50 [𝐅𝐢𝐧𝐚𝐥]. Quando 𝕹𝖆̃𝖔 Estamos Sós
E tcharam! Depois de mais de meia hora travando uma batalha mortal contra meu arqui-inimigo: meu cabelo no seu dia mais rebelde, consegui, enfim, manter as mechas simétricas ao jogá-lo para trás. Não era muito do meu feitio tentar um penteado novo, mas, como era uma data especial, me permiti esse luxo desta vez.
Não fiquei tão surpreso quanto Luan esperava quando ele surgiu na batente da porta do meu quarto. Não sei ao certo, mas acho que a convivência frequente com alguém faz com que não apenas adquiramos suas manias, mas também reconheçamos seus gestos e até o som de seu caminhar.
— O que faz aqui? O piquenique é só mais tarde, e achei ter dito que teria uma apresentação no sarau por volta deste horário — murmurei.
Pelo espelho, vi o reflexo daquele garoto de ar despojado. O canto do seu lábio formava uma covinha à medida que ele se inclinava na entrada do aposento. O que realmente me surpreendeu foi seu traje de esporte fino: um elegante conjunto branco, em um misto de casual com informal.
— É, tô ligado — o boboca sorriu enquanto me olhava pelo espelho. Francamente, se não o conhecesse, diria que estava prestes a babar por mim. Na verdade, justamente por conhecê-lo, tinha quase certeza de que ele estava mentalmente fazendo isso mesmo.
— Então veio mais cedo só para ganhar umas bitoquinhas, foi? — Virei meu corpo para ele. Mesmo atrasado, não conseguia resistir ao seu charme persuasivo.
— Hum, será? — Fez-se de difícil, inclinando o queixo para cima como se fosse um enigma a ser decifrado.
E eu estava totalmente disposto a me jogar de corpo e alma nesse quebra-cabeça que era meu namorado. Sem tempo para joguinhos de indiferença, e sem o menor autocontrole para escapar da magnetização que seu corpo exercia sobre mim, lá estava eu; sentindo o impacto da colisão de nossos corpos enquanto o mais velho colocava as mãos na minha cintura.
O selar de nossos lábios rompeu a distância que ainda mantínhamos fisicamente. Sua língua invadiu suavemente o espaço onde a minha repousava, gerando um choque entre ambas, desafiando-se em um duelo intenso dentro de nossas bocas enquanto continuávamos a nos beijar.
— Irei com você — Luan falou quando enfim separei minha boca da dele.
— Para o sarau? Você está bem, Luan? Está com febre? — Coloquei a mão em sua testa como se fosse medir sua temperatura. — Você odeia poesias. Se esqueceu da chacota que você me fez passar da última vez?
— Pode ser. Mas, parafraseando uma filósofa contemporânea: "Sou uma nova mulher."
Aiai. Isso não me cheirava bem. Ok, desta vez ele estava vestido à caráter, andava bem comportado nos últimos tempos e seu beijo desse instante demonstrava que não estava para brigas naquele dia. Contudo, não podia esquecer do dia em que Luan se levantou no meio do recital da minha poesia, me deixando com cara de tacho.
— Espero não ver gracinhas da sua parte hoje — o adverti, cruzando as sobrancelhas e os braços.
— Por que ninguém bota fé em mim? — Lá vinha o chorume do namorado mais vitimista, e fofo, que existia.
— Por que será? Será que é porque você é um insuportável?
— Tu me ama — Luan riu, convencido.
— Amo porra nenhuma! — Agora era minha vez de me fazer de difícil.
Antes que eu pudesse voltar a me arrumar, ele saltou a cama como um medalhista olímpico saltando por barreiras e se agarrou a mim novamente, beijando minha testa de forma amorosa dessa vez.
— Oh, se ama.
O próprio terminou de abotoar minha camisa social branca para mim, deixando somente o botão de tom perolado do colarinho superior desabotoado. Por fim, ele deu uma ajeitada na minha gola italiana com ternura.
— Leva a cesta, então. Meus pais vão se encontrar com a gente no parque.
— Como desejar, meu Príncipe Pérsia — ele fez uma saudação exagerada com a mão no abdômen ao se inclinar, como se eu realmente pertencesse a realeza, antes de pegar o cesto que estava em minha cama pela alça. Não dava para não rir desse palhaço.
Havíamos combinado de fazer um piquenique naquela tarde. Tinha um motivo especial para isso: seria uma despedida para nossos amigos. A maioria deles iria se mudar para outras cidades para começarem as suas respectivas faculdades; cada um em um canto diferente. Thalia também iria em breve seguir com sua banda de heavy metal Brasil afora. No fim, a distância em breve se tornaria uma realidade para todos nós.
Seria a última vez que nos reuniríamos por um bom tempo, por isso decidimos fazer essa última festança entre nós e nossos familiares no parque; tanto para nos despedirmos quanto para celebrarmos o futuro promissor que nos aguardava.
Quanto a mim, ainda faltavam algumas semanas antes de eu me mudar para a capital. Luan e eu já estávamos lidando melhor com a perspectiva de uma distância de 400 km em breve nos afastarem. Pegamos um calendário e montamos todo um cronograma para planejarmos nos vermos: Luan daria um jeito de me visitar pelo menos três vezes ao ano, principalmente no meu aniversário. Já eu me assegurei de voltar para a cidade durante as férias de verão e inverno, e, se possível, também nos feriados prolongados.
Ninguém estava dizendo que seria fácil; longe disso. Mas enquanto meu coração batucava de ansiedade ao seu rítmico "tum tum" com a expectativa de iniciar a faculdade, Luan de igual maneira já estava a todo vapor para reinaugurar a oficina mecânica em parceria com James. Ambos estávamos lá, dando apoio mutualmente um para o outro, felizes com as conquistas que começavam a semear em nossas vidas. Quando finalmente conseguíssemos nos ver, isso aumentaria mais ainda o valor que daríamos a esses momentos, pois todos sabem que o que é raro é sempre mais valioso.
Enquanto caminhávamos em direção ao sarau de poesias no centro da cidade, Luan discretamente levou uma "pastilha" à boca. Fingi não ter visto, mas sabia bem o que era aquele produto que estava consumindo. A pastilha em questão liberava nicotina de forma moderada em sua boca a fim de reduzir os seus sintomas de abstinência do cigarro. Ele realmente cumpriu sua promessa de parar de fumar, e, embora soubesse que era uma árdua batalha diária lutando contra os seus instintos de ceder ao vício, estava orgulhoso de seu progresso.
Passamos em frente à nossa antiga escola durante o caminho. Aquele prédio, que um dia foi considerada uma construção admirável, estava agora bastante desgastado devido a um incêndio que o atingiu há três meses. Parte das paredes cinzas estavam chamuscadas, e uma fonte que não pingava uma gota sequer se fazia presente no pátio do colégio.
Os meliantes responsáveis pelo incêndio nunca foram descobertos. Um absurdo, não acham? Em contrapartida, não houve uma vitima sequer no incidente. Tenho certeza de que levaria um bom tempo para que a Escola Aurora Dourada se reerguer completamente, mas aposto que o diretor Aroldo conseguiria. Sem eu lá para ser seu mártir, ele agora teria algo para ocupar sua mente.
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Eu amava aquela cúpula de vidro chamativa, localizada em um local discreto. Embora pudesse chamar a atenção de quem passasse por perto, dificilmente teriam dimensão dos emaranhadas de histórias resplandecentes que se ocultavam logo abaixo das escadarias. Tampouco ninguém sabia o quanto aquele lugar significava para mim e para Luan; afinal, foi bem ali em frente que nos beijamos pela primeira vez.
Esse era um sábado excepcional. Em vez das apresentações do centro de poesias ocorrerem à noite, desta vez tinham sido programadas para o período matutino. O resultado disso era um local menos iluminado por luzes artificiais e menos lotado. Ainda assim, a quantidade de pessoas presentes era impressionante.
Era, a grosso modo, minha despedida do sarau também. Só Deus sabia quando eu voltaria a pisar lá de novo depois que iniciasse a faculdade. Por isso, das mais variadas poesias inéditas que preparei em meu caderninho, escolhi a que mais gostei e na qual mais me esforcei para ser recitada nesse data.
— Oh, Kevin. Bom dia — o senhor Sérgio sempre se mostrava apressado, apenas me cumprimentando enquanto apressava seus passos em direção ao palco, parecendo o coelho de Alice no País das Maravilhas; olhando seu relógio em sua lapela e saltitando apressado.
Contudo, pude reparar quando ele assentiu sutilmente para Luan antes de se afastar, o que me deixou com uma pulga atrás da orelha.
Dessa vez, conforme combinado previamente, eu seria o responsável por encerrar o recital. Sabendo disso, me sentei em uma mesa central ao lado de meu namorado.
Se Luan fosse aprontar ou mostrar qualquer sinal de desinteresse, pelo menos faria isso antes de minha apresentação. No entanto, fui surpreendido ao ver que o menino de olhos verdes, sentado bem do meu ladinho, demonstrava total atenção às poesias de meus colegas.
As poesias recitadas, como de praxe, variavam bastante: algumas eram dramáticas, outras apreciativas, tinham as filosóficas, as melancólicas e, claro, havia sempre os românticos entusiastas que não escondiam seus sentimentos de paixão através dos versos. Era notável como as poesias que escolhíamos recitar refletiam tanto de nós mesmos; mesmo que não nos conhecêssemos profundamente conseguíamos nos compreender apenas escutando suas apresentações. Eu mesmo era prova viva da montanha-russa das mudanças no meu estilo de escrita de poemas ao longo do tempo, conforme minhas emoções oscilavam.
Outro fato curioso era a grande diversidade de pessoas e idades entre os participantes. A maioria eram jovens da nossa idade, em sua grande parcela compostos de garotas, mas havia também pessoas bem mais velhas, como o próprio senhor Sérgio, e até mesmo crianças. Punks, emos, roqueiros, pessoas mal-encaradas, rapazes acanhados, senhoras idosas que subiam ao palco com dificuldade... Não havia restrição para ninguém, e isso era uma das coisas que eu mais amava ali. Todos eram aceitos do jeitinho que eram!
Após diversas apresentações, chegou finalmente a hora de o senhor Sérgio retornar ao microfone e me chamar ao palco. A sensação de frio na barriga já não me dominava há algum tempo, pois estava acostumado a ir a esse sarau há mais de três anos, uma vez por mês. Contudo, era diferente com Luan ali, especialmente considerando a poesia que eu havia escolhido para recitar...
— Bom dia a todos — falei acanhado ao microfone, dando uma pigarreada antes de continuar. — Hoje irei recitar minha poesia "Desvios do Amor."
Olhei para a mesa ao centro. Lá estava Luan, sentado junto com várias pessoas desconhecidas. Seu olhar estava vidrado em mim, ansioso para que eu prosseguisse. Ele não era mais o mesmo garoto que fugiu daquele local há dois anos, apenas porque se sentia fora de órbita. Agora, ele queria me ouvir, assim como todos os demais, e eu queria abrir meu coração em forma de versos. Era um acordo não verbal e totalmente recíproco.
"Em cada passo que dou, há um eco distante,
Desenho na areia um adeus, tão constante,
Que se arrasta, quase invisível, pela maré,
Onde a saudade floresce, mesmo que eu não me veja.
Te amo com um ardor que não precisa de correntes,
Nem de grilhões ou prisões; é amor que se estende,
Livre, como o vento que toca os picos distantes,
Sem precisar de uma rota ou de um caminho vibrante.
O coração, embora firme, não está enclausurado,
Mesmo enquanto sua ausência me deixa desamparado.
Ainda assim, te levo em cada gesto, em cada sonho,
Como um fio invisível que liga meu mundo ao teu trono.
Não sou refém de tua presença, nem de teus olhos claros,
Mas o amor que sinto é um mar sem barcos, sem faróis claros.
Sou fisgado, entrelaçado, em uma teia de sentimentos profundos,
Por ti, que és a aurora em meus dias vagabundos.
Então, me afasto e vou, mesmo que o caminho seja ardente,
E embora a distância seja fria e o desamparo evidente,
Teu amor, em sua pureza, é o sol que nunca se apaga,
Mesmo que a despedida seja a minha única carga."
Fui guiado pela forte luz solar que vinha do lado externo da cúpula ao terminar de recitar minha poesia e erguer a cabeça. Uma salva de palmas preencheu o ambiente, vinda dos presentes. Não eram tão calorosas nem exaustivas; era um costume sermos concisos em nossos manifestos de aprovação do coleguinha que se apresentava.
Com um tanto de receio, olhei para a única mesa que me interessava. Lá estava Luan de pé, aplaudindo-me com entusiasmo, enquanto mantinha seu sorriso se ajustando de maneira dinâmica em sua face.
Como falei anteriormente, eu já me sentia à vontade para apresentar minhas poesias na frente daquelas pessoas. Todavia, me sentia um tanto constrangido por ter Luan escutando atentamente meus mais profundos sentimentos sobre ele próprio.
— Não entendi metade do que você falou, mas foi incrível — Luan disse, alvoroçado, quando retornei à mesa. — Mas não deveria ter rimas?
Ri descontraído de seu comentário. Não conseguiria imaginar uma reação diferente desse bobo.
— Poesias não precisam necessariamente rimar — expliquei, igualmente alegre. — Obrigado por ter ficado até o final dessa vez, Luan.
Ambos sorrimos em igualdade.
— Vamos indo?
— Pessoal, esperem. Temos mais uma apresentação — O senhor Sérgio retornou ao palco, fazendo com que aqueles que haviam começado a se erguer para irem embora tornassem a se assentar.
— Tem mais um? Achei que eu fosse o último — comentei com Luan, ainda em pé.
— É a primeira vez dele, então espero que todos o recebam com uma calorosa salva de palmas. Pode vir, Luan Pimentel.
Era o quê?!
Olhei ao redor daquele sarau, procurando quem era esse tal de Luan Pimentel que possuía o mesmo nome do meu namorado. Mas não era nenhum engano nem coincidência como cogitei. Assim que teve seu nome mencionado, o cara de olhos esverdeados se levantou de sua cadeira, pegou do bolso de sua calça social um papel todo dobrado e caminhou em direção ao palanque.
Eu estava embasbacado. Luan recitando uma poesia?! Logo o cara que há anos vinha falando o quanto achava isso um porre?
— Bom dia — ele falou ao microfone assim que o senhor Sérgio se afastou. Luan já parecia estar acostumado a discursar para grandes públicos, então não havia sinais de timidez em sua face. — Senhor Kevin, caso queira se sentar, a hora é agora.
Os olhares de todos se voltaram para mim, o único em pé no local. De rosto vermelho, imediatamente coloquei meu traseiro de volta na cadeira, buscando fugir das encaradas de todos.
— Agradeço. — Patife! — Bom, fui sucumbido a esse mundo de poesias pela mesma pessoa a quem dedico meu poema de hoje. O meu namorado, Kevin — mais uma vez fui alvo da espreitada de várias pessoas; ainda assim, senti meu coração aquecer com o orgulho que ele expressava ao falar aquelas palavras. — Como é a primeira vez que escrevo uma, espero que tenham um pouco de paciência comigo.
Mesmo tentando demonstrar segurança, era perceptível uma leve tremedeira enquanto desdobrava a folha toda amassada entre seus dedos.
— O nome da poesia é "Caminho da Superação."
Ele respirou fundo e então começou a lê-la com forte entonação:
"No trilho da vida, onde tropeços se encontram,
E os ventos contrários frequentemente nos afrontam,
Encontro a força que em mim se escondeu,
Com cada desafio, um novo eu se formou e cresceu.
O amor entrou e acendeu uma chama,
Que aqueceu meu coração e apagou a lama.
Fez-me ver a luz em meio à escuridão,
Transformando cada dor em renovada canção.
Cada adversidade é uma pedra no caminho,
Mas a força do amor é um firme alicerce, um abrigo.
Com coragem em cada passo, sigo firme e forte,
Pois sei que todas as sombras um dia terão um norte.
Os contratempos são como nuvens passageiras,
Que encobrem o sol, mas não o deixam de vez.
Com amor, enfrento a tempestade, a jornada inteira,
E cada batalha vencida é uma vitória que se fez.
Então, sigo adiante, com esperança e coragem,
Com o coração aberto, a alma em viagem.
Pois sei que cada desafio é uma chance de crescer,
E no fim de cada tempestade, há um novo amanhecer."
Com entusiasmo, todos aplaudiram Luan assim que ele terminou de ler sua poesia. Por mais simples que seu poema fosse, não pude deixar de sentir um frio na barriga: aquele frio bom, uma sensação de borboletas que se emaranhavam em meu interior. Algo que sempre achei impossível estava ocorrendo: consegui trazer Luan para o meu mundinho, da mesma forma que ele me trouxe para o dele.
Mesmo que não fizéssemos a menor ideia da poesia que o outro recitaria naquela manhã, ainda assim elas pareciam se complementar de forma intercambiável. Estávamos totalmente em sintonia.
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Sentados no chão seco abaixo da oca oculta do parque, eu e Luan nos acomodamos com um suspiro reconfortante. Ele colocou o cesto de piquenique ao seu lado e, após ajustarmos nossas posições, começamos a observar a paisagem ao nosso redor. A tarde estava acalorada, com o sol lançando seus fortes raios dourados sobre a extensão do parque. O calor era acolhedor, e os sons suaves das folhas balançando ao vento eram um pano de fundo perfeito para nossa conversa.
— Faz bastante tempo que viemos aqui juntos desde a última vez — comentou Luan, olhando para as árvores esverdeadas ao redor.
— É verdade — respondi, olhando para o cenário familiar que parecia inalterado desde então. — Mas, na verdade, nem foi mais necessário. Só vínhamos aqui para ter um pouco de privacidade. Agora, temos a sua casa para isso.
Luan assentiu, mas pude notar um traço de conformismo descolorido em seus olhos, como se uma parte dele ainda valorizasse aquele lugar especial que havíamos frequentado durante tantos momentos importantes.
— Eu sei, Kevin. Mas este lugar ainda é importante para mim. Não tanto pelas vezes em que o frequentava sozinho, mas por termos criado muitas memórias boas juntos aqui.
Eu sorri, entendendo o valor sentimental que aquele lugar tinha para ele. Nossas trocas de beijos intensos, na época apenas como pretexto para ele me ensinar a beijar, e a ocasião em que se assumiu para o seu melhor amigo ocorreram bem ali. O parque era mais do que apenas um refúgio; era um testemunho de nossas experiências e crescimento juntos.
— É, eu entendo.
Nossas pernas estavam voltadas para nossos peitorais enquanto permanecíamos mais um tempo em puro silêncio harmonioso.
— Acho que precisamos ir para o piquenique. Já devem ter chegado — sugeri, tentando apressar a saída, já ansioso para encontrar nossos amigos e poder encher o bucho de comida.
Luan levantou a mão, sinalizando para que eu esperasse. Ele parecia mais misterioso do que o comum, apesar do brilho de travessura em seus olhos voltarem. Meu Deus!
— Na verdade, tenho uma pequena surpresa para você.
— Outra?
— Calma, em breve você verá. Acho que vai gostar.
— Só espero que não seja outro pedido de casamento.
— Droga! Vou cancelar o flash mob que preparei — Luan fingiu desapontamento, fazendo-me rir de diversão com seu jeito palhaço. — Espera aqui, já venho.
Ele nem esperou eu dizer nada e já havia se levantado e saído de dentro da oca, indo para o lado de fora.
Realmente cumpriu com sua palavra, pouco depois de ter deixado a oca, lá estava ele de volta, e meu coração parou por um instante ao vê-lo carregando algo que eu reconheceria a quilômetros de distância. Ele tinha nas mãos um taco de beisebol, o mesmo que uma vez pertenceu ao meu finado melhor amigo. O mesmo que tinha seu nome marcado na base do objeto: "Diego". Mas o que me deixou ainda mais em choque foi o estado do taco: ele estava todo remendado, uma colcha de retalhos de fita isolante e corda amarrada ao longo de sua superfície. O bastão, que já tinha uma aparência robusta, agora possuía evidências da vez em que foi partido ao meio.
— Esse taco... — minha voz saiu em um sussurro incrédulo. — Eu pensei que ele tivesse ido para o lixo, depois que o pai do James o quebrou.
Luan se aproximou lentamente. Ele segurava o taco com um carinho visível, como se estivesse em posse da tocha olímpica.
— Eu sabia que esse taco era importante para você, amor — ele explicou, sua voz calma e ponderada. — Decidi guardá-lo e consertá-lo. Não está 100%, mas é o melhor que eu consegui fazer.
Eu examinei o taco com mais atenção quando Luan me entregou. A gambiarra era improvisada, mas o esforço era palpável e bem executado. O bastão havia sido reformado de forma minuciosa, os quais seus remendos agora pareciam quase decorativos sobre a superfície áspera e manchada de madeira. Era uma visão tocante e, de alguma forma, reconfortante apreciar esse gesto do meu namorado de me trazer de volta a única lembrança material que tinha do Diego.
— Eu não sei nem o que dizer — confessei, minha voz embargada pela emoção e os olhos marejados; Luan entendia bem o quanto aquilo significava para mim.
— Eu o mantive guardado por um tempo, esperando o momento certo para te surpreender. E agora que você está prestes a se mudar, achei que era a hora certa de devolvê-lo. Não faria sentido deixá-lo guardado embaixo da minha cama por muito mais tempo.
Havia uma leveza na voz de Luan enquanto ele falava, mas também um brilho sapeca em seus olhos.
— James estava quase pegando o próprio taco que estava lá jogado ocupando espaço para bater em mim — ele brincou, seu tom descontraído misturando-se com a seriedade do momento. — E eu pensei que isso não seria nada agradável para mim.
Enquanto eu ainda processava a emoção de reaver o taco de beisebol, Luan levantou-se com excitação e disse:
— Espera, tem mais uma coisa.
Ele se dirigiu rapidamente para a saída da oca mais uma vez, sua silhueta se destacando contra a luz suave da tarde. Eu o observei, tentando entender o que mais ele poderia estar planejando.
Poucos segundos depois, Luan voltou, carregando um baú aparentemente pesado. O baú era de madeira envelhecida, com ferragens de metal um pouco enferrujadas e estava coberto de poeira, o que indicava que havia sido guardado por algum tempo. Se assemelhava bastante com o qual eu utilizava, outrora, para guardar esse próprio taco em minha casa.
— O que é isso? — perguntei.
Luan, ainda com um sorriso aventureiro, colocou o baú no chão ao meu lado.
— Tive a ideia de enterrarmos o taco em uma cápsula do tempo aqui no parque. O terreno daqui é perfeito para isso.
Olhei para Luan, tentando compreender o que ele estava sugerindo.
— Eu sei que você tem medo de esquecer com o tempo o quanto Diego foi importante para você, e achei que, ao enterrar essa lembrança, eu e você poderíamos nos lembrar de voltar aqui, daqui a vinte anos, e relembrar tudo o que Diego significou para você.
A ideia era tocante, mas eu estava dividido. Inicialmente, a perspectiva de enterrar algo tão pessoal me fazia hesitar. No entanto, ao olhar para o empenho e o carinho que Luan havia colocado em sua proposta, percebi que era um gesto profundo de amor.
— Eu... Eu acho que é uma ideia incrível — finalmente concordei. — Vamos fazer isso.
Luan sorriu amplamente e nós começamos a trabalhar. Encontramos um local discreto nas proximidades da oca, onde a vegetação era densa e o terreno parecia adequado para o que estávamos prestes a fazer. Alternamos entre nós para cavar uma cova com uma pá que Luan trouxe, onde nossas mãos ficaram sujas de terra e suor enquanto trabalhávamos para criar um buraco.
Depois de um esforço considerável, finalmente conseguimos cavar um buraco profundo e largo o suficiente para acomodar o baú. Colocamos o baú aberto dentro do buraco, e Luan me perguntou se eu tinha algo que gostaria de dizer, como se estivéssemos prestes a realizar um funeral simbólico para Diego.
— Sim, eu tenho algo a dizer — respondi, fingindo seriedade enquanto olhava para baixo. — Você sujou os seus tênis brancos com o lodo!
A cena era tão cômica que eu não consegui segurar minha risada. Luan havia pisado em uma parte lamacenta enquanto cavávamos, e seus tênis ficaram completamente marrons. A gargalhada veio espontaneamente, e Luan virou-se para mim com uma expressão de frustração.
— Kevin, seu maldito! — ele exclamou, tentando limpar a sujeira de seus tênis com uma flanela que trouxe. — Podia ter me dito antes!
A leveza do momento trouxe um sorriso ao meu rosto, e a tensão inicial deu lugar a um sentimento de diversão. Após a nossa pequena descontração, voltamos ao propósito original e, finalmente, eu estava prestes a selar o baú.
— Espera! — Luan interveio antes que eu o fizesse.
Ele deu alguns passos para frente e, lançou um ioiô ao lado do bastão dentro da caixa.
— Esse brinquedo foi responsável por eu e James nos tornarmos amigos — Luan explicou, sorridente. Isso me recordou da história que ele me contou de quando se conheceram. — Ele me mataria se soubesse que enterrei o ioiô aqui. Porém, essa é uma forma de me lembrar também de voltar aqui daqui a vinte anos.
Sorri para ele entendível. Estávamos guardando memórias e lembranças de nossos respectivos melhores amigos naquele baú.
Finalmente cobrimos o baú com terra. Com ele selado e a cápsula do tempo devidamente enterrada, um sentimento de realização nos envolveu.
Voltamos então para a entrada da oca após limparmos nossas mãos, onde nos acomodamos em silêncio. O ambiente estava sereno, com o único som sendo o suave sussurrar das folhas e o ocasional bater das asas dos pássaros ao fundo. A brisa fresca da tarde seguiu acariciando nossos rostos.
Após um longo período em silêncio, foi Luan quem quebrou a quietude:
— Por que não escreve o nome do Diego ali? — Ele inclinou a cabeça para a parede da oca.
Eu segui seu olhar para a parede e percebi que ele estava apontando para um espaço visível, perfeito para algo que durasse. Luan continuou:
— Como ninguém deve conhecer este lugar, é improvável que alguém apague isso. Seria uma forma de eternizar aqui que um dia ele foi importante para você.
Concordei com um aceno de cabeça e me levantei para procurar algo com o qual pudesse escrever. Sem muitas dificuldades encontrei um pedaço de carvão que estava embaixo de algumas folhas secas perto da entrada da oca, provavelmente deixado por alguém que havia passado por ali antes — contrariando a teoria de que ninguém conhecia o local, mas decidi relevar isso. Era uma ferramenta improvisada, mas funcionaria bem.
Com o carvão em mãos, comecei a escrever cuidadosamente o nome de Diego na parede. O traço era áspero, mas o nome era claro e legível. A sensação de deixar essa marca, de fazer uma homenagem a um amigo tão querido, era profundamente emocionante para mim.
Quando terminei, olhei para o outro lado da oca onde Luan se encontrava. Ele estava se preparando para escrever também, e vi-o com um pedaço de carvão nas mãos. Luan começou a escrever com uma caligrafia meticulosa o nome de James na parede, seu amigo mais próximo que também era importante para ele. Eu observei com um sentimento de camaradagem e admiração enquanto ele fazia isso.
Decidi então escrever os nomes dos meus outros amigos que haviam sido significativos para mim nos últimos anos: Thalia, Arthur, Lucca, Douglas e Vinícius. Cada nome era uma lembrança, um tributo a amizades que moldaram minha vida. Pessoas que em breve partiriam para suas respectivas faculdades e me fariam muita falta.
Ao olhar novamente para Luan, antes de escrever o nome de minha melhor amiga, percebi que ele estava escrevendo os nomes de seus próprios amigos que também marcaram sua vida: Rafael, Felipe, e, para minha surpresa, até mesmo o nome da Letícia foi escrito! Ambos sempre foram bem implicantes um com o outro, mas agora parecia haver uma amizade legitima entre os dois.
Com um sorriso no rosto, peguei o pedaço de carvão e comecei a escrever, dessa vez, o nome dele. Ao desenhar a metade de um coração ao redor do nome de Luan, minha mão esbarrou, sem querer, justamente na dele antes de concluir o desenho. Ele estava fazendo a mesma coisa, mas com um detalhe adicional: ele tinha começado a desenhar justamente a outra metade do coração ao redor do meu nome que havia sido recém escrito por ele.
Nossos olhos se encontraram, e eu vi o mesmo sorriso cúmplice refletido em seu rosto. Sentimos um momento de conexão enquanto nossos nomes agora estavam dentro de um único coração desenhado na parede da oca.
Com um impulso primitivo e carinhoso, trocamos um beijo, nossos lábios se encontrando naquele local uma última vez antes de seguirmos caminho.
Era hora de irmos para o piquenique que estava acontecendo do outro lado do parque. Já estávamos atrasados, afinal. Tendo isso em vista, Luan pegou a cesta antes de enfim sairmos daquele esconderijo secreto.
Luan e eu começamos a subir a íngreme colina do parque, a brisa batendo refrescantemente em nossos rostos a cada passo que dávamos. O sol da tarde brilhava intensamente, fazendo com que a grama e as árvores ao nosso redor brilhassem em um verde vibrante. À medida que nos aproximávamos do topo, vimos, em sua maior altitude, nossos amigos e familiares reunidos sob uma grande árvore de copa espessa, cujas sombras ofereciam um alívio bem-vindo do calor do sol. O grupo estava espalhado de forma animada.
Vinícius e Erica estavam sentados no lençol xadrez que cobria parte do chão, envolvidos em um abraço apaixonado. Do outro lado do mesmo lençol, Letícia e James estavam de mãos dadas, parecendo dois pombinhos apaixonados.
Um pouco afastado do lençol, Lucca estava se divertindo ao subir pelos galhos da árvore, fazendo graça ao escalar com uma só mão. Thalia e Douglas estavam lá para repreendê-lo, mas suas expressões eram mais de diversão do que de verdadeira irritação.
Sentados comportados na grama, um pouco fora do lençol, estavam Gustavo e Cauã, os filhos de Celeste, que brincavam com seus carrinhos de brinquedos e seus bonecos de ação. Já minha própria mãe estava em animada conversa com a mãe deles. Ao lado delas, meu pai estava sentado, observando tudo com um sorriso acolhedor por de trás de seus óculos, enquanto tomava uma xícara de chá.
E, para minha surpresa por ter topado vir, até mesmo Arthur estava presente. Ele usava vestes claras e um tecido suave, que pareciam simbolizar essa nova fase em sua vida. Arthur havia se integrado ao grupo de maneira natural e acolhedora, como se os conhecesse há décadas. Havia um outro sujeito que eu não conhecia ao seu lado que interagia simpaticamente com o pessoal. Seria seu novo namorado?
Enquanto subíamos a colina, Luan e eu trocamos um olhar. Um sorriso se formou em nossos lábios ao vermos a cena; sorriso esse que refletia o fato de que, por muito tempo, havíamos evitado mostrar ao mundo nossa relação. Mas ali, no topo da colina, cercados por amigos e familiares que nos amavam e que faziam parte intrinsecamente de nossas vidas, éramos onde podíamos ser nós mesmos, sem máscaras, sem reservas. Não tínhamos mais que nos mantermos às sombras.
Com confiança e um sentimento profundo de pertencimento, terminamos de subir a colina de mãos dadas. A cesta que Luan carregava na outra mão parecia quase simbólica, como um elo entre nós e o grupo que nos aguardava. À medida que nos aproximávamos, os gritos de empolgação e alegria dos nossos amigos e familiares se tornaram mais altos e mais claros voltados a mim e a ele. O calor do sol, o som das vozes e o sentimento de realização criaram um ambiente perfeito para o piquenique que se desenrolava diante de nós. Não estávamos mais sós.
𝕱𝖎𝖒.
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