46. Perdão
Os dias subsequentes se arrastavam penosamente, com uma lentidão e uma aflição que até então nunca pensei sentir com tanto fervor. O barulho insuportável das obras do lado de fora de minha sala de aula nem se comparava ao tumulto que explodia dentro de minha cabeça.
Dois meses! Esse foi o tempo que se passou desde que Luan foi baleado. Presumo que estejam se questionando o que houve com meu namorado após isso, correto? Bom, aí está. Nem eu sabia ao certo.
O pouco que soube, ou melhor, que me deixaram saber, foi que ele foi levado às pressas para um hospital após o incidente. Toda a repercussão não apenas estragou toda a festa pós-casamento, como também causou alvoroço na mídia mexicana, sendo anunciado como um alvo de bala perdida de discussões entre facções que ocorreu há poucos metros de distância dali. Que disparate.
Seu Júlio e dona Alejandra, por outro lado, não deram a mínima para a festa do casamento. Foram os maiores responsáveis por darem todo o suporte que Luan precisava. É claro que eu não queria sair do lado dele; não deixaria aquele país até ter a certeza de que ele estava bem o suficiente para voltar ao meu lado no mesmo voo de volta ao Brasil. Contudo, eles tinham outros planos em mente...
Não me deixaram vê-lo em momento algum! E não foi por falta de insistência minha. Quase cheguei a invadir seu quarto no hospital, com a ajuda de Lêh, mas evidentemente não fui bem-sucedido em meu plano. Nem me comparava a ele em sua astúcia e sua forma de ser sorrateiro.
Tudo o que nos diziam era que a situação dele era delicada, que assim que possível me manteriam atualizado e eu poderia vê-lo. Mas isso nunca ocorreu. Nem mesmo Letícia conseguiu extrair muitas informações de seu pai — afinal, o recém-casal estava bancando todos os custos hospitalares. Seu Júlio apenas nos atualizava dizendo que Luan estava reagindo bem ao tratamento, mas permanecia em coma na UTI.
Que ódio! Eu sabia que eles tinham os motivos deles para não me deixarem vê-lo. Mas eu precisava disso, e não ser forçado a voltar ao Brasil e continuar indo para a escola como se nada tivesse ocorrido.
Claro que algo ocorreu. Arthur atirou em Luan! Nem sei que fim levou o garoto que atentou contra a vida do meu namorado. Mas, em relação a mim, me sentia igualmente culpado pelo fato de Luan estar nessa situação — entre a vida e a morte. Para começo de conversa, se eu não tivesse dado a mínima esperança para Arthur, Luan não teria sido atingido naquele dia. A maldita culpa era totalmente minha...
O professor de filosofia estava falando qualquer coisa desinteressante, que entrava por um ouvido meu e saía pelo outro. Eu estava mais interessado nos pássaros voando do lado de fora da escola, criando ninhos acima das árvores, do que na aula que transcorria à minha frente.
Contudo, isso mudou quando o inspetor entrou na sala sem bater, interrompendo o fluxo da aula e sussurrando algo no ouvido do professor. Ninguém conseguiu ouvir o que falavam, mas a expressão séria do inspetor e a preocupação que tomou conta do rosto do professor fez com que todos nós nos perguntássemos o que estava ocorrendo.
Tudo piorou quando ambos direcionaram o olhar para mim. Eu sabia. Antes mesmo de dizerem qualquer coisa, aqueles olhares com um toque de piedade já respondia por si só. Era sobre o Luan. E, pelo rosto deles, não era uma notícia boa.
Levantei-me da cadeira de imediato, antes mesmo que pudessem abrir a boca para me chamar. Ainda assim o fizeram, quase como se fizesse parte do protocolo.
Caminhei o mais lento que pude. Não queria chegar até eles, queria postergar esse momento o máximo possível, pois sabia que, assim que o fizesse iria receber a notícia que não queria ouvir, e não teria mais volta. Seria como receber a notícia da morte de Diego, três anos atrás.
Enquanto andava, senti os olhares de todos os meus colegas voltados para mim. Mas eu não ligava.
— Me acompanhe, por gentileza, Kevin — solicitou o inspetor, marchando para a porta. Antes de segui-lo, olhei para o professor ao meu lado, que retribuiu o olhar balançando a cabeça sutilmente para baixo.
Obedeci, saindo da sala de aula, longe da vista de todos os demais. Meu peito subia e descia incontáveis vezes, freneticamente. Preparei-me durante os últimos dois meses para receber, a qualquer momento, a pior notícia que poderia obter. Ainda assim, eu sabia bem que não estava, nem nunca estaria, pronto para descobrir o que me aguardava do lado de fora da sala de aula...
Fechei a porta atrás de mim com uma expressão de pesar. Ainda assim, mantive meu olhar firme erguido à frente, onde o inspetor se encontrava. Ele, entretanto, mantinha o seu respectivo olhar voltado para baixo, ao meu lado. Virei-me para observar o que o inspetor tanto olhava.
O garoto com caninos que lembravam as presas de um vampiro. O maior delinquente brigão da escola. O mesmo que quando seus cabelos ficavam molhados, me lembrava um gato escaldado — e que gato! O cara com uma tatuagem de lobo, que me recordava sua ferocidade quando estava bravo, mas ao mesmo tempo aludia à sua nobreza serena, como um lobo solitário ao luar. O jovem de olhos esmeralda, alguns centímetros mais baixo do que eu naquele momento — mas geralmente mais alto, estava bem ali. Sorrindo feito um idiota apaixonado para mim.
Não podia acreditar! Parecia um sonho. Uma miragem. Ele havia morrido e eu estava vendo seu espírito? Aquele endiabrado foi convertido nos momentos finais de sua vida e virou meu anjo da guarda? Não! Definitivamente era Luan Pimentel. Vivinho da Silva.
Não liguei para mais nada naquele instante. Sequer me dei a liberdade de analisar a situação como um todo. Instantaneamente, eu estava ajoelhado no chão do corredor, debruçado sobre seu colo e chorando ao ponto de soluçar.
Estava me fodendo com o inspetor me vendo naquele momento de vulnerabilidade. E Luan, pelo visto, também estava cagando para isso. Ele permanecia sorridente enquanto alisava meu cabelo com sua mão.
Mas por que Luan estava sentado? Foi só então que decidi olhar para ele de forma mais atenta. Luan estava sentado... em uma cadeira de rodas...!!
— Isso... — balbuciei, ainda sem compreender nada. As palavras escapavam de minha boca em meio aos soluços, enquanto meu rosto permanecia molhado.
O inspetor pigarreou, lembrando-nos de que ainda estava ali.
— Vou dar privacidade a vocês. — Ele anunciou, se retirando do local e nos deixando a sós.
— Luan, essa cadeira...?
— Vamos dar uma volta — Luan sugeriu, sem perder o bom humor, cortando minha fala no meio. Me afastei quando fez menção de se locomover. Ele então levou as mãos às rodas da cadeira, girando-a pelo corredor em um movimento de 360 graus. — Pronto, já dei a volta.
Mesmo nessa situação, meu namorado conseguia levar tudo na brincadeira, quase me arrancando uma risada descontraída conforme começávamos a andar pelos corredores vazios da escola. Ele se mostrava independente ao manusear seu novo meio de locomoção com precisão, enquanto eu tinha um sentimento de culpa sobre meus ombros de estar andando ao seu lado com meus pés.
— Uma pena que não possamos ir para o nosso lugar, no terraço da escola — ele comentou, fazendo claro esforço para seguir reto com sua cadeira de rodas em uma parte de relevo. — Só damos valor à acessibilidade quando precisamos dela. Se você soubesse o sacrifício que foi subir minha cadeira pelas escadarias do pátio, pela ausência de rampas.
— Luan... — Tentei tomar controle da situação, criando coragem para verbalizar meus receios. Meus olhos se mantinham aquosos enquanto olhava para baixo. — Isso é definitivo? Você não vai mais...?
— Andar? Isso mesmo, Kevin. Não posso mais andar.
Senti meu coração gelar nesse momento. Meus movimentos pararam tão abruptamente que achei que eu mesmo precisaria de uma cadeira de rodas. O fato de Luan depender de uma pelo resto da vida não diminuía meu amor por ele. Mas saber que ele nunca mais poderia andar — e ainda mais sabendo que isso era culpa minha — fez com que eu perdesse todo o meu chão.
Entretanto, repentinamente, Luan começou a rir fervorosamente, como alguém que está prestes a contar uma piada, mas ri dela antes mesmo de poder verbalizá-la.
— Estou zoando — ele admitiu, vendo meus olhos se arregalarem. Não sabia dizer se fiquei feliz ou puto com sua pessoa. — Isso é apenas temporário. Bom, tudo dependerá das sessões de fisioterapia. Mas já estou frequentando há um tempo e estou tendo um bom resultado na reabilitação.
— Você fica brincando com essas coisas, tá ligado que vai para o inferno, né?
— Então iremos juntos, pois nos deitamos com semelhantes — ele sorriu de maneira safada para mim, dando um leve tapa em minhas nádegas e me fazendo enrubescer com sua ação; não que eu tivesse desgostado de toda forma.
— O que aconteceu, Luan?
— Como assim, o que aconteceu? Eu levei um tiro, oras. A bala acertou minha coluna vertebral, o que fez com que os movimentos das minhas pernas paralisassem momentaneamente por ter afetado minha medula espinhal. Mas, como falei, tudo indica que em breve estarei de volta, correndo por aí e arrasando no clube de basquete.
Sentado na cadeira, Luan estendeu a mão no ar como se estivesse arremessando uma bola de basquete em direção à uma cesta invisível.
— Ah, o clube de basquete...
— Não me diga que já fomos desclassificados do torneio, fomos? — O cadeirante ao meu lado se voltou a mim afoito. — Sabia! Não dá para esperar muito quando o pivô sai de cena.
— Não é bem por aí, Luan. Aliás, você deveria se achar menos, pois foi justamente o contrário. Este ano conseguimos chegar finalmente às semifinais, mas fomos desclassificados nelas. O problema é que, na sua ausência, Christian se tornou o capitão do time. E, pelo bem ou pelo mal, ele se tornou o queridinho dos olheiros das faculdades. Mesmo perdendo, o babaca anda se vangloriando que está com a passagem para a faculdade garantida.
A expressão de ânimo de Luan logo se desmanchou. Mesmo que ele não tivesse intenções de ir para a faculdade, entendia bem sua frustração. Imagina ficar dois meses fora por conta de um incidente, e quando voltar, um oportunista barato e otário como o Christian ter tomado o seu lugar.
— Quando o gato sai os ratos fazem a festa. O mundo não é justo — Luan falou quase que conformado.
— Não mesmo.
Quando finalmente nos demos conta de que estávamos andando à deriva há um bom tempo, paramos em frente aos armários daquele corredor.
— Por que não me contou que estava bem, Luan? Fiquei esses meses todos preocupado contigo, nem conseguindo dormir direito, sem nenhuma notícia sua. Sabe as histórias que tive que inventar para a Celeste para ela não se preocupar sobre o seu sumiço?!
— Ah, a Celeste. Vi ela ontem à noite. A coitada quase infartou quando me viu nessa cadeira. Acho que, no fim, ela acabou me "adotando" como um filho mesmo — Luan deu um sorriso bobo antes de levar a sério meus questionamentos.
"Não quis que te falassem nada sobre mim, Kevin. Não fiquei mais do que alguns dias em coma, mas, quando acordei e não senti o movimento das pernas, quando não sabia se poderia voltar a andar, preferi esperar. Minha situação era incerta, porém conforme as coisas foram melhorando, fui me sentindo mais confiante para aparecer.
"Você sabe que não é do meu feitio aceitar caridade. Mas a Alejandra não aceitou nenhuma negativa minha. Ela custeou, e segue custeando, meu tratamento. Agora que as coisas melhoraram em minha adaptação, pude voltar para o Brasil e dar seguimento por aqui. Então cá estou eu."
— Mas por que, Luan? Por que só quis me falar que estava bem após descobrir que poderia voltar a andar? Sabe o quanto sofri esse tempo todo?! — senti meu coração apertar ao lembrar de cada noite mal dormida, cada choro abafado com minha cara enfiada no travesseiro, sempre pensando no pior cenário.
— Queria ter a certeza. Pois, se não pudesse voltar a andar, não teria coragem de te encarar. Tive medo de ser rejeitado por você por conta disso.
— Não seja ridículo! Eu nunca terminaria com você por isso — me agachei, ficando na altura de seu rosto com nossos olhos em linha reta um para o outro. — Falei bem sério sobre não desistir mais de nós. Tampouco por algo assim. Daríamos um jeito, e eu estaria lá para te apoiar. Ainda assim, fico contente que ficará bem. Não por nós, mas por você. Eu nunca me perdoaria se você ficasse preso a essa cadeira para sempre.
— Do que está falando, Kevin? Você não tem culpa de nada. Quem atirou em mim foi aquele lixo do Arthur. Pare de se sentir culpado por algo que não lhe compete.
Me ergui de súbito, desviando brevemente o olhar dele. Ao olhar de volta, percebi que Luan estava com a cabeça inclinada, confuso com minha hesitação.
— Ele me beijou.
Luan ficou pasmo com meu relato, enquanto tentava processar a informação.
— Naquele dia?
Neguei com a cabeça.
— Não. Foi no dia da peça de teatro. Bom, depois da apresentação. Arthur me roubou um beijo no camarim, e eu acabei não te contando — vi aos poucos a expressão de Luan ficando totalmente assombrada diante de minha revelação.
— Nós estávamos namorando naquela época...
— Eu sei, Luan. Mas o beijo não foi recíproco. Ele me beijou, mas eu deixei claro que não sentia o mesmo por ele. Apesar que mesmo depois disso, continuamos nos falando, sempre deixando claro que meu coração era seu. Mas, quando estávamos no México, e nós tivemos aquela briga, Arthur me pegou em um momento de vulnerabilidade.
"Desde que eu e você voltamos depois do primeiro término, não pensei em momento algum nele. O único momento em que fiquei balançado foi quando tivemos esse atrito. Ainda assim, fui naquela igreja apenas para dar um basta na situação. Dei uma intimada nele e deixei claro que não havia nenhuma possibilidade de nós ficarmos juntos, porque eu era, ou melhor, sou apaixonado só por você."
Luan ficou em silêncio, enquanto lentamente se distanciava em direção às janelas. O único barulho naquele ambiente eram dos ruídos das suas rodas passando pelo corredor. O fato de estar indo devagar deixava claro que ele não queria exatamente se afastar de mim, mas sim que eu o acompanhasse.
Sentia um nó se formar em minha garganta enquanto Luan olhava para o lado de fora da escola pelas janelas, abatido. Seu silêncio era ensurdecedor.
— Reconheço que posso não ter te traído sentimentalmente com ele, mas sei que trai sua confiança em não te contar. Sempre apontei o dedo na sua cara quando você cometia erros, e hoje tenho que reconhecer que também errei feio. Vou entender se você não quiser mais continuar comigo. Só não quero te magoar mais, Luan.
— Por que não me contou? — Luan decidiu quebrar seu voto de silêncio, porém em um tom frio, sem me dirigir o olhar.
— Acho que nós dois ainda estávamos vacilando nisso de esconder coisas um do outro — dei um sorriso sem graça. — Tive medo de você partir para cima dele. De brigarem por mim. Mas, eu seria desonesto se dissesse que é só sobre isso.
"Via em você alguns defeitos que não existiam no Arthur, e por conta disso não quis afastá-lo. Não sei. Talvez eu quisesse deixá-lo, inconscientemente, no banco de reserva. E sim, sei que fui um tremendo babaca por isso. Acabei me deixando me cegar buscando a solução mais fácil. Sinto muito, Luan."
O sol brilhava intensamente entre as copas das árvores do pátio, lançando raios dourados que dançavam no chão. Naquele mesmo local, a movimentação dos engenheiros era claramente visível enquanto trabalhavam na construção de uma grande fonte.
— Você traiu minha confiança — ele falou se voltando finalmente a mim, suas palavras me cortando mais profundamente do que as lâminas afiadas de uma espada. — Porém, eu te perdoo, desde que não ocorra novamente. Já passamos da fase de agirmos como moleques, se somos um casal a partir de agora teremos que agir como tais.
Por mais sério que Luan estivesse naquele momento, não pude evitar de sorrir de orelha a orelha. Sei que fui um infeliz por ter deixado Arthur fazer o que fez comigo e não ter te alertado, mas saber que ainda estávamos juntos, que Luan havia sobrevivido, e que o susto inicial de ele não voltar a andar não passou disso: um susto, fez com que meu peito se enchesse de uma alegria triunfante.
— Quero também que vá para a faculdade, para o curso que você escolheu. — Agora Luan mostrava-se mais pacífico ao voltar a ter a posse da palavra, o que me deixou duplamente surpreso.
— Luan, não quero que você desista dos seus sonhos só para eu realizar os meus. E também não quero desistir da gente. Estou confuso.
— Não, idiota. Ninguém vai desistir de nada. — O garoto na cadeira de rodas balançou a cabeça em negação. — Pelo contrário, sigo firme em ser sócio do James. Inclusive, já pedi demissão do bar; apesar que como já estava há dois meses sem aparecer por lá, já estavam achando que eu não voltaria mesmo. Quero focar exclusivamente na minha recuperação e na reforma da oficina.
"Durante esses meses, tive muito tempo para colocar as coisas em ordem em minha mente. Não vou dizer que estou soltando fogos com a ideia de você morar longe, mas, como você mesmo disse, daremos um jeito, mesmo morando a dezenas de quilômetros de distância."
— Centenas — Corrigi ele.
— Droga.
Ambos rimos cúmplices. Era tão gostoso voltar a rir, compartilhando esse tipo de momento com a pessoa que eu mais amava.
O apoio dele só aumentava meu ânimo para seguir com meus estudos para o vestibular. Mantive-me concentrado nisso nos últimos meses, com a cara nos livros, pois era a única coisa que me fazia esquecer, momentaneamente, a preocupação com seu bem-estar.
— Estamos em um momento de desabafos e de deixar as coisas em panos limpos. Se há mais algo que queira dizer, agora é a hora — Luan declarou, como se soubesse exatamente a confusão que permeava minha cabeça.
— Por que você sempre sabe quando estou escondendo algo?
— Se eu não te conhecesse bem o suficiente, não seria seu namorado.
— Touché — murmurei, dando uma leve balançada em sua cadeira de rodas, mas rezando para que ele não tombasse com o ato. — Está certo, Luan. Tem mais uma coisa. Algo que você não vai gostar de ouvir.
— Só não me diga que me traiu com o Lucca.
— Droga, como você soube?
— Nããããão! — Mais uma vez rimos daquela história encenada. Porém, eu sabia que o momento requeria seriedade da minha parte.
— Bom, também pensei bastante sobre algo durante esse tempo. Se você não tivesse sobrevivido ao incidente ou tivesse tido uma sequela definitiva, talvez meu pensamento fosse outro. Mas agora que sei que está bem, tenho certeza sobre isso que direi.
"Luan, sei que você tem todos os motivos do mundo para odiar o Arthur. Mas não acho que ele seja uma má pessoa. Queria que você ao menos considerasse a possibilidade de retirar a denúncia contra ele. Não sei se retirando a queixa mudaria muita coisa nesse tipo de crime, mas..."
— Você pirou na batatinha, Kevin? O cara quase me matou! Quase fiquei paraplégico por causa dele. E você está falando em esquecer isso?
— Esquecer não, mas perdoar. Não sei dos detalhes dos seus problemas, mas ele estava com a mente bem fodida. Sei que nada justifica o que ocorreu, mas também não vejo o ato dele daquele dia como algo feito com pura maldade.
— E qual a diferença? Isso justifica sair por aí portando uma arma e atirando para torto e direito? E se eu tivesse morrido? Pensaria da mesma forma? — Luan mostrava-se perplexo com meu posicionamento. Mas eu me mantive firme no que acreditava.
— Não sei. Possivelmente não conseguiria ser racional se fosse o caso. O que importa é que agora consigo analisar a situação de cima, de cabeça fria. Pode parecer irracional ou que estou favorecendo ele por ser meu amigo, e, de fato, talvez seja justamente por isso. Não falo isso por ter sentimentos por ele; já provei por A mais B que só amo você. Mas, uma vez você me disse que não somos capazes de salvar ninguém. Talvez você tenha razão. Não podemos salvar alguém que não está ao nosso alcance nem salvar quem não quer ser salvo. Mas podemos, sim, fazer a nossa parte no que estiver em nossa alçada.
— Isso é sobre o Diego? — Pela primeira vez desde que entramos nesse tópico, Luan mostrou sensibilidade em sua forma de falar ao indagar, compreendendo a origem de meu medo de Arthur sucumbir aos julgamentos internos e o de terceiros.
— Sim. Não quero que aconteça com o Arthur o mesmo que aconteceu com o Diego. Ele está perdido mentalmente, e se apenas apontarmos o dedo para os erros dele, talvez ele não viva o suficiente para ter uma segunda chance.
"Sei que mudar e perdoar são as coisas mais difíceis do mundo, mas se uma coisa levar a outra, não vejo porque não tentarmos. Também sei que você tem um coração gigante, Luan, mesmo parecendo um cara marrento por fora."
— Hum. Verei o que posso fazer. Não sei, de toda forma, maiores detalhes sobre o que houve com ele. Mas, se for possível, mandarei retirar a queixa contra ele. Por você, não pelo Arthur. Mas saiba que, se ele não aprendeu com seus erros, a responsabilidade será sua.
Por mais que soasse como um sermão, o sorriso bondoso de Luan deixava claro que ele confiava em minha intuição. Esse maldito havia amadurecido pra caralho!
— Vamos? Ou tem mais algo para falar?
— Está perfeito, Luan. Podemos ir — sorri, começando a caminhar. Contudo, percebi que estava andando sozinho poucos segundos depois. Luan permanecia parado no mesmo lugar. — Desculpe, não perguntei se precisava de ajuda. Quer que eu empurre?
— Não. — Ele balançou os ombros, como quem faz suspense antes de revelar um segredo. Logo em seguida, estendeu sua mão no ar. — Quero ir de mãos dadas.
Fiquei em choque. Luan estava realmente propondo isso? Bom, depois da última vez, no casamento, quando ele se assumiu na frente de todos os convidados, estava claro para mim que ele estava disposto a se assumir para todo mundo.
Agora, porém, era diferente. Não iríamos assumir nossa relação para totais estranhos, mas sim para todos aqueles que conhecíamos. E, mesmo com o frio na barriga e o nervosismo que a situação urgia, não consegui deixar de sorrir enquanto entrelaçava meus dedos aos dele, caminhando juntos de volta para nossa sala de aula.
Assim que retornamos para a aula de filosofia, os olhares de espanto de todos voltados para nós foram tão intensos que parecia possível cortar a tensão no ar com uma faca de manteiga. Não sei o que era mais surpreendente para eles: o fato de Luan, que estava há meses sem aparecer na escola desde o incidente, ressurgir; o fato de ele estar numa cadeira de rodas; ou termos chegado de mãos dadas. Na verdade, acho que foi essa terceira opção mesmo.
As meninas que sempre cobiçaram Luan, desde o ano passado, entraram em uma zona de conformismo há um bom tempo, achando que ele tinha namorada desde que passou a frequentar a escola com aliança no dedo. Além disso, a vez em que Ashley o beijou na frente de todos deu a entender a elas que seu coração já havia sido fisgado.
O que descobriram agora, entretanto, era que quem fisgou o seu coração não era uma garota, mas sim um garoto: Euzinho. A perplexidade estampada em suas caras seria desconfortável para mim se Luan não estivesse se mostrando tão seguro, tanto em relação a estar em uma cadeira de rodas quanto ao fato de admitir a todos que somos namorados. Eu quem dei a sugestão de nos assumirmos, mas ele quem estava no controle disso tudo.
— E aí, Luan, de carro novo? — Lucca quebrou o silêncio da sala, como de costume, arrancando risadas de alguns pela forma como se referiu à cadeira de rodas.
Douglas deu um soco no antebraço de Lucca, repreendendo-o, mas Luan sorriu com a fala dele.
— Pois é, Lucca. Estou na versão mais recente, com rodas turbinadas e freio ABS! O turbo dele também está nos trinques.
— Uau, posso dar uma volta?
— Foi mal, o único que pode receber carona no meu colo é o Kevin — Corei imediatamente com a fala dele, enquanto a sala toda se pôs a rir; não em deboche, mas por acharem graça de seu comentário. No fim, aos poucos, as coisas estavam voltando aos eixos.
Por incrível que pareça, Luan foi o maior responsável por fazer piadas sobre sua condição atual; mais até do que o próprio Lucca. Ele estava levando tudo na esportiva — devia ser a forma com a qual ele lidava com o fato de estar assim.
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Após as aulas, requisitamos de uma grande ajuda de alguns dos seus colegas do clube de basquete para descerem a cadeira de rodas pela escadaria. Bem que Luan mencionou que não havia acessibilidade alguma em nossa escola. Quem dera a reforma que estava sendo feita fosse sobre isso.
Uma vez em terreno plano, Luan permitiu que eu empurrasse sua cadeira. Ele estava querendo ser independente, mas certamente devia se cansar de girar aquelas rodas de um canto ao outro o dia todo. Queria ao menos ajudar um pouco.
— Ele ainda sobe, se é o que quer saber — ele comentou do nada, lançando-me um olhar imoral.
— Não perguntei nada, bobão!
Assim que estávamos saindo do terreno da escola sorridentes, passando pelo portão da entrada, a presença de duas figuras sombrias postadas em frente ao muro da escola fez com que nossas expressões se fechassem imediatamente ao avistarmos eles.
— Luan, estávamos esperando você... — Rafael, o filho do maldito diretor, falou assim que nos viu. Porém, seu rosto deu lugar a uma expressão de surpresa ao ver Luan em uma cadeira de rodas. — O que houve com você?!
— Quem pergunta isso sou eu. O que houve com vocês dois para aparecerem aqui?! — Retruquei, encarando os dois garotos à nossa frente.
Rafael e Felipe estavam bem ali, usando seus respectivos agasalhos e mantendo seus bonés virados ao avesso em suas cabeças. Achei que tivéssemos nos livrado deles quando se formaram ano passado e depois que Luan deu uma bela surra neles. Mas lá estavam eles.
— Nos escutem... — Felipe falou, pela primeira vez em um tom amigável.
— Quem vai escutar são vocês. Não achem que só porque estou numa cadeira de rodas que não acabo com a raça de vocês se ousarem tocar de novo em um só fio de cabelo do meu namorado! — Mesmo Luan tendo conseguido controlar seus picos de raiva nos últimos tempos, sua expressão de braveza e o fato de ranger seus dentes deixava claro que sua ameaça poderia sim se concretizar. Algo do qual não pude deixar de achar fofo de sua parte.
— Namorado? Vocês? — Rafael balbuciou, apontando de um para o outro, sem entender nada. Eles realmente estavam bem por fora.
Irredutível, segurei firme no apoio da cadeira e mantive a concentração no caminho à nossa frente, levando Luan comigo.
— Esperem! — Rafael clamou, mas foi ignorado com sucesso por nós dois. — Preciso falar com vocês dois. É importante! Tem a ver com o seu pai, Kevin. Com o senhor Theodoro Drummond.
Nesse momento, parei abruptamente a cadeira de Luan na calçada, me dando a liberdade de olhar por cima do ombro, intrigado. O que diabos meu pai tinha a ver com esses dois palermas?!
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