47. Theodoro Drummond

          Senti-me em meio a uma reunião da máfia, sentado no sofá esburacado da casa de James, cercado por aqueles garotos. A troca de olhares desconfiados entre os presentes era intensa, e nenhum dos lados parecia ceder à força mortal que aquele embate silencioso de encaradas carregava consigo.

— Então, querem começar? — O namorado de Letícia, o único dos garotos em pé na sala, quem colocou os dois caras de boné contra a parede. Sua relutância com eles ali era clara; afinal, James já conhecia seus históricos duvidosos.

— Já falei que viemos em missão de paz. Qual a dificuldade de vocês entenderem isso? — Rafael tentou tranquilizá-lo, abaixando com o dedo indicador, de forma incrivelmente fácil, o cabo da vassoura que James apontava em sua direção.

— Se fossem mesmo boa gente, não teriam praticado bullying contra o Kevin!

          Aí, meu Deus. Por que sempre me metiam nessas enrascadas?

— Nós não bulinamos ele! — Felipe se ergueu do sofá em sua defesa, mas Rafael estendeu seu braço em direção ao seu tronco para que ele voltasse a se sentar. Afinal, não me surpreendia sua fala; era só abrir a boca que tornava claro que ele tinha um cérebro do tamanho de um caroço de feijão.

— Nós mexemos com o Kevin sim — Rafael admitiu, reconhecendo que não tinha como fugir de seu passado —, mas não foi por conta de sua sexualidade. Não temos problema algum com isso. Sequer sabíamos que ele era gay.

— Uau, isso muda muita coisa. Praticou bullying, mas ao menos não foi homofobia. Cem pontos para a Sonserina por isso! — foi minha vez de não aguentar suas baboseiras, me defendendo com meu sarcasmo ácido.

— Está bem, Kevin. Nós fizemos da sua vida um inferno, e nos arrependemos disso. Pedimos desculpas, de verdade. Aprendemos com nossos erros — Rafael abaixou a cabeça em sinal de redenção. Ele acha que não notei quando pisou discretamente no pé de Felipe para que ele fizesse o mesmo.

          Permaneci encarando ambos desconfiado. Não que eu guardasse tanto rancor assim, mas essa mudança repentina deles, que já vinha de algum tempo — desde aquela festa em minha casa — me deixava com uma pulga atrás da orelha.

          Luan mantinha-se sentado em sua cadeira de rodas, encarando ambos com as sobrancelhas erguidas. Aposto que estava arquitetando alguma manobra arriscada e ousada, caso a situação pedisse, para que, mesmo em sua cadeira, pudesse fazer algo contra aqueles dois se fosse necessário.

— Quero apenas saber por que citaram meu pai mais cedo. O que tem ele?

          Os dois idiotas trocaram olhares entre si antes de se voltarem para nós.

— Queríamos ter conversado antes sobre isso. Tentamos falar com você naquela festa na sua casa, Kevin. Mas você não deu abertura — disse Felipe, ajeitando seu boné na cabeça, aparentando resquícios de arrependimento de estar ali.

          Eu não era um expert em leitura corporal, mas conseguia ver claramente o quanto ele estava fora de sua zona de conforto. O troglodita com certeza estava se contendo enquanto soava de forma amistosa, possivelmente por precisar de nós para algo ou mesmo por nos temer.

— Isso não tem a ver só com seu pai. Tem a ver com o meu também. — Rafael tomou a posse da fala agora, de forma que desviei o olhar para ele. — Nunca se perguntou por que meu pai sempre implicou com você, mais do que com todos os outros alunos?

— O que tem o mocorongo do diretor? — Pela primeira vez desde que chegamos, Luan falou com uma voz fria e amedrontadora. Mesmo xingando o pai de Rafael, sua expressão mal-encarada não dava margem para o filho rebater a ofensa; a não ser que estivesse disposto a apanhar do meu namorado novamente.

— Nossos pais estudaram juntos na época da escola — Rafael continuou, me surpreendendo com essa informação. — Ocorre que seu pai era mais do tipo do Luan, o desordeiro que vivia causando confusão, com a única grande diferença de que ele era bem popular entre todos. Já meu pai estava mais para você, o verdadeiro estereótipo de nerd.

          Abri a boca, cogitando retrucar, mas optei por deixar que ele prosseguisse.

— Seu pai vivia mexendo com o meu. Ele era o alvo de chacota dele e do seu grupo de amigos arruaceiros. Desde trancá-lo no armário do vestiário até jogar bolinhas de papel nele. — Rafael então se virou para Luan, os dedos cruzados por cima dos joelhos. — Aquele que é o diretor atualmente em nossa escola foi feito de gato e sapato pelo pai de Kevin.

          Eu não conseguia crer no que estava ouvindo. Logo meu pai, que tinha todo um jeito de alguém que parecia ter passado a vida toda com a cara enfiada nos livros e com a camisa para dentro da calça? Impossível!

          Está certo que ele já me disse que teve uma fase rebelde e aprontou poucas e boas, mas ao ponto de praticar bullying pesado com alguém? Não tinha como essa história ser procedente.

— O estopim veio no baile da escola. Naquele tempo, tinha essa tradição na escola na época da primavera. Kevin, seu pai derrubou um balde de gelatina no meu na frente de todo mundo! Meu pai foi embora de lá se sentindo totalmente humilhado. Ele virou alvo de zoação de todos por semanas.

"Foi desde essa época que passou a nutrir um ódio tremendo pelo seu pai e por qualquer membro de sua família. Por isso, sempre descontou em você sempre que teve a oportunidade, pois ele bem sabe de quem você é filho."

— Você só pode estar maluco se acha que vamos acreditar que o senhor Téo era um babaca como vocês! — Luan entrou no modo defensivo após ouvirmos o que eles tinham a dizer.

— O que estou dizendo é a mais pura verdade. Ele era cruel, sempre humilhando e menosprezando meu pai.

          Senti um nó se formar no meu estômago. Isso explicava tanta coisa, mas ao mesmo tempo, parecia inacreditável. Por mais que eu duvidasse do que Rafael falava, ele não aparentava estar mentindo pela forma como soava.

— Por que você está nos contando isso só agora? — perguntei, minha voz carregada de frustração.

          Rafael hesitou por um momento, antes de encontrar coragem para responder.

— Porque eu preciso da ajuda de vocês. Justamente essa mágoa que meu pai tem da sua família facilitaria no plano que arquitetei.

"As obras que estão ocorrendo na escola são apenas uma fachada. Meu pai está usando isso para extrair minerais ilegalmente debaixo do terreno da escola. Ninguém sabe disso, e ele corre um grande risco de ser preso se for descoberto. Estou preocupado com ele, por isso quero pará-lo enquanto há tempo."

          A sala ficou em silêncio por um momento, todos digerindo o que havia sido dito. Rafael, percebendo nossa incredulidade, continuou explicando.

— Há alguns meses, meu pai descobriu que o terreno da escola possui abaixo dele uma mina valiosa de lítio, usado na fabricação de baterias. Em vez de relatar a descoberta, ele decidiu explorá-lo para benefício próprio. As obras de "reforma" são apenas uma artimanha para encobrir a operação de mineração. Ele contratou uma equipe de trabalhadores clandestinos e está usando equipamentos de construção para cavar túneis e extrair o minério.

— E como ninguém descobriu isso até agora? — James questionou intrigado.

— Ele foi astuto. O barulho das obras da escola encobrem o que ele está aprontando no subsolo. Parte do dinheiro que deveria ser usado para melhorias na escola está sendo desviado para financiar a operação. É um esquema muito bem montado.

— O diretor Aroldo ainda não sabe que sabemos — Felipe disse seriamente. — O Rafael descobriu isso por acaso, xeretando seu escritório.

— Então, você quer que a gente te ajude a parar o seu pai? — perguntei, tentando entender a complexidade da situação.

— Sim — respondeu Rafael, a voz quase um sussurro. — Eu sei que isso é pedir muito, especialmente depois de tudo o que aconteceu, mas realmente acredito que vocês são os únicos que podem me ajudar a impedir essa loucura.

— Tínhamos um plano. Porém, agora que Luan está nessa situação, não sabemos mais se vai dar certo — Felipe interveio, mostrando receio ao se referir ao estado atual do meu namorado.

          Eu sabia bem que a situação de Luan, de não poder andar, era apenas temporária. A dupla de patetas, por outro lado, não sabia disso ainda. O grande porém era todo o resto que essa situação permeava. Tudo era muito esquisito: o diretor fazendo coisas ilegais, usando dinheiro público para isso, tudo por debaixo dos panos. Rafael preocupado com seu pai ao ponto de correr o risco de nos revelar tudo. E, mais importante do que tudo isso, que grande papel era esse que eu e Luan desempenharíamos em seu plano?

          Luan Pimentel, por sua vez, inicialmente deu uma risada nasal diante da proposta e, em seguida, riu com escárnio, como quem caçoasse deles.

— Vocês devem ter chapado o coco se acham que vamos nos sujeitar a isso. Além disso, depois de tudo o que seu pai supostamente sofreu, você não aprendeu nada e continuou a perturbar os mais indefesos?

          Olha lá, falando de mim novamente...

— Já falei que nos arrependemos do que fizemos ao Kevin. Descobrimos o que meu pai passou quando mais novo apenas após aquele dia que você nos bateu. Foi quando ele me contou. Entender pelo que ele passou foi o que pesou em nossa consciência e percebemos que fomos injustos com vocês. Ninguém merece passar por isso.

          Luan parecia irredutível, não importava o que Rafael ou Felipe dissessem.

— Luan, podemos falar a sós? — solicitei, recebendo uma encarada confusa dele em resposta.

          Ele acabou concordando com um aceno quase imperceptível e começou a manobrar sua cadeira de rodas em minha direção mais afastado dos demais. No caminho, porém, a cadeira esbarrou na quina da mesinha de centro, derrubando alguns papéis e uma xícara vazia.

— Droga, James! — Luan exclamou, irritado. — Falei para deixar as coisas no jeito!

          James levantou as mãos em defesa, a expressão igualmente irritada.

— Ei, eu fiz o melhor que pude, tá? Você só me avisou sobre a sua situação ontem. Não tive muito tempo para organizar tudo.

          Luan resmungou algo inaudível e continuou a manobrar sua cadeira até chegar ao meu lado, em um canto mais isolado. Ele puxou um maço de cigarros do bolso e acendeu um, o cheiro acre do tabaco invadindo rapidamente a sala.

— Não vai me dizer que acreditou nesse papinho deles, vai? — perguntou ele, soltando uma nuvem de fumaça. — Isso parece coisa de filme ruim.

— Não sei. O que você acha disso tudo? — perguntei de volta, os olhos semicerrados por trás da fumaça. — Essa história do Rafael parece loucura, eu sei, mas tem algo que parece se encaixar.

— Acho que você tá louco de vez, Kevin, do jeitinho que o CAPS gosta. Onde já se viu, acreditar que logo seu pai teria implicado com o diretor quando mais novos?

— Meu pai nunca mencionou nada disso, mas também, por que mencionaria? De qualquer forma, não é sobre isso meu questionamento. Quero saber se vamos mesmo intervir nesse lance do diretor estar usando as obras para conseguir minérios ilegais.

          O cigarro quase caiu de sua boca com a simples menção que fiz de cogitar ajudá-los.

— Quer mesmo ajudar os caras que implicaram com você ano passado? Os mesmos que te tiraram dinheiro, te ameaçaram e quase te bateram? Mesmo se seu pai fez algo, isso é passado e não tem nada a ver contigo. Deixa de ser tapado, você não deve nada a eles.

— Ninguém está falando que devo algo. Eu só acho que seja a coisa certa a se fazer.

          Luan, por um momento, ficou imóvel, mas logo em seguida deu uma risada descontraída, amenizando o clima.

— Você virou um santo mesmo. Primeiro perdoa o Arthur, depois esses dois. E saiba que, seja o que for que eles planejem, isso no final das contas acaba ajudando justamente o diretor, o velho que você sempre odiou.

— Pois é, Luan. Estou tentando garantir meu lugar no céu. Facilita aí — brinquei, arrancando uma risada do meu namorado.

— Daqui a pouco só falta querer dar uma nova oportunidade para o Christian também, o cara que chantageou sua melhor amiga.

          Revirei os olhos só de pensar na possibilidade. Christian era um otário sem salvação, e isso nós sabíamos muito bem.

— Nem sabemos se o que eles disseram sobre o pai do Rafael é verdade — Luan argumentou em um tom baixo, apenas para eu ouvir. — E se for uma armadilha? Seja lá qual for o plano deles, pode muito bem ser apenas uma vingança pela vez em que bati neles e quando você os denunciou por colarem nas provas.

— Bom, então é pagar para ver — respondi, entusiasmado. Não me admirava que o próprio Luan ficasse surpreso com minha mudança repentina de atitude. — Esta é nossa última chance de causarmos algo grande na escola antes de nos formarmos. Nosso último ato de rebeldia. Pode parecer bobagem, mas vejo isso como uma forma interessante de encerrarmos esse ciclo.

          Luan não parava de me olhar. Não de forma julgadora, mas sim de maneira analítica. Acho que não tardou para ele perceber que eu precisava disso. Não apenas perdoar eles ou redimir algo que meu pai tenha feito ao pai do Rafael, mas também como algo que ficaria eternizado em minha vida. Minha primeira e última chance de aprontar; me sentir um adolescente que foge das regras uma última vez antes de nos tornarmos adultos oficialmente.

— Estraguei você de vez — Luan comentou entre risos, dando mais uma tragada em seu cigarro.

— Pelo contrário. Fugir das regras me dá uma empolgação que nunca experimentei antes. Saber que faremos isso juntos me anima ainda mais — exclamei.

          Olhei por cima do ombro. A tensão dos três atrás era visceral. James permanecia encarando inquisitivamente a dupla — ele certamente levava a ferro e fogo o fato de cuidar dos seus amigos. Já Rafael e Felipe aguardavam retraídos por nossa decisão.

          No fundo, eu até via um pequeno raio de arrependimento verdadeiro deles pelo que fizeram comigo. Mas Luan tinha razão, talvez eu estivesse sendo bonzinho demais com aqueles que vacilaram comigo outrora.

          Quando voltei a atenção para o cadeirante, o cheiro do seu cigarro invadiu minhas narinas com força assim que a fumaça subiu em minha direção.

— Já falei o quanto odeio cheiro de cigarro?

          Segurando o filtro do cigarro com os dedos, Luan olhou para ele por um tempo, ponderando.

— Bom, acho que já está na hora de parar.

— Parar?

— Sim — Luan voltou a atenção para mim, com um olhar determinado no rosto. — Já te falei que usava o cigarro apenas para lidar com minha ansiedade. Mas aí veio você, me deu aquele violão no meu aniversário no ano passado, me ofereceu seu abraço quando eu estava mal. Não preciso mais disso.

          Luan jogou a bituca do cigarro no chão da sala e passou por cima dela com a roda da sua cadeira.

— Então você parou de fumar de vez? — indaguei, surpreso e orgulhoso ao mesmo tempo com sua atitude.

— Claro que não. Isso foi só uma metáfora — Luan deu de ombros, me deixando puto por me iludir. — O que quero dizer é que estou disposto a reduzir aos poucos; não é algo que vou parar de uma vez. Mas farei isso por você, amor. Porque sei que é importante para você e também porque ainda quero passar muitos anos ao seu lado, até perder a conta dos dias e perder os fios de cabelo.

          Sua declaração genuína e apaixonada me fez inclinar-me instintivamente e selar meus lábios aos seus, o que foi prontamente retribuído com uma mordicada dele em meus lábios inferiores. Não me importei com o gosto da nicotina de sua boca naquele momento, tampouco nenhum de nós se importava com o fato de termos plateia para nosso beijo.

— Vou me dar um prazo. No dia em que resolvermos essa questão do diretor, pararei de vez com o cigarro.

          Ambos sorrimos um para o outro com cumplicidade. Estava feliz não apenas pela disposição de Luan para nossa última aventura escolar, por mais arriscada que fosse, mas também por ele ter concordado em parar de fumar.

          Voltamos para onde o trio nos aguardava. Ao nos ver retornando, James abriu um largo sorriso debochado para os garotos no sofá, jurando que íamos dar um pé na bunda dos dois.

— Então vocês vêm até mim e pedem: "Luan Corleone", faça justiça, mas não pedem com respeito. Vocês não oferecem suas amizades. Sequer pensam em me chamar de Padrinho.¹

          Os dois idiotas olharam para ele confusos, sem entenderem bulhufas o que ele queria dizer. Santa paciência, até eu, que não sou fã de filmes de máfia, saquei a referência.

— E então, qual é o plano? — Luan questionou por fim, sua voz suave diante deles.

          A surpresa de todos foi evidente. Principalmente a de James, que ficou com o queixo caído ao descobrir que íamos ajudá-los.

— Vocês realmente vão nos ajudar? — Felipe perguntou, eufórico. — E quanto à sua cadeira? Isso não será um problema?

— Isso aqui? — Luan olhou para o próprio assento com um sorriso travesso. — Não se preocupem. Desde que não seja algo de imediato, terei tempo suficiente para me recuperar e chutar umas belas bundas por aí.

— Esse é o Luan que estávamos com saudades — Rafael estendeu os lábios para os lados satisfeito com nossa decisão. — Vai ser como nos velhos tempos!

          Pude reparar que o trio estava igualmente animado em voltar à ativa. Conheci Luan e esses dois em uma época em que aprontavam poucas e boas na escola. De certa forma, fiquei contente em ver que Luan passou uma borracha nisso tudo e estava disposto a ter um "remember" de sua fase rebelde, desta vez com minha companhia ao seu lado. Já James, por sua vez, apenas balançava a cabeça em desolação, o que me fez rir duplamente da situação.

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❝GLOSSÁRIO❞

¹ Corleone → Referência a frase do filme "O Poderoso Chefão", dito pelo personagem Don Vito Corleone. 

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