Círculo de Olhos (Final)

– Laura... – Surpreendida com a urgência com que seu nome fora pronunciado, ela olhou para ele, e ele a encarou com sofreguidão. – Eu fiz o resto do caminho até aqui pensando naquela cena patética, ridícula. E de repente me ocorreu que a vida é exatamente aquilo: todos nós vivemos de quatro no centro de um círculo de olhos. Um círculo de olhos hostis, Laura, um círculo de olhos que desejam, que torcem pelo nosso fracasso, pela nossa desgraça.

Ela não conseguia desviar o olhar marejado. Sentia-se desprotegida, nua, desmascarada. O mal-estar parecia engolfa-la.

– E o que nós fazemos? Continuamos lá, no centro do círculo, de quatro, lutando para não fracassarmos. Uma luta que não é mais que uma torpe, uma abjeta subserviência aos caprichos implacáveis daqueles olhos a nossa volta. – Riso rápido, histérico, quase sem som. – Lutamos a vida inteira pra não fracassar, para não dar o braço a torcer, e a única coisa que fazemos é agir do jeito que eles esperam que nós ajamos. E tem mais: nós também fazemos parte de outros círculos de olhos, como espectadores implacáveis, exigindo dos outros o que nos é exigido, alimentando esse círculo vicioso, sempre. Estamos ao mesmo tempo no centro e na periferia, devorando e sendo devorado. É muito louco... – tinha os olhos fixos na televisão e um tanto arregalados.

– Você cheirou. Voltou a cheirar, não foi, Filinto?

– Que cheirar o quê, Laura? – a vontade que tinha era de esbofeteá-la e só não o fez porque ela poderia gostar. – Você não entendeu nada. Estamos nós dois no centro de um círculo de olhos, de quatro, e estão nos aplaudindo, Laura. Eles estão satisfeitos com a nossa atuação, criatura, com o nosso show, e você aí, preocupada com as cinzas do cigarro.

– Está me chamando de burra? – desencostou-se do sofá, crista levantada, penas eriçadas, pronta para a rinha.

Desconsolado, quase chorando, ele gemeu, enquanto escondia o rosto nas mãos: – Ô, meu Deus, como vou fazê-la entender?

– Eu entendi muito bem, meu filho. Não preciso que você me explique nada, não. Isso aí é mais uma das suas metáforas estrambóticas. Já estou calejada. – Breve pausa, dificuldade em admitir a dúvida inquietante. – Só não entendi uma coisa: por que eles estão satisfeitos com nosso show? Por que eles estão satisfeito com a gente, hein, Filinto? Você está querendo insinuar que nós, de alguma forma, fracassamos, é isso? E o que é fracasso para esse círculo de olhos? O fim do nosso casamento? – Uma lágrima quente, ácida, indesejável, abrasou-lhe a face.

– De certa forma... – concordou, desviando o olhar.

– Ah, eu sabia! E você veio aqui com esse argumento pra tentar me convencer a continuar casada com você?! – O mal-estar fora embora. Levantou-se, revigorada, o cigarro numa mão e o cinzeiro noutra.

– Não, Laura, espera. Tenta entender... – apoiou os cotovelos no joelho e amparou a cabeça entre as mãos.

– Continuar casada para não ser uma fracassada e permanecer quietinha e de quatro no centro desse tal círculo de olhos. – Andava de um lado para o outro, os olhos brilhavam mais intensamente, apesar de secos agora. – Agora estou entendendo aonde você quer chegar. Estava demorando. Sempre os mesmos joguinhos psicológicos. Vem com essa conversa mole de que vai dar o divórcio, que não sei quê, mas, no fundo, está é preparando o bote. Pois eu te digo, Filinto, eu me recuso, ouviu? Me recuso a permanecer no centro desse seu círculo aí.

Ele também levantou-se, quase catapultado do sofá, e, implacável, rangeu os dentes:

– Ninguém! – Arrependeu-se imediatamente da brutalidade no tom de voz, tentou suavizá-la. – Ninguém, Laura, tem o poder de sair do centro do círculo de olhos. Nunca!

– Pois que seja! Muito bem! Fico, continuo no centro desse tal círculo, mas não de quatro, meu filho, ah, não! Fico, fico sim, mas de pé, ouviu? De pé, Filinto, de pé!

Um peso de Atlas curvou os ombros dele. Desabou novamente no sofá. Começou a rir um riso quase choro.

De costas para a sala, ela se apoiou numa cadeira do jogo de jantar. Suspirando, decretou:

– Nosso casamento acabou, Filinto, não tem mais volta, acabou! – Uma esperança louca agitava-se em seu íntimo. Nem tudo estava perdido.

Enquanto a mulher falava, ele balançava a cabeça, olhos fechados, o corpo sacudido pelo riso-choro.

– Como se alguém pudesse ficar de pé no centro do círculo de olhos. Se erguer é uma ilusão! – Sério, triunfante. – É tudo um engodo, Laura, uma farsa. O sucesso é uma mentira, não passa de uma forma vil e egoísta de submissão ao que eles querem e exigem de nós. Você não entende? – Num suspiro triste, toda a expressão de triunfo de sua descoberta escorreu por seu rosto. – A pessoa continua de quatro sempre!

Sem virar-se, mordendo o lábio para não chorar seu grito abafado de agonia e esperança, enquanto esmagava o cigarro no cinzeiro, ela desafiou, a voz grossa, rouca, amarga:

– E você acha que essa sua descoberta incrível vai te libertar do peso dos olhos alheios?

– Não. – Apressou-se em dizer, quase num perdido de perdão. – De forma alguma. Isso não muda nada, só aumenta a agonia. Pelo menos até meus instintos de defesa agirem e me garantirem que tudo isso é uma grande bobagem e me fazerem esquecer, dormir de novo.

Ela escondeu o rosto entre as mãos, a voz trêmula, todo seu ser quase desabando:

– Acabou, Filinto! Acabou. Acabou.

– Sempre de quatro. Todos, de quatro no centro do círculo de olhos. – voltou-se para a mulher. – A única coisa que se pode fazer, Laura, para suportar o centro do círculo e não enlouquecer, é unir-se a outra pessoa e dividir com ela esse fardo. Só duas pessoas de mãos dadas, no centro do círculo, tem alguma chance de suportar o peso ciclópico de tantos olhares.

– E é por isso que você quer voltar? – Gemeu.

– Não... É por isso que não vou voltar.

Ela sentiu uma pontada no ventre. O mal-estar se concretizou.

– Você tem razão. Acabou, Laura. – Falava manso, com cuidado e carinho. – Para nós dois não há solidão maior do que estarmos juntos na mesma cela.

De costas ainda, ela concordou com um aceno de cabeça exagerado.

– Vou aceitar minha natureza. – Forçou-se a ir até o fim. – Vou morar com...

– Chega! – A represa se rompeu num grito de horror. – Não quero mais ouvir. Eu não quero mais ouvir. Não quero mais! Chega!

– Eu só queria que você soubesse antes que...

Uma gargalhada surda avolumou-se no peito dela e explodiu em sua face transtornada. Ele sentiu uma dor no peito, a dor da fatalidade de não poder fazer nada para diminuir o horror do fim.

– Quero só ver... – uma voz esganiçada, rascante. – No dia das eleições, o que teus eleitores vão achar do teu novo relacionamento. – Colocou uma pompa burlesca na pronúncia da última palavra e uma risada demoníaca brotou de sua boca escancarada, uma flor de agulhas, cujas pétalas sangravam e caíam tilintando pelo chão.

– Adeus, Laura. – Uma tristeza e uma culpa infinitas conduziram os passos dele para a porta da rua.

– Eu vou te arrancar as calças. – Ela ainda gritou antes de desabar no centro da sala, miseravelmente de quatro.

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