Da aprovação (Final)
A família de Lucinda aguentou aquela situação por seis, sete meses, se muito. O pai chiou logo:
– Antes um comerciário, do que um gigolô!
– Papai, pelo amor de Deus! Não era o senhor mesmo que vivia dizendo que o Otávio devia ter mais ambição, que não devia se acomodar, que devia se focar num bom concurso?
– E aquele animal lá presta para nada! Um burro, um encostado! Sabe que casou com uma besta que ganha bem, trabalhar pra quê? Duvido que aquele estudo seja sério.
– Papai, me desculpe, mas o senhor é um espírito de porco! Nunca vi!
Rompeu com a família. Não ostensivamente, mas gradualmente. Não aguentava ouvir em alto e bom som as acusações e recriminações que ela mesma, no fundo, se infringia. Nada mais terrível que se sentir sozinho ao lado de uma pessoa com quem você é obrigado a conviver sob o mesmo teto. Era esse o pensamento de Lucinda, enquanto disfarçadamente olhava para aquele fiapo de gente com quem se casara. Acabo maluca.
Tinha razão. Certo dia no emprego, quando o chefe solicitou um parecer sobre determinado processo, do nada vomitou sobre sua estação de trabalho e começou a chorar convulsivamente, sem forças para conter os dolorosos soluços. Diagnóstico: transtorno de ansiedade generalizada e transtorno obsessivo compulsivo. O psiquiatra lhe concedeu um mês de atestado médico e lhe receitou alguns antidepressivos e alguns calmantes, todos tarja preta.
Ficar em casa mais tempo com o marido "morto" para o mundo exterior às apostilas, foi-lhe o maior de todos os tormentos. Lucinda passava a maior parte do dia dopada, dormindo.
A todo o drama da esposa, Otávio assistia impassível, como se tudo aquilo estivesse acontecendo com um estranho que vivia a quilômetros de distância. Para ele só havia o seu firme propósito.
Antes mesmo de completar os trinta dias do atestado médico, Lucinda voltou a trabalhar, para espanto de todos. Daí em diante, todos os dias era ela quem abria a sala e fazia correr as persianas das janelas, e quem apagava a luz, desligava o ar condicionado e trancava a porta.
Uma manhã, um colega chegou à sua estação de trabalho e perguntou:
– Teu marido é Otávio de que mesmo?
– Araújo Lima. Por quê?
– Porque ele passou no Ministério do Planejamento.
Lucinda ficou estática por longos e arrastados segundos, olhando fixamente para o colega.
– Que foi, Lu? Não acredita, não? Está aqui, olha. – Posicionou-se no computador da colega, achou a página na internet e mostrou o nome e a classificação de Otávio. – Viu? Passou e passou bem.
Um som próximo de uma tosse seca rompeu da garganta de Lucinda. Passou um tempo e vieram outras tosses, que gradualmente se transformaram num riso estranho e incontrolável.
Chegou em casa eufórica. Até pediu para sair mais cedo. De atropelo, deu a notícia ao marido:
– Que bom! – Otávio foi seco e, sem o menor entusiasmo, quase que falando para si, completou. – Pelo menos agora eu sei que esse meu estudo está dando frutos.
– Como assim "pelo menos"? – Lucinda não entendeu as reticências do marido
– Você não está pensando que eu vou assumir esse emprego, não é? – o queixo de Lucinda bateu no plexo solar. – Ah, não, tenha dó! – parecia ofendido. – Você acha que eu vou me contentar com um empreguinho de ministério para ganhar menos de um terço do que você ganha? – Lucinda não tinha palavras, ou não conseguia articulá-las. – No mínimo quero um emprego que pague o mesmo tanto que o seu. No mínimo! – foi categórico.
E a maratona de estudos e concursos seguiu a diante. Depois desse primeiro sucesso, não tardou para Otávio passar em outro concurso, dessa vez para o de analista do DETRAN. Nem dois meses depois, outra aprovação, e mais outra, e mais outra. Seu nome passou a ser uma constante nas listas de aprovados publicadas no Diário Oficial da União. E sempre, ele se saía com o mesmo argumento:
– É pouco! Melhor continuar estudando! Acha que, depois desse sacrifício todo vou me conformar com um empreguinho que paga a metade do que você ganha?
Um dia, Lucinda, aparentando um cansaço extremo, olhou-o bem nos olhos e falou:
– Olha, Otávio, eu já entreguei para Deus.
De fato, daquele dia em diante, Lucinda pareceu se tornar outra mulher. Resolveu conformar-se com a sufocante solidão que sentia ao lado daquela estátua debruçada sobre livros e apostilas. Ao menos, pelo pouco tempo em que era obrigada a aturar aquela estranha situação. Passou a achar motivos mil para não parar mais em casa: cursos, viagens a trabalho, confraternizações e happy hours com o pessoal do Supremo, cinemas, teatros, dizem até que várias vezes fora vista em companhias masculinas para lá de suspeitas e indignas de uma mulher casada.
Depois de dois anos, já dormiam em quartos separados. Otávio mesmo deu a ideia:
– É melhor. Às vezes, quero ficar acordado até mais tarde estudando e, assim, não te incomodo.
Lucinda deu de ombros, mas no fundo o que sentiu foi alívio. Com isso, as únicas obrigações dela para com aquele marido eram pagar-lhe a comida, as mensalidades dos cursinhos, os livros e apostilas, e as inscrições em concursos públicos.
Até que chegou o grande dia. Na lista dos aprovados para o concurso de gestor do Ministério do Planejamento, em segundo lugar, lá estava o nome de Otávio.
Novamente, foi o pessoal do trabalho de Lucinda quem lhe trouxe a boa nova. Olhando ora para o nome do marido, ora para o cargo, ora para o órgão, Lucinda sentiu um turbilhão de emoções, que juntas, em mistura homogênea, poderiam ser confundidas facilmente com um medo avassalador. O que ele diria agora? Aquele era o sonho dourado de muitos "concurseiros", cargo importante, excelente remuneração, ótimas condições de trabalho. E se ele desdenhasse novamente aquela aprovação? O que faria? Qual seria seu limite, dela, Lucinda? Seria obrigada a tomar uma posição. A família, os amigos, os colegas de trabalho, a sociedade exigiria dela uma atitude, dependendo da reação do marido. Mas que atitude ela tomaria, meu Deus? O que ela queria realmente fazer? O que haveria por baixo do conformismo, atitude que escolhera tomar diante da vida? E naquele turbilhão de pensamentos, ela mal conseguiu esboçar um sorriso. A sua volta os colegas festejavam. Vinham lhe parabenizar, cumprimentar-lhe, abraçar-lhe.
– E então, mulher, não vai ligar para seu marido?
A pergunta indiscreta de uma colega foi-lhe como uma bofetada.
– Mais tarde. Ele deve estar na biblioteca. – respondeu feito um autômato, olhos baixos, sentindo o estômago revirar-se.
O golpe de misericórdia veio, quando seu chefe declarou:
– De forma alguma! Tire o resto do dia de folga, vá passar com seu marido. Uma vitória dessa merece uma comemoração à altura.
"E agora, José? A festa acabou." Veio-lhe os versos de Drummond. Se recusasse a oferta, estranhariam.
Com olhos incontidamente arregalados, sorriu artificialmente.
– Tem certeza? – foi o máximo do que foi capaz.
– Absoluta, menina. Vai logo antes que eu me arrependa. – Brincou o chefe.
Quanto tempo mais para o senhor se arrepender?
– Então, eu vou. – riu nervosa.
No carro, a cabeça vazia de ideias sobre como retardar o encontro com o marido, foi direto para casa. Chegou mais rápido que o habitual. Abriu a porta devagar do apartamento. Ele não está aqui, está na biblioteca. Enganou-se. Logo na sala, o marido, sentado no sofá, com o rosto entre as mãos, os cotovelos apoiados nos joelhos. Estranhou:
– Otávio?
Ele levantou o rosto molhado de lágrimas e soluçando:
– Meu amor, finalmente. Finalmente!
Levantou-se e correu para a esposa estática, tomando-a nos braços. Amaram-se como dois loucos, ali mesmo na sala.
Otávio fez o curso de formação, passou com louvor, e assumiu suas funções. Parecia outro homem, era como se houvesse renascido. Era um Otávio melhorado da época do namoro.
Lucinda é que não sabia o que sentir, ou pensar, apenas deixou-se arrebatar pelo entusiasmo do marido e, uma folha seca, boiou, sem oferecer resistência, naquela insignificante correnteza de meio-fio formada pela água de uma chuva breve, que, em resumo, era sua vida.
Na primeira ocasião festiva que reuniu toda a família de Lucinda, Otávio foi dirigindo o carro importado que acabara de financiar, as mãos suando, a testa gotejando, o coração acelerado.
Voltou com os ombros arriados, calado. Lucinda, um tanto eufórica demais, emendava um assunto no outro.
– Para a sua família, vou ser sempre um vendedor de sapato, sempre ajoelhado calçando alguém. – rompeu o silêncio, interrompendo bruscamente o falatório da esposa.
– Alguém te disse alguma coisa? – Lucinda se encrespou – Ah, Otávio, você me fale. Você me fale, que isso não vai ficar barato, não! Ah, mas não vai mesmo, ora mais!
Otávio se recusou a dedurar uma ofensa sequer. Como iria acusar um olhar, uma expressão furtiva, um sorriso de canto de boca, um revirar de olhos, uma sensação, uma impressão?
– Bobagem minha! – esquivou-se.
O abatimento moral de Otávio intensificou-se no decorrer da semana.
– Não vejo a hora de chegar a sexta. – uma vez queixou-se.
– Por quê? – o coração de Lucinda disparou. – Não está gostando do trabalho? Algum problema?
– Não! Só cansaço. Ansiedade.
Na sexta, quando chegou em casa, Lucinda o aguardava exultante.
– Amor, na segunda você já vai receber seu primeiro salário, hein! Que alegria! – abraçou-o e beijou-o nos lábios. – E eu estive pensando que agora a gente já pode financiar nosso apartamento, que tal? Eu estava aqui na internet pesquisando uns. – notou que o marido esticava e contraía o braço com uma expressão doída. – Que foi, amor?
– Não sei, uma dor cansada nesse braço. Aliás, não só no braço, no peito, nas costas. Parece que levei uma surra ontem à noite. Acho que devo ter dormido de mau jeito.
– Ah. Tome um analgésico que amanhã você acorda novo. Mas agora venha aqui que quero te mostrar os apartamentos que eu selecionei. Tem um que é.
– Agora não, amor. Eu preciso de um banho, me deitar mais cedo. Amanhã a gente vê isso, sim?
– Tudo bem. – Lucinda não tentou esconder a decepção.
Antes de se deitar, Otávio ainda comentou:
– Às vezes, sinto falta do pessoal da sapataria.
– Como?
– Nada, meu bem. Boa noite.
E não acordou mais.
Na tarde do dia seguinte. Durante o velório do marido, Lucinda olhava fixamente para o féretro, olhos secos, ardentes, de quem tem um grito preso, entranhado no peito.
– Estado de choque, coitada.– houve quem comentasse a um ouvido próximo, como introdução da frase deefeito, que julgava ideal para ocasiões fúnebres: – É. Nós somos como uma vela.
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