Inocente de todas as culpas (1ª Parte)


A primeira sensação: uma fisgada forte, fulminante, logo abaixo da axila direita. Era uma dor ardida, que se irradiava pelo peitoral maior até o bíceps, e que não admitia sequer pensamentos. Espremeu os olhos, entortou o corpo em direção à dor, prendeu a respiração, mordeu os lábios e esperou, imóvel. Por momentos deixou de existir, só a dor intensa, brilhante existia.

Levando um tempo que lhe pareceu insuportavelmente longo, aos poucos a cãibra se foi esvaindo e, com ela, o ar quente e já inútil preso nos pulmões. Sentiu um suor frio escorrer pela testa e quis deter o caminho da gota incômoda, mas teve o movimento brusco da mão esquerda tolhido por uma pressão violenta no pulso e um desagradável som metálico.

O sangue fugiu-lhe da face e um calafrio lhe arrepiou os pelos da nuca. Esqueceu os últimos resquícios de dor e tentou trazer o braço direito também para junto do corpo. Outra pressão, quase dor, no pulso, outro ruído metálico. Estava preso, algemado. Como viera parar ali e daquele jeito? O que significava aquilo? Uma resposta tilintou e estilhaçou-se no fundo de seu ser. Rejeitou-a. Numa esperança tresloucada, mobilizou os músculos do tórax, das costas, dos ombros e dos braços na intenção de fazer as mãos tocarem o corpo. Pôs o máximo de força. Em vão. Desespero. Uma gota de suor ardeu-lhe no olho e ele se deu conta de que estava com os olhos abertos, mas nada via. Tudo era breu e calor sufocante à sua volta. Onde estaria, meu Deus, onde estaria?

Lutou novamente contra as algemas, gritou, estrebuchou. Uma dor lancinante na parte posterior da cabeça o fez se aquietar. Ficou imóvel, maravilhado com os pontos luminosos que lhe ofuscavam os olhos fechados. O que estaria acontecendo? Por que estava ali, preso, algemado numa cama hostil, totalmente indefeso? E há quanto tempo? Em resposta, outra cãibra, dessa vez partindo do deltoide esquerdo e ramificando-se pelo trapézio e região do mesmo lado da nuca. Abriu a boca, mas o grito dessa vez não saiu, o corpo todo imóvel no afã de satisfazer as exigências da nova onda de dor.

O raciocínio, a princípio lento, começou a trabalhar, na medida em que a maré de dor foi baixando. Sequestro, só podia ser. E, pela intensidade das cãibras, com certeza já fazia um bom tempo que estava ali, crucificado naquela cama, algumas horas talvez. Um dia, ou mais, não diria. Se ao menos lembrasse como viera parar ali. Pela dor na cabeça, uma pancada talvez. Mas como acontecera? Quando o pegaram? Onde?

Pensando em evitar ou, pelo menos, diminuir a intensidade das contrações musculares, com as pernas forçou o corpo para cima, na intenção de se sentar, as costas apoiadas na cabeceira da cama. Nesse movimento, deu-se conta de outra enormidade: estava em mangas de camisa. Que sequestrador crucificaria sua vítima, depois de humilhá-la, deixando-a em trajes ínfimos? Onde o jaleco e sua calça social de talhe e caimento perfeitos? Mangas de camisa, ninguém mais usava essa expressão, era algo como chamar boy de "contínuo". Estava ficando velho. Com a nova posição, sentiu os dedos formigarem freneticamente. Percebeu que antes não sentia as mãos, e agora as sentia pulsantes e parecendo ter o dobro do tamanho. Começou a abrir e fechar lentamente os dedos para que a circulação voltasse aos poucos e, com ela, a dor das algemas nos pulsos. Melhor dor do que não sentir.

Isso é desumano. O sequestro por si já é hediondo. Para que submeter a vítima à semelhante tortura? Com que diabólico intento? Não fazia sentido. Não era racional. Não conseguia atinar com uma razão, por mais absurda que fosse.

De repente, um clarão, uma certeza inapelável, horrenda: havia sim um motivo. Tudo aquilo só não faria sentido se fosse um sequestro comum, anônimo, aleatório e impessoal. Não, tudo aquilo era direcionado a uma pessoa específica, no caso, ele. Uma vingança. Não era por dinheiro, era para alimentar um ódio, um rancor terrível. Quanto valeria uma desforra? E sua mente, muito pragmática, muito objetiva, tratou de ocupar-se com cifras e cálculos. Era rico, bem-sucedido. Poderia pagar bem. Mas quanto? Quanto custaria a alguém a digestão de um ressentimento desmedido?

O horror da descoberta não pôde ser calado. Gritou, implorou, pôs preço à própria vida, deu garantias, debateu-se, emocionou-se. E seus gritos, súplicas e grunhidos encheram todo o quarto, até que foram suplantados por um barulho maior, medonho, estarrecedor. A porta do quarto começou a ser esmurrada, chutada, escoiceada. Um som maléfico, vindo do lado de fora do quarto, sem sílabas, apenas pancadas bestiais, atrozes, demoníacas, que sacudiam tudo, que estremeciam tudo, imobilizavam tudo, até o tempo. O quanto a porta ainda aguentaria de tal fúria?

Então, o estrondo cessou, tão violenta e abruptamente como começara. E em seu lugar, um silêncio talvez ainda mais terrível e ameaçador. Ele, reduzido a um corpo trêmulo, suado, lacrimoso, não mais que uma respiração entrecortada por grunhidos quase inaudíveis, uns olhos ardentes, músculos retesados, sem consciência de si, só instintos e sentidos.


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