Círculo de Olhos (1ª Parte)
Pelo olho-mágico da porta, viu a imagem distorcida do marido, uma cabeça enorme, olhos ansiosos, desproporcionais, e um corpinho ridículo, que afunilava, à medida que se aproximava dos pés. Bufou uma labareda de irritação e abriu a porta quase com violência.
– Esqueci de colocar alguma coisa nas malas, Filinto?
Esfregando as mãos uma na outra nervosamente, como se as massageasse com um creme imaginário, o cenho carregado, ele invadiu o apartamento, indiferente à recepção hostil.
– Malas?
Ela fechou os olhos, enquanto fazia o mesmo com a porta, esforçando-se para não perder o controle e a razão:
– Eu pensei que tivesse dito que ia deixar as malas na portaria, que você nem precisava mais subir aqui, e que as chaves você podia deixar com o... – descontrolou-se um pouco e a voz saiu mais áspera. – Sei lá, com o porteiro da noite, que eu não sei o nome.
Ele sentou-se no sofá, cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos postas e o queixo apoiado nos polegares, uma posição muito sua peculiar, olhos fixos na televisão desligada.
– Ah, as malas. – Falou sem emoção. – Não, tudo certo.
– E qual foi a parte que você não entendeu quando eu disse que só queria te ver agora na presença do meu advogado? Hein, Filinto? Hein? – Perdeu um pouco as estribeiras.
– Laura, hoje, quando vinha pra cá, quase atropelei uma moça na faixa de pedestre. Foi por um triz... – maravilhado, ele parecia imune a qualquer ataque da mulher.
Suspirando de tédio e desinteresse, ela desabou no sofá:
– Nossa, que perigo! – Na mesa de centro, pegou um maço de cigarros, puxou um. – Bonita?
– O quê? – Foi sacudido por um ligeiro e quase imperceptível espasmo.
– A moça, bonita? – Segurando o cigarro entre o indicador e o médio, sem acendê-lo, ela gesticulava como a fumante que fora desde a adolescência.
– Ah! Não... Que! – Sorriso forçado. – Gente bonita não usa faixa de pedestre no centro da cidade!
Ela sorriu sarcástica e revirou os olhos, aborrecida.
– Ah, Filinto, você e suas generalizações, suas máximas!
– Pode ser... Mas, escuta! – Agitou-se na ânsia de contar o ocorrido. – Como eu ia dizendo, foi por um isso de nada, muito pouco, sabe?
– E foi no centro? – Ela olhava de um lado para o outro em busca do controle remoto da televisão. – Você disse que tinha sido no caminho pra cá...
– O carro parou, sem mentira nenhuma, a um palmo dela, no máximo. – Riu nervoso. – Com o susto a coitada caiu... – Parou de rir. Sua expressão contraiu-se numa apreensão tardia. – Ou será que o carro chegou a bater nela?
Ela achou o controle da televisão e ligou-a. Rápida, diminuiu o volume até quase não se escutar o que o repórter falava.
– Quer um copo de água com açúcar? – Levantou-se rápida.
– Que água com açúcar, criatura! – Irritou-se. – Não sabe que me dá azia!
– Pronto! Não está mais aqui quem falou! Só queria ajudar! Não, eu sou uma besta mesmo. – Voltou a se sentar, perguntando-se por que abrira a porta para aquele desgraçado.
– Ajudar! Pois sim! E por que não acende logo a porra desse cigarro?
– Porque estou tentando parar de fumar, caramba! – e perdeu novamente a paciência, tornou a se levantar. – Escut'aqui, Filinto, o que você veio fazer mesmo aqui, hein?
Encarou a mulher em pé a sua frente. Por que me casei com ela? E sem desviar os olhos, respondeu lentamente:
– Vim dizer que estou de acordo com o divórcio. Não faço mais objeção. Foda-se a campanha!
Aquilo dito daquela forma tão serena, tão calma, desconsertou-a, desestruturou-lhe as bases. Lentamente tornou a se sentar.
– Foda-se a campanha? Mas é o que você sempre quis na sua vida, criatura, ser governador. Eu pensei que um divórcio agora... Filinto, você realmente acha que tem alguma chance de ganhar essa eleição se divorciando em plena campanha eleitoral? Você tem noção do que está dizendo?
– Não era isso o que você queria? Não disse que não aguentava mais viver de fachada? – O tom de ironia era indisfarçável.
– É isso que quero sim, mas... – Não sabia para onde olhar. O que fazer agora? Onde enfiar a cara? – Tem fogo?
Tirou um isqueiro do bolso da calça e entregou a mulher. Está quente o isqueiro, tem o calor do corpo dele.
– Os tempos são outros, Laura. Essa besteira de divórcio não decide mais eleição, não! Pelo menos não aqui no Brasil.
– Se você acha... – tentou colocar o máximo de incredulidade na voz. Tragou ferozmente.
– Enfim, mas não é para discutir minha campanha que estou aqui. Eu não terminei a história do atropelamento. – A mesma impaciência, companheira de nove anos de casamento, agitou-lhe o coração. – Essa mania que você tem de me interromper.
– Ah, pois fala, criatura! Sempre falando aos pouquinhos, fazendo suspense. Coisa chata. E outra: não sei o que de tão importante tem isso! Nem chegou a bater na mulher, nem sequer amassou o carro.
– Você vai entender... – pensou um pouco e acrescentou, descrente, numa ironia quase imperceptível. – Ou não. Mas, enfim, como eu ia dizendo, foi por muito pouco. – Voltou a olhar na direção da televisão, sem, contudo, enxergá-la. – Um palmo, se muito. Por um momento pensei: Matei a mulher! – Risadinha curta e nervosa. – Sabe, ela vinha com umas sacolas... – riu mais forte. – Foi tomate, cebola, laranja, o diabo pra tudo quanto era lado.
Ela também começou a rir contra a vontade, sem conseguir se conter. Ria com a boca, com o corpo, menos com os olhos. Era mais um espasmo, uma gargalhada amarga.
– A coitada, muito abalada, nervosa, toda se tremendo, saiu de quatro pelo asfalto catando os tomates. – Riu mais forte ainda, um riso doído, áspero.
Os olhos dela lacrimejavam, a gargalhada ficava mais estridente, quase obscena.
– Queria ter visto. Deve ter sido muito engraçado.
– Se foi! Tive que me segurar pra não rir na hora. Ainda mais que eu estava nervoso também e, nervoso, tenho ataque de riso. Você sabe como eu sou. – A risada começava a morrer, e a ausência da graça histérica dava uma sensação incômoda de vazio.
–Sei. – O riso dela também murchara. Em seu lugar, apenas um esgar de sarcasmo. – Sei bem como você é...
– Não, e o pior ainda não contei. – Fazia força para manter uma fisionomia divertida. – Tentando me controlar para não rir, sem saber o que fazer, desci do carro e fui ajudar a mulher a catar os tomates também. – Terminou a frase quase gritando. Nunca uma gargalhada pareceu tão artificial.
Ela riu amarga, os olhos cravados no tapete da sala. Lembrou-se que precisava do cinzeiro.
– Me passa o cinzeiro. Depressa! A cinza está quase caindo.
– Imagina a cena: – pegou o cinzeiro e entregou a mulher. – Eu e a quase atropelada, os dois de quatro, catando tomates... – ainda tentou forçar um riso. – Tinha arroz também... – o olhar voltou ao passado, os lábios se apertaram. – Lembrei agora... O saco rasgou e eu fiquei juntando o arroz espalhado no asfalto, tentando colocá-lo, a mancheias, de volta no saco.
– Deve ter sido hilário. – Falou séria, desviando o olhar para a poeira da estante. A Das Dores me paga. O que ele vai pensar? Que a casa está entregue às traças.
– E o trânsito parado. – Não ria mais, nem ao menos tentava. – Começou a juntar gente em volta. Um círculo se formou. E eu e a mulher, os dois, de quatro, no centro daquele círculo... Um círculo de olhos ávidos por tragédia, por sangue, um bando de vampiros.
A ela, o sofá pareceu-lhe desconfortável. Procurou uma melhor posição. Um certo mal-estar, um incômodo, uma impaciência, uma agonia oprimiram-lhe o peito, e ela, sentindo a terrível necessidade de dizer algo, repetiu o desgastado comentário:
– Realmente, deve ter sido muito engraçado.
– Só então me dei conta do ridículo da situação, levantei. – A expressão dele era de cansaço, quase de dor. – Ajudei a moça a se levantar também. Perguntei: "A senhora está bem? Se machucou?" A pobre, atordoada, quase chorando, disse que não, que estava bem.
– Coitada. – Uma inquietação crescente. Tragou forte.
– Aos poucos os olhos foram se afastando, irritados, visivelmente decepcionados. – Um último riso forçado. – Engraçado, né?
– Muito... – suspirou e, a voz saiu falha, meio que entrecortada, doída. – Muito engraçado. Cada coisa...
Ele também suspirou dolorosamente.
(Continua...)
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