Da aprovação (1ª Parte)


Pouco antes da cerimônia, enquanto as mulheres a sua volta davam os últimos retoques no vestido de noiva, Lucinda repetiu ainda sua frase de efeito dos últimos tempos:

– Pode até haver mulher mais apaixonada que eu, mas acho difícil.

Dona Guiomar, a mãe, com um muxoxo, resmungou pessimista:

– Quero só ver até quando.

– Pra sempre, mamãe, pra sempre! – orgulhosa da imensidão de seus sentimentos, Lucinda mal deixou a mãe fechar a boca para responder a provocação.

O fato é que desde o anúncio das intenções de noivado, Lucinda e Otávio tiveram que enfrentar a oposição acirrada da família da noiva. Obviamente, ela sofreu bem mais que ele, já que temerosa de magoar os brios do amado, assumira com gosto a postura de mártir, um escudo para o noivo contra os dardos envenenados das línguas dos parentes.

A oposição, a princípio velada, não tardou, ante os ardores dos amantes e suas sérias pretensões, a se tornar ferrenha, taxativa.

– Um vendedor de sapato! – o pai não se conformava.

– Gerente, papai, o Otávio é gerente!

– Gerente o quê! Gerente coisa nenhuma! Outro dia passei por lá e ele estava acocorado, calçando uma meia no pé de um fulano.

– Ô papai, o senhor ainda é daquele tempo! Pelo amor de Deus, tenha dó! Hoje em dia não tem mais a figura do chefe-cacique, não. Todo mundo arregaça as mangas e põe a mão na massa.

– Sei. Um comerciário! Com carteirinha do SESC e tudo! Nem pra estudar pr'um concurso bom.

– Ele ainda não terminou a faculdade, ora! Uma coisa de cada vez, papai. E vamos falar baixo que não demora ele chega aí e já viu. – concluiu o assunto quase sussurrando.

– Faculdade de letras! Hum!

– Psiu! Já deu, papai!

E a pobre se desdobrou assim durante todos os catorze meses de noivado para que o mínimo possível de toda aquela hostilidade fosse pressentida pelo noivo. Nos eventos familiares, nos churrascos, nos aniversários e comemorações, era uma maratona, sempre grudada no noivo, só faltava ir com ele ao banheiro, rebatendo incansável uma piadinha aqui, respondendo uma perguntinha capciosa ali, atenuando uma grosseria acolá.

– Sua família não gosta de mim... – queixava-se Otávio sem jeito.

– Que nada, amor! Mamãe é louca por você. – e, sem argumentos, era evasiva. – Sempre lhe elogia.

– Engraçado. Não parece.

– Mamãe é muito tímida. – e mudava logo de assunto.

Lucinda vinha de uma longa linhagem de servidores públicos e na sua família o valor de um indivíduo se media pelo número de bons concursos nos quais passava, de preferência do legislativo ou do judiciário. O avô materno, militar reformado; o paterno, transferido do Catete para desbravar Brasília; seus pais, ambos servidores públicos: a mãe funcionária antiga da Câmara dos Deputados e o pai, um dos pilares do Tribunal de Contas da União, uma sumidade, auditor temidíssimo. Os dois irmãos mais novos viviam para estudar: universidade e, nas horas vagas, ou as passavam em cursinhos preparatórios para concursos ou em bibliotecas. Ela própria, nem vinte e cinco anos e já era analista do Supremo, saíra direto da Universidade para lá. E para o pai, ainda era pouco: sua filha merecia no mínimo uma promotoria. A revolta do velho era que, depois do "vendedor de sapato", a filha havia se acomodado e já perdera muitas inscrições em ótimos concursos.

– Negócio de casamento! Ficasse pelo menos só namorando. O que não pode é largar tudo: cursinho, rotina de estudos, carreira acadêmica, e tudo para... Hum, deixa eu me calar.

– É melhor mesmo, papai.

Enfim casaram-se.

Foram morar em um apartamento por ela alugado. O pai até oferecera ao casal um dos seus imóveis, um apartamento que, por sinal, era bem próximo ao trabalho da filha – o genro que se danasse e pegasse dois ônibus para ir calçar os outros –, mas esta recusou energicamente e optou por um mais modesto, mais perto do emprego do marido e bem longe dos parentes.

A bem da verdade, às expensas de Lucinda, não ficava somente o aluguel. O salário de Otávio, já computadas as comissões pelas vendas, não dava um quinto do salário da esposa. E o infeliz ainda tinha que bancar a mensalidade salgada da faculdade. O pobre diabo se matava para vender mais, melhorar o salário e contribuir mais dentro de casa. Todavia, cada início de mês, depois que abatia do salário a mensalidade do curso, o dinheirinho da marmita do almoço e um trocado para as despesas urgentes e imprevisíveis, o que sobrava mal dava para pagar as contas de luz e de telefone.

Lucinda, a princípio ficava até feliz em pagar todas as contas. Para aquele que ama, sacrificar-se pelo ser amado é uma dor gostosa como um gozo. Mas, depois, com o passar do tempo, aquilo de entregar o cartão de crédito ao caixa do supermercado, enquanto o marido, eficiente e solícito, colocava as mercadorias nas sacolas, ou receber do noivo a conta que o garçom entregara ao homem da mesa, ou ainda, ter que tirar dinheiro da bolsa e entregar àquele marido cabisbaixo, de olhar inquieto, para que ele entrasse na fila e comprasse as entradas de um cinema, todas aquelas situações corriqueiras começaram pouco a pouco e cada vez com mais veemência a lhe doer como uma humilhação, a lhe irritar, às vezes, profundamente, exigindo-lhe muito autocontrole para não deixar transparecer o que lhe ia por dentro, nem ao marido, nem a ninguém, principalmente de sua família.

Mas, aos poucos, foi com um prazer cruel que Lucinda cruzou os braços e entregou o marido aos leões nos eventos familiares. O infeliz era desancado das piores formas, até motivo recorrente de chacota e piadas de mau gosto o pobre diabo se tornara. Lucinda não só não fazia mais nada para protegê-lo, como também até ria divertida e se permitia dar algumas alfinetadas. E Otávio, um humilde, um tímido, não tinha nem forças, nem coragem para argumentar. Emburrava-se pelos cantos, dando ainda mais corda para as feras, que salivavam e se deliciavam com as pequenas crueldades que infringiam à sua vítima.

Uma noite em que Lucinda chegara do trabalho com uma dor de cabeça e um mau-humor dos diabos, encontrou o marido sentado solene no sofá da sala:

– Já em casa? – espantou-se ela. – Muito me admira. Desde quando comerciário chega em casa a essa hora?

– Pedi demissão.

– Que... que...? – A notícia, assim, dita de chofre, sem preparo, fez Lucinda parar no centro da sala, no meio de um passo, catatônica.

– É isso mesmo, amor. – ele frisou "amor" com uma pitada de sarcasmo, rancor e até um quê de desafio. – Cansei de ser o comerciário. – novamente uma amargura, uma infelicidade difícil de esconder separou as sílabas da última palavra, emprestando-lhe uma conotação ao mesmo tempo de humor negro e acusação. – Resolvi agora que vou me dedicar aos estudos, ou melhor, vou me preparar para concurso.

– Mas e a gerência da loja... – confusa, balbuciou a primeira coisa que lhe veio à cabeça.

– Dane-se. – levantou-se. – Você é analista do Supremo Tribunal Federal, não é? Ganha bem! Pode me sustentar por uns tempos, não pode? Te garanto que em um ano ou dois...

– Por que você está falando assim? Supremo Tribunal Federal. Eu te fiz alguma coisa? – Silêncio. – Olha, Otávio, eu nunca te cobrei...

Otávio deixou escapar uma risada doída, mas, como uma criança pega fazendo arte, logo disfarçou o pejo da própria amargura com um discurso superficialmente humilde:

– Lucinda, você acha que é fácil pra mim? Você pensa que. No próximo semestre, me formo e aí? O que eu vou fazer com meu diploma? O que. Lucinda, para um homem, ter que depender para tudo do dinheiro da mulher. E sua família? Meu Deus, eu não quero nem pensar. Você acha que vai ser fácil pra mim? Eu estou... Eu estou com medo!

Lucinda deixou que um sentimento de piedade profunda pela miséria do marido encobrisse outro sentimento mais doloroso, e enterrou fundo a culpa num lugar do seu íntimo, de onde ela jamais pudesse escapar, no mesmo lugar para onde ela exilava os sentimentos e pensamentos em desacordo com o que se esperava dela.

– Ô, meu amor, eu estou com você nessa, viu? Claro que estou. Eu sei que vai ser difícil. Escuta, amanhã mesmo vou no cursinho preparatório que fiz e. Você vai ver, num instante você passa num bom concurso. Você vai ver.

Otávio calou-se, fechou-se, apenas tentou esboçar um sorriso amarelo.

Daquele dia em diante, ele mergulhou de cabeça nos livros e apostilas para concurso. Por vezes se desesperava, não via progresso, as matérias não faziam sentido e ele apenas lia compulsivamente sem nada entender. Saía de casa, perambulava de biblioteca em biblioteca, colhendo material, lendo, lendo. Seus olhos arregalados e injetados não desgrudavam dos direitos, dos artigos, súmulas e doutrinas, nem na hora das refeições. Para ele não havia mais feriado, final de semana ou dia santo. No mínimo, doze horas de estudos diários eram sagrados. Nos cursinhos que frequentava, sentava sempre na primeira fileira, não fazia amizades e nos intervalos repassava a matéria que o professor dera. Emagreceu. Desleixou-se com a aparência. Alguns colegas do cursinho e da faculdade evitavam até sentar perto dele, incomodados com o cheiro de suor dormido.

– Amor, às vezes a pessoa tem que relaxar, não pode se fechar assim nos livros. Olha, eu tenho experiência, falo de cadeira. Não é só estudo, não, tem o fator emocional, isso conta muito. A pessoa não pode ficar muito bitolada só em apostilas, não, que. Por exemplo, hoje em dia, eles cobram muito se a pessoa está antenada em atualidades, se...

Otávio levantou a cabeça como se tivesse levado um choque elétrico.

– É verdade, eu tinha me esquecido de atualidades.

Pediu a Lucinda que lhe fizesse a assinatura de uns dois bons jornais e passou a lê-los religiosamente, só deixando de lado o caderno cultural e o de esportes. Para compensar o tempo da leitura dos jornais, aumentou as horas de estudo para dezesseis, completamente surdo aos apelos da esposa, a quem aquela obstinação exagerada já começava a assustar.

Nunca ia aos eventos familiares, nem aos da própria família, muito menos aos da família de Lucinda. Esta representava o casal e, quando inquirida a cerca do marido, afetava um orgulho que não tinha certeza de sentir e com que mascarava seus medos:

– Estudando, meu filho! Nunca vi alguém mais obstinado que Otávio! Dá gosto ver...

Mas os meses foram se seguindo uns aos outros e logo um ano se passou naquela rotina estranha: Ele, sempre trancado no quarto de hóspedes transformado em biblioteca, uma sombra, uma estátua que mexia os olhos arregalados sobre páginas e mais páginas de apostilas e livros e, de vez em quando, fazia algumas anotações; ela, tentando aparentar uma normalidade insana, por vezes contando animadamente às paredes do apartamento fatos, opiniões e fofocas, como se falasse ao marido "ausente".

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