O primeiro encontro
Augusto e Fernanda eram o que se conhece por "carne e unha". Se conheceram no primeiro dia do jardim de infância, no parquinho de areia. Augusto fazia uma pista de corrida para seus carrinhos quando ouviu uma voz fina gritando.
-- Parem, parem com isso! -- implorava a garotinha -- Tia Dani, tia Dani! -- chamava a professora sem sucesso.
Olhou para onde vinha a gritaria, que ninguém mais pareceu notar, e viu a menina da sua sala, aquela que usava uma cadeira de rodas. Três garotos a estavam empurrando para lá e para cá, de maneira brusca e sem cuidado, divertindo-se com o crescente desespero dela. Guto foi completamente incapaz de ver aquilo e ficar parado. Levantou-se, pegou uma pedra que viu no caminho e seguiu até eles.
-- Parem com isso agora! -- ordenou, com toda a firmeza que um garotinho de seis anos possuía.
-- Saia daqui, negrinho. -- um dos meninos disse.
Um frio dominou Augusto. Causado não por aquela palavra, ele era negro e gostava de sua cor, mas o que o incomodou foi o tom da voz, o desprezo. Seu pai o havia avisado que isso era chamado... como era mesmo? Racisto, algo assim. Disse também que iria acontecer em algum momento, e o que ele deveria fazer quando acontecesse. Faça com que te escutem.
-- Sim, sou negro! -- retrucou, sem a firmeza de antes -- Qual o problema nisso?
Os três pararam de perturbar a menina, que estava silenciosa encarando Augusto, e apenas o encararam por alguns instantes, piscando confusos.
-- Só saia daqui. -- disse outro dos garotos, o maior deles, e então como se Augusto nem estivesse mais ali, viraram-se e e voltaram a atormentar a garota.
Façam com que te escutem, a voz de seu pai repetia incessantemente em seus pensamentos. E ele fez. Guto bateu com a pedra na cabeça do garoto mais alto, que caiu ao chão, sangrando e chorando como um bebê. Os outros dois arregalaram os olhos, assustados, e logo a correria começou. Finalmente tia Dani, a professora, apareceu de onde quer que estivesse para acudir quem gritava. Guto olhou para o menino caído e viu sangue lhe escorrendo pela face. Eu o matei, pensou apavorado e começou a chorar também. O garoto foi socorrido, pais foram chamados, e logo Guto viu-se na sala da diretora. Ouviu broncas e questionamentos mas recusou-se a falar, se explicar. Apenas abriu a boca quando seus pais chegaram. Correu para os braços abertos e quentinhos de sua mãe e ali, chorou mais ainda, chorou até sentir-se melhor. Quando acalmou-se e seus soluços cessaram, disse exatamente tudo o que aconteceu. Ao final de seu relato, a diretora parecia constrangida e seus pais, furiosos com os garotos, acusando-os de bule e racisto. Depois disso, os adultos conversaram sozinhos, e Augusto e a menina foram deixados na salinha de pintura com uma monitora. Ela estava em uma das mesas desenhando com giz de cera, tímido, Guto apenas sentou-se próximo à porta, esperando seus pais.
-- Ei, garoto! -- escutou a voz fina dela chamá-lo, olhou em sua direção e a viu acenar para ele -- Venha cá!
Olhou para a monitora, que apenas sorriu para ele, então Levantou-se e foi até onde a menina estava. Percebeu que ela desenhava pássaros. Diversos pássaros de diversas cores.
-- Obrigada por me ajudar. Aquele merdinha mereceu aquilo! Viu o tanto que chorou? -- riu-se -- Parecia meu irmão mais novo quando tiro a chupeta dele!
Guto ficou absolutamente chocado com o vocabulário dela.
-- Você não deveria falar essas coisas. -- sussurrou, temendo que a monitora os ouvisse.
-- Que coisas? Merdinha? Ou que aquele menino mereceu? -- perguntou sorrindo para ele.
-- Merdinha! É uma palavra feia.
-- Mas você disse! -- ela acusou.
-- Eu disse porque você disse! -- defendeu-se.
-- Eu só disse porque mamãe sempre diz. -- deu de ombros -- Mas não digo mais na frente dela, ameaçou lavar minha boca com sabão!
Eles sorriram um para o outro, ambos sentindo que algo importante estava acontecendo ali, mesmo que não soubessem o quê. Logo, os sorrisos foram substituídos por gargalhadas que estremeciam seus corpos e os deixaram mais leves.
-- Sou Fernanda. -- disse estendendo a mão direita num cumprimento.
-- Augusto. -- apertou a mão dela e a sacudiu , como via os adultos fazerem.
-- Sente aí, vamos desenhar. -- lhe estendeu uma sulfite limpa.
Guto se sentou e começou a desenhar. Primeiro fez um cachorro, e disse para Fernanda que o animal comeria seus pássaros. Ela apenas riu e disse que seus pássaros eram mutantes que soltavam fogo pelos olhos, e que era melhor que o cachorro dele ficasse longe se quisesse sobreviver. Ele a achou estranha por um instante, depois decidiu que era apenas criativa e divertida. Começou um novo desenho, até que sentiu uma mão em seu ombro.
-- O que está desenhando, campeão? -- seu pai perguntou.
-- Um canguru, que solta bolas de fogo pelas orelhas. -- anunciou, orgulhoso.
O pai apenas riu e acariciou os cabelos cacheados do filho, depois olhou para a menina em sua cadeira de rodas. Era bem magrinha e pequena, mesmo para sua pouca idade, e seu peito inchou em orgulho pelo filho tê-la defendido. Havia conversado com os pais dela que estavam tão chocados e furiosos quanto ele e sua esposa, e também gratos pelo filho dele tê-la defendido tão bravamente. Eram boas pessoas e, em conjunto, os quatro decidiram trocar as crianças de escola.
-- Como vai, Fernanda? -- o homem a cumprimentou.
-- Muito bem, e o senhor? -- respondeu, educada.
-- Estou bem, obrigado. Vamos, filho?
Guto se despediu da menina com um aceno e foi-se com seus pais, temendo o castigo que viria. Afinal, sabia que o que havia feito era errado. Ao chegar em casa o pai o levou direto para a mesa da cozinha, o lugar das conversas sérias.
-- Você entende o que aconteceu hoje? -- perguntou.
-- Eu agredi um garoto. -- disse baixinho, seus lábios já tremendo pelo choro que estava a caminho.
-- Não, não precisa chorar, meu amor. -- sua mãe o consolou -- Isso não é uma briga, só queremos nos certificar que compreenda o que aconteceu. Agora nos diga por que bateu nele.
-- Porque eles estavam maltratando a Fernanda. -- fungou e passou a mão no nariz -- E porque zombaram de minha cor.
-- E você se lembra o que eu lhe disse, como isso se chama? -- perguntou sua mãe.
-- Racisto.
Seus pais sorriram um pouco.
-- É racismo, filho. -- explicou seu pai -- Há pessoas que se sentem melhores do que nós por terem a pele clara. Então nos humilham e tentam tirar nossas conquistas. Um dia vou te explicar melhor sobre isso, de onde isso vem. Mas agora, preciso que me prometa que não vai mais atirar pedras nos racistas, mesmo que eles mereçam. -- piscou para o filho.
O menino se sentiu aliviado. Estava perdoado.
-- Eu prometo, papai! -- e foi sincero, pois nunca mais queria ser o responsável por tirar sangue de alguém.
-- Na próxima vez, quero que use palavras. -- orientou seu pai -- Faça com que escutem.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top