Boneca de milho (1ª Parte)
Maria dos Milagres demorou muito a vir ao mundo. Foram quase dez meses de gestação, pelo menos segundo os cálculos de Dona Isabel, sua mãe, conhecida por sua habilidade com números e datas, uma memória de elefante.
De fato, no dia seguinte ao que, por suas contas, fizera nove meses de prenhe, ela sentiu logo cedo uma fisgada no ventre, para ela prova cabal de que estava certa quanto às datas e que sua hora se aproximava. Todavia as contrações eram tão espaçadas e irregulares que Dona Tomázia, emérita e experiente parteira, afirmou com convicção: Sua hora demora ainda pelo menos uns cinco dias, ou mais.
E, assim, o tempo foi passando, passaram-se semanas e nada, as contrações até desapareceram.
– Mas, será possível, comadre! Estarei esperando um filho gente ou jumento? Sim, porque daqui a mais um pouco completo os onze meses. – Dona Isabel já não aguentava mais aquele ventre descomunal que só crescia. Dona Tomázia olhava, apalpava, encostava o ouvido, esticava o beiço inferior intrigada e balbuciava um duvidoso "talvez amanhã".
Faltando cinco dias para inteirar os dez meses, Dona Isabel sentiu uma pontada tão forte que, em jejum ainda, não suportou, a vista escureceu e ela arriou-se pesadamente no chão da cozinha, inconsciente. Entrava em trabalho de parto. Por dois dias e uma noite, lutaram, ela e Dona Tomázia, para trazer ao mundo a danada que receberia o nome da Santa, a quem as coitadas se pegaram naquele transe difícil.
Milagre entrou no mundo calada. Foi preciso seis palmadas fortes em suas pequenas nádegas para ela soltar um quase inaudível choramingo. Nascera muito franzina, arroxeada, enrugada demais, parecendo uma velhinha. O pai nem se deu pela feiura da segunda filha, ficou muito foi satisfeito, agora tinha um casal. Já Dona Isabel mal conseguiu esconder o desapontamento ao ver sua caçula pela primeira vez. Até comentou com Dona Tomázia:
– Ô, Comadre, não é me gabando, não, mas sorte teve o Tó que puxou à minha família. A coitadinha da Milagre teve a sina de ser a cara da mãe do Pedro, feinha de arder na vista.
– É porque a bichinha é muito novinha, comadre. Aos poucos vai se endireitando.
– Deus queira! Porque se essa bichinha não se endireitar, nem que seja um tiquinho, quando crescer, vai arranjar marido é nunca.
Milagre, todavia, não se "endireitou" como previra a parteira, nem como desejara a mãe. Foi uma menina feia e gorda, de canelas finas e ancas largas, continuou a sê-lo na adolescência, com um diferencial: seu rosto quadrado e chabouqueiro cobriu-se de espinhas. A única parte do corpo de que se podia envaidecer eram os cabelos, negros, longos, sedosos e que lhe desciam até quase a cintura, isso se Milagre tivesse qualquer tipo de vaidade. Arrumava-se direitinho e às vezes até arriscava uma pintura na cara, mais por insistência da mãe, preocupada com o provável e triste destino da filha: ser uma "moça velha, barata de sacristia".
Só na casa dos vinte foi que, tomando ares de mulher, aprumou-se-lhe mais as formas, emagreceu um tanto, a cintura atenuou-se, permanecendo fartos os seios e as ancas, e perdeu mais o jeito desengonçado de andar. Nem por isso se fez graciosa, sequer o parecia desejar.
Em todo São Pedro da Amarração, tinham-na por esquisita, meio atoleimada. Quase não falava ou ria, e, se o fazia, logo lhe era tolhido o riso ou a palavra por um rubor inumano. Gostava da solidão, de longos passeios pelo milharal da família; de embrenhar-se na mata, catando ervas para chás, banhos e lambedores; de ir à igreja quando vazia; de bordar na quietude da varanda. Era respeitada, seu pai, Pedro dos Carneiros, era um homem de posses, os rumores quanto a sua pessoa, poucos e indiferentes; e nem ela dava margem a mexericos, sempre discreta, caseira e religiosa. Parecia fazer questão de passar incógnita pelo mundo.
O pedido de casamento por parte do viúvo Chico Rosa foi uma surpresa até mesmo para a família da pretendida.
– O Chico Rosa terá comido manga com febre? Casar com aquela troncha. Parece que bebe. – Era o comentário geral.
– Moça direita, de família, séria. Cozinha que é uma beleza, já até provei do tempero. Bordadeira fina, com encomenda até da capital. Sou compadre do pai dela, é padrinho do meu mais velho, conheço aquela gente, tudo trabalhador, honesto. Meus meninos se dão com ela, é calada daquele jeito, mas conta cada estória para eles que ficam tudo besta escutando. Vai dar boa dona de casa. – explicava seu Chico Rosa a resolução e o pedido inesperados.
Namoro não houve, o noivado, curto, nem três meses. O noivo tinha pressa, não aguentava mais as visitas noturnas à noiva, ele, ela e o pai, ou a mãe, ou o irmão, os três na sala num mutismo cheio de "pois é", "chovendo e o calorzão por cima", "parece que o inverno esse ano vai ser até bom", "Eita, mormaço!", "será que hoje dá uma chuvinha?", "e o milho esse ano?", "e os carneiros?", suspiros e tédio.
– Pra que esperar, compadre? Já não sou mais moço, meus meninos estão precisados de mãe e eu, o compadre é homem, sabe, a gente precisa... duma mulherzinha, com todo respeito. Por mim espero só até o frei Barbosa passar por aqui, tenho pra mim que no final do mês. Porque se não aproveitar dessa, compadre só para o mês. Tempo demais, o senhor não acha, não?
Milagre tudo aceitava com breves meneares de cabeça, o rosto em fogo e a vista grudada no assoalho. Deixava que o pai e o noivo deliberassem seu destino numa submissão bovina.
A cerimônia foi simples, porém farta no comer e no beber. Casamento só no religioso, no civil, um dia, quem sabe, quando fossem na cidade. Os convidados regalavam-se ainda e arrastavam o pé no terreiro ao xote chorado da sanfona de seu Vitorino e do zabumba do Ciça da Dedé, e o noivo já num pé e noutro para se retirar. Estava sem praticar a "regra do bom viver" já há um bom tempo; fazia para mais de mês que não pisava na cidade, quanto mais no cabaré da Anita. Só tinha uma preocupação: sua afoiteza na hora do bem-bom, afinal a moça era direita, cabaço na certa, tinha que se controlar e não era pouco.
O diabo era que bastava pensar nisso para o sangue lhe ferver que nem gordura na chapa quente. E esse pensamento não lhe saía do juízo. Pensava nisso enquanto asseava as partes antes de ir se deitar, quando ouviu do quarto um fungado insistente. Apurou as oiças e teve certeza: a mulher chorava no quarto. Vestiu o pijama às pressas e foi decretado na direção do choramingo
Milagre, encolhida na cama, tremia dos pés à cabeça e abafava o choro enterrando a cara no travesseiro.
– Mas o que é isso, minha filha?
Assustando-se, Milagre levantou a cabeça de chofre em direção à voz intrusa e Chico Rosa pôde, pelo breve instante em que se entreolharam, perceber-lhe nos olhos todo o pavor que deveras a esposa sentia. Cauteloso, o marido aproximou-se, sentou na beirada da cama e arriscou:
– Tenha medo, não, Milagre. Tenha medo não qu'eu vou ser cuidadoso. – E como os soluços só aumentavam, puxou-a para si, abraçando-a com a maior delicadeza de que seus braços acostumados com a lida dura de sol a sol eram capazes. Afagou-lhe os cabelos, depois a nuca, deslizou a mão por suas costas, camisola de seda, pano macio, e a mão descendo, descendo...
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