Coisas Naturais


Os dois colegas de trabalho voltavam do almoço.

– Você não sabe o que me aconteceu?

– O quê?

– Imagine você, fui com a Gil e as crianças para um restaurante e estavam lá dois casais homoafetivos – desenhou aspas sarcásticas no ar –, em plena luz do dia, se alisando, se roçando. Duas bichas e duas sapas. Já pensou? Restaurante familiar, familiar.

Rápido silêncio.

– Estavam se beijando.

– Não, aí já era demais. Mas estavam em atitude indecente, beijinhos no rosto, cafuné, abracinho, uma nojeira só. E o que eu não me conformo é que era um restaurante familiar.

– Vá se acostumando, meu amigo, daqui por diante vai ser assim. E outra, talvez eles fossem casados, portanto, eram duas famílias?

– Família, Nestor? Aquilo era uma pouca vergonha, isso sim. Não tem quem me faça aceitar que aquilo é de Deus. Não é de Deus, não é!

Passavam por uma agência de banco.

– Preciso passar no banco. Contas para pagar.

– Ah, bem lembrado. Eu também.

Entraram, resolveram o que tinham para resolver, no terminal eletrônico mesmo, e saíram. O outro meio relutante voltou ao assunto:

– Como assim não é de Deus?

– O quê?

– Você falou, não falou? Que duas pessoas do mesmo sexo juntas não é de Deus. O que você quer dizer com isso?

– Que não é de Deus, não é natural. Já pensou se meus filhos fossem pequenos e perguntassem: Papai, aqueles dois homens estão namorando? Já pensou? O que eu ia dizer? Ainda bem que a Malu já tem 14 e o Luquinha, 13, já estão com a mentalidade formada. E que bom que na época deles uma cena daquelas, pelo menos em restaurante familiar, não se via.

– Se fossem pequenos, seu dever de pai era dizer a verdade: Meus filhos são dois casais, os dois rapazes formam um casal e as duas moças, outro. Simples assim.

– Ah, formidável, Nestor. E se eles me perguntassem: mas papai, dois homens podem namorar? Eu ia dizer que sim?

– Exatamente.

– É claro que não. Ficou maluco? Qual o pai em sã consciência diria isso ao seu filho? Vai que o menino, achando tudo natural, decide experimentar?

– Essas coisas ninguém decide simplesmente experimentar e, da noite para o dia, vira gay.

– Claro que é. Você acha que a pessoa nasce assim? Isso é safadeza.

– Você fala: Não é natural. Na natureza, há várias espécies de animais que cruzam com animais do mesmo sexo.

– Mas quer comparar? Animal não raciocina.

– Exatamente. Animal não raciocina, logo não escolhe. Ou, se escolhe, escolhe instintivamente, logo, naturalmente.

– Não, nem vem. Vai me dizer que dá a rabeta é natural? Qual é! Estou te estranhando, Nestor. Deus criou o homem para procriar.

– Só para isso? Nos reduzimos a isso: reprodutores.

– Não, também para ser feliz, para...

– Certo, Beto, certo. Essa nossa conversa está muito clichê, muito bizantina, muito Jean Wyllys versus Malafaia. Não se pode polemizar com base em dogmas religiosos.

– Ah, muito bem. E agora você não vai me deixar desenvolver meu raciocínio. Você fala e eu não.

Suspiro.

– Pois fala.

– Certo, você fala que não posso usar o argumento da Palavra de Deus. Pois bem. Então vamos falar de anatomia: o cu foi feito para eliminar as fezes, só. Qualquer outro uso, é contra a natureza.

– Então usar brincos devia ser considerado uma aberração, porque certamente a orelha não foi usada para isso.

– Não, nem vem. Pode falar o quanto quiser, eu não aceito.

– Quem agora não quer ouvir é você. Só uma dúvida: você ligou a orientação sexual à reprodução. O que impede homossexuais de gerarem e terem filhos?

– Orientação! Pois sim. Opção! Está no código genético, o sistema reprodutor...

– Ninguém escolhe ser gay, Beto. Você acha que existe alguém que.

– Que não escolhe o quê! Isso é como uma droga, vicia a pessoa. Mas o primeiro passo, a pessoa é quem escolhe.

– Não escolhe, Beto, não escolhe.

Ia retrucar, teimar, bater o pé, mas algo na voz do outro, uma entonação, algo que não pôde precisar, atraiu-lhe o olhar, encarou o outro, e o sangue lhe gelou. O que era aquilo nos olhos do amigo? Desolação, súplica, tristeza? Não, era outra coisa. Era. Havia algo mais, como se o amigo hesitasse. Reticências. Havia reticências em vez de um ponto final. Parecia haver algo mais a ser dito, um argumento decisivo, um trunfo escondido, e que o outro não tinha coragem de mostrar.

– É, enfim. – saiu-se com outra reticência, dando graças a Deus que a entrada do prédio já se aproximava. – Que sol! Quente pra burro. Vamos apressar o passo.

Será? O Nestor? É bem verdade que ele era mais velho que ele, um ou dois anos, e, depois do divórcio, casamento relâmpago, no máximo dois anos, nunca mais fora visto com outra mulher. Sempre evasivo, quando inquirido sobre seus relacionamentos, nunca admitia estar comprometido, nem solteiro. Tenho uns rolos. Só.

Da sua estação de trabalho, olhava o amigo de rabo de olho. Nada, nem um indício, nem o mais leve trejeito, absolutamente fora de suspeita. Talvez uma cabeça ágil demais, mãos agitadas, suspiros impacientes, mas tudo isso poderia ser muito bem sinal de ansiedade, tensão, e Nestor era, ele próprio não negava, um nervoso. Dizem até que um tempo tomara remédio controlado, fez ou faz terapia e outros bichos. Teria essa aflição toda origem em algum segredo?

Alguém o chamou, cortando-lhe o raciocínio. Atendeu, procurou no sistema onde andaria processo tal. Naquele setor assim, assim. Não, não estava lá. Só se...

– Nestor, você sabe daquele processo, aquele que.

– Não, não faço a menor ideia. Quem estava trabalhando nele era a Sandra e hoje ela está de atestado.

Por que respondeu sem desviar a vista da tela? Um tom de voz tão ríspido, grave. Teria ficado magoado com alguma coisa que dissera? O que dissera afinal? Só sendo um deles para se doer. Fez ainda uma ligação, descobriu em que pé estava o bendito processo e despachou o visitante.

Não conseguia pensar em mais nada, só naqueles olhos grandes, marejados de coisas não ditas. Ainda bem que não era época de muito trabalho. De vez em quando, olhava o amigo. Este se concentrava em algum trabalho, olhos muito fixos na tela do computador. Procurou na internet alguma coisa interessante, algum vídeo que pudesse compartilhar. Achou o trailer de uma série americana nova. Foi até a mesa do outro.

– Tem uma série nova. Um amigo meu falou que é animal. Coloca aí no youtube. Deixa eu digitar.

O outro suspirou pacientemente, sorriso amarelo, olhar sorrateiro, e afastou bastante a cadeira, evitando qualquer tipo de contato. Notou na hora a reação. Ele que nunca havia evitado nenhum contato físico, muito pelo contrário, era mesmo do tipo que fala tocando o interlocutor. Curvou-se, digitou. O anúncio começou a passar. O outro assistiu tentando aparentar interesse. Olha, parece que vai ser boa mesmo. Interessante. E é com aquele ator, bom ele.

O trailer se arrastou, nunca houve um tão longo.

– Parece que vai ser legal, não vai? Você já viu aquela que eu te passei? Ainda não. Ê, Nestor, está comendo mosca. É boa demais, de subir pelas paredes.

– Vou assistir, prometo. Ando sem tempo. Mas hoje começo.

Voltou para a mesa com a sensação de que um muro havia sido levantado entre os dois. E a sala se lhe tornara agora claustrofóbica. Se pelo menos a Sandra não tivesse de atestado. Aquela outra também não podia ter uma dor na unha. Precisava ver com ela o nome do tal médico que parecia distribuir atestados como quem joga confete num baile de carnaval.

A hora do fim do expediente demorou como nunca. Até saiu alguns minutos antecipadamente. No outro dia compensaria o horário, mas é que tinha ainda que resolver algumas coisas. Queria desesperadamente sair dali. O ambiente estava insalubre. E o pior, um certo remorso das coisas ditas começava a lhe incomodar. E se? Lembrava-se agora que Nestor, sempre que o abraçava nas datas festivas ou nas despedidas de férias, dava-lhe um leve beijo no rosto. Certo é que ele abraçava a todos, mas será que beijava também. O contato dos lábios quentes do amigo, a princípio, casou-lhe estranhamento, não que a sensação fosse ruim, era, inclusive, muito rápida e furtiva, estranhava mais a ação em si. Mas, logo deu de ombros, as coisas andavam modernas, era comum se vê na televisão grandes amigos se beijando mutuamente nos rostos. Houve até aquele ator de cinema que beijara o colega de trabalho na boca ao comemorar um prêmio, parece. Claro, beijo na boca já seria demais, um absurdo. Mas no rosto, um beijo rápido e inocente, o que haveria de mais comum? Nada, se não fosse pelo fato do que ele denominava internamente (nunca admitiria a ninguém tais suspeitas, poderiam desconfiar dele por tabela): pegajosidade do colega, a mão sempre de uma estudada naturalidade pousada no seu ombro, em sua coxa, ou mesmo em seu braço, acariciando-lhe muito de leve e sutilmente os pelos. E agora, ligando os pontos, juntando as peças do quebra-cabeça, a suspeita parecia quase certeza. Engoliu em seco. Não diria nada a Gil, nem pensar. Hoje precisaria ir ao supermercado, mais do que nunca. Não podia ir direto para casa. Na rotatória que o levaria ao supermercado, quase cedeu ao impulso, mas no último momento, virou o volante. Ia para casa, mas não contaria, nem sob tortura, Gil não saberia de nada.

Ao abrir a porta do apartamento, um cheiro delicioso de carne grelhada lhe esbofeteou. Mulher como a dele podia até haver, mas era difícil.

– Já? Saiu mais cedo hoje? Estou improvisando uma jantinha para nós, maminha grelhada, salada de alface, tomate, pepino... Faço também um macarrãozinho, amor?

– Ah, é melhor, né, mãe? Esse negócio de jantinha light não é comigo. Hoje tive uma discussão chata com o Nestor.

– Com o Nestor? Tão calmo, tranquilo? Mas brigaram por quê, meu Deus?

– Não, briga propriamente não foi, só uma discussão mais acalorada, ou nem isso. Mas eu senti que ficou um climinha, sabe?

– Chato isso. Ai, meu Deus, estou sem alho. Se refogar bem a cebola no azeite, o macarrão fica bom também, não fica, amor?

– Fica. E tudo porque fui contar o caso do restaurante lá, o negócio da mesa das bichas e das sapas.

– Ele ficou chocado?

– Que nada! Defendeu os direitos dos "homoafetivos". Que era natural, que estavam no direito deles, essa conversinha toda. Aí, pronto, a polêmica estava formada.

– Hum, sei... – a mulher deu um risinho sarcástico. – Esse seu colega aí, olha, não sei, não. Aí, tem! Aí, tem!

– Será? – Sentiu que ficava pálido, um frio no rosto tomando o lugar do sangue. – Mas nem dá pinta, nem nada. Acho que não. É que ele é cheio dessas ideiazinhas modernosas. Você quer que eu vá comprar alho, mãe?

– Não, sair só para isso? Não precisa, amor. Faço com cebola.

– Com cebola não fica bom, você sabe que não gosto.

– Refogo bem refogadinho. Ninguém nem sente.

– Não, vou ali rapidinho. E ainda está cedo. Aproveito faço umas comprinhas, o iogurte da criançada dá para o resto da semana? Olha aí, compro. – E saiu quase correndo. Já na porta, lembrou-se. Voltou e beijou a esposa. – Volto logo, princesa.

Demorou quase duas horas.

– Credo, amor, onde você foi comprar esse alho? O Luquinha já está para morrer de fome, coitado.

– O trânsito uma hora dessas, Deus me livre. Sem contar as filas. Mas, ainda está cedo. Num instante, você apronta, não é, coração?

Gil estreitou os olhos, fitou como se quisesse lhe devassar a alma, depois franziu os lábios, pegou as compras no chão da cozinha, e aquiesceu com um grunhido.

– Enquanto você faz, vou tomar um banho. – Teve o impulso inicial de ir direto ao banheiro, mas voltou atrás e beijou a mulher no rosto.

Na sala, o filho teclava no notebook e nem levantou a vista quando ele passou. Do quarto no fim do corredor, embora a porta estivesse fechada, escutou a filha ao telefone.

Fechou-se no banheiro. Fechou os olhos e respirou fundo. Despiu-se e deslizou para dentro do boxe. Abriu a torneira, experimentou a temperatura da água com a mão. Entrou em baixo da ducha e deixou a água escorrer por seu rosto, por seu corpo. A imagem viva do mictório público. Tinha a impressão que se olhasse para o ralo veria a água escorrer suja como na cena do banheiro de Hitchcock. O cheiro familiar de desinfetante e urina impregnado na pele. Pegou o sabonete e começou a esfregá-lo com vigor por todo o corpo. O olhar sorrateiro do rapaz. Os pelos do peito faziam muita espuma e ele a espalhava pelo resto do corpo com menos vigor. O membro rijo e úmido do rapaz rodeado por abundantes pelos pubianos. Sentiu a espuma arder na glande intumescida. O calor da boca do rapaz devorando-lhe e deslizando por toda sua extensão. Respiração forte. Gosto de sêmen, suor e desodorante barato. Ajoelhou-se, pernas fracas, trêmulas. Gemidos sufocados no reservado imundo. Mirou no ralo as gotas poucas e ralas e sufocou o gozo mordendo o lábio inferior.

Quando saiu do banheiro, limpo, fresco, ia leve. A mulher já punha a mesa.

Enquanto comia num apetite bestial, comentou de boca cheia e uma expressão devotada:

– Ninguém faz ummacarrãozinho no alho e no óleo como minha mulherzinha.    

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