-la. Teria lhe dado tudo. Teria feito de você, Dinah, uma rainha. Mas, fazer o quê? Depois, vieram outras Dinahs, tantas. E o estranho é que agora, tentando evocar a figurinha dela, só conseguia ver a da filha. Sua filha, tão amada. Será que ainda veria sua princesa? Ah, se soubesse que tinha tão pouco tempo, não a teria deixado ir ao Canadá. Mais de ano longe de seu maior tesouro, seu orgulho. E agora que voltara, tão linda, tão instruída, tão preparada, tão pouco tempo passara com ela. A medicina, não era apenas um ofício, era escravidão. Sua filha, agora uma mulher feita, adulta, mas aparentando tanta fragilidade. O que seria dela sem a proteção paterna contra a cobiça daquela canalha, bando de faunos, de abutres. Todos os homens são animais sexuais. Vira muito bem os olhares lúbricos do sobrinho, aquele parasita, e até mesmo do irmão, velho licencioso, miserável. Na certa pensava que ele havia esquecido o ribeirão, sabia muito bem do que ele era capaz, o velho ridículo. E não pensasse ele que iria permitir que o idiota sem futuro do sobrinho se valesse do parentesco para ter alguma chance com a sua princesa. Eram primos, mas eram feitos de barros diferentes. O cretino tinha o sangue ralo do pai, era filho de quem era, e sua filha, uma vencedora nata.
O coração acelerou. Agitou-se. Tornou a forçar as algemas, dessa vez com o propósito único de descontar sua raiva impotente. Esperneou. Rangeu os dentes. Precisava sair dali, precisava proteger a filha. Nenhum daqueles porcos poria as mãos na sua filha, não daria esse direito. Era o pai, só ele, ele tinha todos os direitos, todos. Babava de ódio. Pensava na filha, e a raiva aumentava. Agora a figura da filha se misturava à de Gil. Não, não, não. Queria pensar na filha, mas só conseguia ver o corpo nu da amante. De repente, o horror dos próprios pensamentos. Era a desidratação, a confusão mental era um dos sintomas. Quanto tempo ainda teria antes de enlouquecer? Precisava argumentar para com seu carrasco, fosse quem fosse, provar-lhe a inocência. Precisava pensar com clareza, estar lúcido. Sempre fora bom com as palavras, brilhante orador. Devia ter sido advogado, ou político. Talvez chegasse a presidência. Não, precisava se concentrar, organizar as ideias, enquanto ainda podia. Água, precisava de água. Socorro! Não, ninguém o ia socorrer. Alguém estava ali para matá-lo. Riso. Estava pedindo socorro a seu assassino. Gargalhada. Choro. Um grito de desespero. Alguém podia dizer o porquê? A todo criminoso era dado o direito de conhecer seu crime e de se defender. Alguém dissesse o porquê, pelo amor de Deus. Tinha o direito de saber, de exigir e, sobretudo, tinha o direito de argumentar em sua própria defesa. E precisava fazer isso agora! Já!
Em resposta a seus gritos e exigências, som de ferrolhos sendo abertos e de chave dando voltas na fechadura, sons que fizeram silenciar o mundo. Um frio de morte, um arrepio de terror. Teria como voltar atrás? Não? A porta rangeu, terrífica, e lentamente se abriu. Um jato de luz inundou o quarto e feriu-lhe os olhos, um jato que se foi abrindo em leque e iluminando tudo, devassando as sombras, intimidando-as, e revelando um quarto muito limpo e asseado. Coração arrebentando no peito. Respiração suspensa. Olhos ardentes, secos e insanos. Um urro pavoroso reverberou por todo o quarto e tornou-lhe o ar execrável e podre. Ele chegou a duvidar de que grito assim tão medonho saíra de sua boca, ainda escancarada e trêmula.
Dois homens de branco. O que estão falando? Agitado, ele? Rangeu os dentes. Um mostrou o prontuário que trazia para o outro. Falar com o Doutor? Que doutor? Ele era doutor. Uma vontade ingente de morder a carótida de um deles, ou dilacerar a sua própria com as unhas. Sedativo? Um deles preparou a seringa, rostos frios, profissionais. Debateu-se como um possesso, mas eles eram mais fortes, imobilizaram-no. Precisava sofrer mais, queria sofrer. Ainda tentou morder o braço de um, mas o torpor pesado foi derretendo, inexorável, a realidade. Não era inocente, mas logo seria. Inocente.
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