45. Cante Pelo Riso, Cante Pelas Lágrimas
Nessa reta final de "Quando Estamos Sós" que tal experimentarmos algo diferente?
Esse capítulo, excepcionalmente, será dividido em alguns POV's (Pontos de Vistas) diferentes. Ele será narrado por quatro personagens, sendo eles: Kevin, Luan, Letícia e Arthur.
Será deixado sinalizado qual POV está vigente assim que houver a troca. Boa leitura a todos, e, preparem o coração.
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𝓟𝓞𝓥 𝓚𝓔𝓥𝓘𝓝 🛹:
Meu reflexo naquele espelho refletia exatamente meu estado mental estampado em minha face: devastação e angústia. Sentimentos esses que não combinavam em nada com minhas roupas à caráter; um smoking preto feito de lã fina, com uma lapela de cetim que reluzia suavemente. Ela se destacava sob minha camisa branca, cuja gola engastava um laço borboleta lilás. Eu estava um verdadeiro homem de fino trato para o casamento do seu Júlio e da dona Alejandra, e ainda assim não conseguia estar animado.
Como me manter empolgado com esse casamento, afinal? A própria trilha sonora que tocava em meu aposento, vinda do alto-falante de meu celular, era uma melodia desoladora que me recordava de Luan. Foi ele, no fim das contas, quem me incentivou a ter gosto pelas músicas e abriu meus horizontes para novas experiências musicais com artistas e bandas que nunca ouvi falar. Entre eles estava justamente Aerosmith, sendo bem representado enquanto, melancolicamente, "Dream On" era reproduzida durante meu processo de terminar de me arrumar.
https://youtu.be/89dGC8de0CA
Every time that I look in the mirror 🎶
(Toda vez que me olho no espelho)
All these lines on my face gettin' clearer 🎶
(Todas estas rugas no meu rosto ficam mais aparentes)
Não nos falamos desde aquela briga, em que Luan foi embora do sítio de Alejandra. Não tinha mais qualquer notícia dele desde então. Logo, era de se supor que ele não fosse aparecer no casamento. Para falar a verdade, nem eu queria participar.
O pai de Letícia não poderia ter escolhido uma data pior para se casar que não fosse 12 de junho?! Logo no Dia dos Namorados. Justo o dia em que eu e Luan, teoricamente, completaríamos um ano de namoro... Tudo me lembrava daquele cretino.
Enquanto Aerosmith preenchia o quarto com sua música e as dúvidas em relação ao que seria do meu futuro amoroso atormentavam minha cabeça, fui sucumbido a olhar ao redor. Dezenas de pétalas espalhadas pelo chão e pela minha cama; oriundas de flores que arranquei uma a uma, perguntando a elas quem deveria escolher: Luan ou Arthur. Se daria mais uma chance ao garoto por quem passei um ano e meio apaixonado, ou se tentaria uma nova relação com o rapaz que me aguardava, naquela mesma tarde, no topo da torre leste da igreja no horário do casório.
The past is gone 🎶
(O passado se foi)
It went by like dusk to dawn 🎶
(Passou como do crepúsculo ao amanhecer)
𝓟𝓞𝓥 𝓛𝓤𝓐𝓝 🚬:
Sempre tive uma grande facilidade para estragar tudo ao meu redor. Quando tudo estava bom e feliz demais, era sinal de que algo ruim estava para acontecer. Então, talvez inconscientemente, acabei me auto-sabotando mais uma vez. Antecipando uma desgraça que viria mais adiante, achei que ter o controle de como e onde a ruína ocorreria seria menos doloroso.
Que tolice. Agora, além de ter destruído meu relacionamento de vez, ainda carregava a culpa por ter feito isso com minhas próprias mãos. Estas malditas mãos que prometi usar para externalizar minha própria fúria apenas para proteger o Kevin... Não tinha mais a quem proteger, pois eu estraguei tudo!
Em um lampejo de fúria, desferi um soco no espelho do banheiro daquele quarto de hotel. As rachaduras no vidro foram manchadas com o vermelho carmesim do meu sangue, enquanto eu me debruçava no chão, evitando ao máximo gritar de dor. Lágrimas caíam dos meus olhos, mas não pela dor física das dobras dos meus dedos, e sim pela dor do meu coração.
I know nobody knows 🎶
(Eu sei que ninguém sabe)
Where it comes and where it goes 🎶
(De onde vem e para onde vai)
Quando Kevin terminou comigo da primeira vez e pedi uma nova chance, prometi que não me importaria mais com a opinião dos outros sobre nossa relação. Mas lá estava eu, me mostrando um belo de um bundão. Prometi ser um cara corajoso, e só lhe entreguei um covarde, alguém que teme o mundo e, por mais que odiasse como as pessoas me viam como perfeito, ao mesmo tempo não queria quebrar essa imagem delas. Não queria que soubessem que eu, Luan Pimentel, gostava tanto de garotos quanto de garotas. Eu era um fodido!
Então, quando decidi me erguer do chão para cuidar do ferimento na minha mão, meus olhos se depararam com aquele objeto cinza circular manchado de vermelho. As gotas vindas da minha aliança pingavam no chão daquele hotel luxuoso — aliança esta que em momento algum cogitei tirar do meu dedo, enquanto meu coração batia de forma descompassada.
Eu ainda o amava. Errei, errei e errei. Mas não queria perdê-lo. Não antes de dizer para Kevin que ele era minha vida, olhar nos seus olhos e me desculpar uma última vez, nem que fosse a última coisa que fizesse em vida.
Com uma inquietação latente, abri a porta daquele quarto de hotel, me deparando com dois seguranças brutamontes na minha frente postados em frente a ela. Alejandra, angustiada com minha situação desde que deixei o seu sítio, me contatou e me hospedou naquele hotel e fez esses caras ficarem de olho em mim. Ela sabia que eu era impulsivo e poderia tentar escapar. Preocupada comigo, prometeu se responsabilizar pelo meu bem-estar e bancar meu voo de volta ao Brasil após o casamento desde que eu cooperasse e não tentasse fugir.
— Decidi ir ao casamento! — falei resoluto, quando os dois se postaram em meu caminho se interpondo em meio ao longo corredor. Olhei para o meu relógio de pulso, constatando que não faltava muito para a cerimônia começar. — Estão me escutando?! Conseguem me entender?
— La señora nos informó que no debemos permitir que usted salga de su habitación bajo ninguna circunstancia. Somos responsables de su seguridad. Vuelva adentro — disse um deles com seriedade. Seu tamanho era imenso, e seu terno soava muito mais apropriado para o casamento do que minha blusa de moletom e minha calça jeans que eu vestia. Contudo seus óculos escuros denotavam o quão distantes ambos estavam de serem convidados de um casamento.
Era inconcebível ser tratado como criança, ainda mais agindo como se eu estivesse em risco de vida. Sendo que as únicas pessoas que eram uma ameaça para mim naquele momento eram justamente esses dois por me atrapalharem. Mesmo passando a vida toda morando com pessoas ricas, certos costumes desse povo eu nunca entenderia.
Senti os olhos dos dois seguranças em mim, vultos corpulentos que não desgrudavam de minha figura. Na minha mente, um plano se desenhava rapidamente, cada passo milimetricamente sendo calculado. Fingindo que ia voltar para o quarto, parei abruptamente e fiz menção de abrir a porta. Eles relaxaram por um momento, pensando que eu tinha desistido. Mas essa era a minha chance.
I know it's everybody's sin 🎶
(Eu sei que é o pecado de todo mundo)
You got to lose to know how to win 🎶
(É preciso perder para saber vencer)
Num movimento rápido, girei sobre os calcanhares e disparei pelo corredor passando entre os dois. Senti o peso dos meus músculos respondendo à urgência do momento. Os seguranças foram pegos de surpresa, mas logo começaram a me perseguir.
Sabia que precisava ser mais rápido e ágil. Dobrei à esquerda no final do corredor, minhas pernas trabalhando como pistões. A adrenalina corria nas minhas veias, aumentando minha velocidade. Ouvi os passos pesados deles se aproximando, mas não olhei para trás. Concentrado, usei uma mesa de serviço como impulso, saltando por cima dela com destreza quase derrubando o camareiro a minha frente.
Os corredores do hotel passavam em um borrão enquanto eu corria, meus pés quase não tocando o chão. Eu sabia que não podia manter aquela velocidade por muito tempo, mas não precisava – só até chegar ao elevador. Passei por um carrinho de limpeza e, em um movimento rápido, empurrei-o para o meio do corredor, criando um obstáculo improvisado. Ouvi os seguranças praguejando enquanto desviavam.
Meus olhos encontraram a porta do elevador no final do corredor. Ela era minha única chance de escapar. Com um último esforço, dei um sprint¹ final, alcançando a porta do elevador enquanto ela começava a se fechar. Lancei-me para dentro, meus dedos tocando o painel de controle freneticamente.
Os seguranças estavam quase me alcançando quando as portas começaram a se fechar. Senti a pressão do tempo, cada segundo parecia uma eternidade com suas proximidades. Senti também, naquele instante, que aquela fração de segundos poderia custar meu relacionamento com Kevin. Então as portas se fecharam com um som satisfatório bem quando um deles esticou a mão para impedir seu fechamento, mas seu esforço foi em vão.
Recostei-me na parede do elevador, ofegante, mas aliviado.
𝓟𝓞𝓥 𝓛𝓔𝓣𝓘𝓒𝓘𝓐 👰:
Aquela igreja já costumava ser linda em dias normais. Pude reparar nisso nas várias vezes em que fui levada para lá, do jeitinho que vim ao mundo: contra minha vontade, a fim de ajudar nos ajustes do casamento. As paredes eram decoradas com intrincados vitrais que lançavam feixes de luz colorida no interior, criando um caleidoscópio de cores no chão. O teto abobadado, realçado com detalhes dourados, erguia-se em um arco gigante sobre as cabeças dos convidados.
O ambiente estava devidamente decorado com flores brancas e rosas, que pendiam nos corredores dos bancos como nuvens perfumadas.
Se eu ainda estivesse no clube de fotografias da escola, teria encontrado o paraíso naquela paróquia para marcar em meus registros. Ainda assim, eu me sentia deslocada naquele cenário de conto de fadas, uma intrusa em um sonho que não era meu.
Em meio ao nervosismo, minhas mãos estavam se remexendo em meu vestido de tonalidade verde-esmeralda. O tecido fluía suavemente ao redor das minhas pernas, e os detalhes em renda no decote e nas mangas longas adicionavam um ar de delicadeza que contrastava com meu humor pesado.
O momento que eu temia estava cada vez mais próximo. Olhei ao redor, me deparando com os convidados sentados nos bancos daquela igreja, preenchidos em sua maioria por desconhecidos. Eram poucos os rostos conhecidos, e o de Kevin não era um deles.
Meu melhor amigo me contou o que estava ocorrendo entre ele e Luan, e entre ele e Arthur. Kevin ainda estava confuso com o que fazer, qual decisão tomar. Dei o aval para ele fazer o que seu coração quisesse. Não precisava estar ali ao meu lado no casamento; o papel de Kevin nessa viagem já havia sido cumprido. Ele não precisava estar literalmente próximo de mim para me sentir reconfortada com seu apoio.
A marcha nupcial começou, e eu quase não consegui respirar nesse momento. Meu coração batia acelerado, cada nota da música do órgão de tubos soando como um martelar constante em meus ouvidos. Virei-me para ver meu pai de pé no altar, esperando ansioso. Ele estava incrível em seu smoking branco, mas era o sorriso em seu rosto que realmente me chamou a atenção. Era um sorriso que eu não via há muito tempo, um sorriso de pura felicidade.
Half my life's in books' written pages 🎶
(Metade da minha vida está escrita em páginas de livros)
Quando Alejandra entrou no salão, todos os olhos se voltaram para ela. Seu vestido era um espetáculo à parte, branco como a neve, com uma cauda longa que deslizava pelo chão. Já o havia visto anteriormente quando ela me mostrara, mas assim, toda maquiada, no dia de seu casamento, sua beleza se multiplicava exponencialmente. Porém, para mim, a verdadeira magia estava na maneira como meu pai a olhava. Ele parecia tão apaixonado, tão genuinamente feliz.
Reparei que Alejandra estava igualmente sorridente enquanto ia em direção a ele, seu pai a guiando com orgulho para o altar. Minha relutância começou a se dissolver. Ao ver o brilho nos olhos de meu pai, percebi que talvez Alejandra não fosse a intrusa que eu imaginava. Talvez ela trouxesse a alegria que ele merecia. Enquanto ela caminhava em direção ao altar, minha resistência desmoronou pouco a pouco, e um sentimento inesperado de aceitação começou a tomar seu lugar.
Então, antes que ela chegasse, meu pai olhou para mim, alguns metros ao seu lado. Era o momento dele. Ou melhor, deles. E, ainda assim, dedicou essa porção de segundos para me fitar e ver se estava tudo bem comigo. Sorri para ele, sentindo meus olhos marejarem. Ambos inclinamos a cabeça um para o outro em aprovação, e então ele se voltou para sua noiva e seu sogro.
Não sabia dizer se a criança que a cartomante mencionou se tratava mesmo de um filho deles. Não sabia se Alejandra estava de fato esperando um irmãozinho meu. Ainda assim, ele vindo ou não ao mundo, Alejandra agora fazia parte da minha família. E, droga, eu não tinha como odiá-la. Não podia mais falar mal da futura esposa de meu pai, pois, pelo bem ou pelo mal, eu tinha uma ótima madrasta.
𝓟𝓞𝓥 𝓐𝓡𝓣𝓗𝓤𝓡 🍺:
O som dos sinos vindos do topo da igreja fez os pássaros próximos voarem assustados. Minha prima distante, que mal conhecia, estava se casando, e eu não dava a mínima. O que me importava mesmo era com o garoto que eu estava esperando chegar.
Quem eu estava enganando? Sabia bem que Kevin não apareceria. Ainda assim, me apeguei à possibilidade de ele surgir por aquela porta, me banhando nessa doce ilusão.
Bom, se surgisse, eu definitivamente não estaria em um estado apresentável. Minha roupa social toda amassada e a quinta garrafa de vodka que eu levava à boca deixavam nítida minha apreensão naquele momento.
A sobriedade já estava me abandonando. Deixei a garrafa vazia junto das demais ao meu lado, sentado no parapeito da janela daquela torre alta. O acesso ao público era restrito, e eu tive que entrar de penetra pela escadaria lateral sem que ninguém me visse. Se ele fosse vir, Kevin encontraria o caminho até mim?
De toda forma não era só sobre ele minhas lamentações. Pelo contrário, talvez Kevin fosse justamente minha válvula de escape. Me apeguei a ele ao ponto de projetar em uma possível relação nossa algo que me fizesse escapar dos meus outros conflitos, como se nosso futuro namoro fosse me salvar das minhas angústias.
Briguei mais cedo com meu pai quando falei que não queria vir ao casamento. Na verdade, sempre discutíamos. Ele não dava margem para me escutar, mesmo que agora eu fosse maior de idade. Era autoritário, impositivo e durão. Tudo o que eu mais odiava em alguém.
Retirei de dentro da minha calça social a arma que eu portava. Com o cabo entre os dedos, a olhei de forma reflexiva. Por que eu me sentia mais poderoso carregando-a comigo? Nem eu sabia dizer. Só sei que meu pai era tão ruim comigo, que me sentia inferior a ele e a todos. Se eu mostrasse que carrego essa arma para quem me ameaçasse, como ele, tais pessoas passariam a me respeitar e a me temer, mesmo que fosse à força.
Meu olhar embaçado foi desviado para o céu cinzento à minha frente. Uma tempestade se aproximava.
Lived and learned from fools and from sages 🎶
(Vivi e aprendi dos tolos e dos sábios)
𝓟𝓞𝓥 𝓛𝓤𝓐𝓝 🚬:
Uma rajada de ar fresco me atingiu quando saí pela porta giratória do hotel. Não havia tempo a perder. Disparei pela ladeira íngreme, meus pés escorregando nos paralelepípedos molhados pela chuva de mais cedo. Não vi a previsão do tempo, mas com o céu daquele jeito, certamente não tardaria a "cair o mundo" novamente.
A descida era traiçoeira, e quase perdi o equilíbrio várias vezes, mas a emoção mantinha meus reflexos afiados. Precisava encontrar um meio de chegar ao casamento. Sequer sabia se os seguranças de Alejandra ainda estavam atrás de mim, entretanto nem me dei ao luxo de olhar para trás.
Ao longe, avistei uma carroça de madeira, carregando alguns sacos pretos, se preparando para partir. Pensei seriamente em me esgueirar para dentro escondido. Mas seria uma ideia estúpida, nada ali me garantiria que ela estava de fato indo para a igreja onde ocorreria o casamento.
— Con permiso — chamei a atenção do condutor de meia-idade surgindo à sua frente, arriscando o pouco de espanhol que eu conhecia. — ¿El señor no estaría yendo hacia la Parroquia de San Miguel Arcángel, verdad?
Seus olhos cinzentos como o céu se voltaram para mim, enquanto ajustava os arreios do cavalo. Sua cara de poucos amigos sinalizava que não estava disposto a me responder, tampouco a me fornecer uma carona.
A única coisa que aprendi com meus pais é que, em qualquer canto do mundo, o dinheiro prevalecia. Você conseguiria qualquer coisa que almejasse pelo preço certo. Então, retirei meu relógio de marca do pulso, estendendo-o ao condutor.
— Lléveme hasta allí.
Ele analisou o relógio por cima do ombro, nariz empinado enquanto ponderava sobre a proposta. Não era tão ignorante, sabia que aquilo valia bastante. Um dos poucos bens materiais que consegui levar da casa de meus pais antes de partir de lá.
— Sube — foi tudo o que ele respondeu em um tom seco, recebendo o relógio de bom grado sem se importar ou questionar o sangue marcado nele que vinha de minha mão machucada.
Imediatamente obedeci, me erguendo para a parte traseira da carroça. Ela começou a se mover, chacoalhando levemente enquanto seguia seu caminho.
O som das rodas de madeira nos paralelepípedos misturava-se com o burburinho da cidade que se aproximava. Enquanto ela seguia seu caminho, meus olhos foram desviados para os sacos pretos. Curioso, bisbilhotei um deles discretamente, percebendo que se tratavam de ternos de segunda mão. Aquele homem possivelmente era responsável pelo transporte das roupas da alfaiataria da cidade. Aquele terno preto que peguei era uma roupa muito mais apropriada para o local que eu estava indo do que meu conjunto de blusa moletom e calça jeans.
You know it's true 🎶
(Você sabe que é verdade)
𝓟𝓞𝓥 𝓚𝓔𝓥𝓘𝓝 🛹:
Nessa altura do campeonato, o casamento já deveria estar em vias de acabar. Mas eu não estava na igreja. Ao menos, não no local onde estava ocorrendo a celebração do matrimônio. Enquanto caminhava firme pelos ladrilhos, só me recordava das pétalas que arranquei durante toda aquela manhã, em um jogo de "bem-me-quer" e "mal-me-quer." Mas ao invés deles, era "Luan" ou "Arthur."
E, não sei se por um sinal do destino, as pétalas das flores sempre resultavam no nome de Arthur, independentemente de qual dos nomes eu decidisse começar. Era como se tudo apontasse para que eu desse uma chance para ele. Não parava de pensar nisso conforme subia, escondido da vista de todos, pela longa escadaria em espiral para a torre leste da paróquia, segurando firme o corrimão de madeira.
𝓟𝓞𝓥 𝓐𝓡𝓣𝓗𝓤𝓡 🍺:
A sala ao meu redor estava girando. Tudo à minha frente parecia apenas um borrão, e todas as garrafas que trouxera comigo para me embebedar naquela igreja estavam quase completamente vazias. A última estava pela metade, pendendo em minhas mãos.
Antes que pudesse levar o gargalo à boca para terminar de bebê-la de uma vez, o som da porta do alçapão da torre se abriu. Virei-me um tanto desorientado para ver quem havia descoberto que invadi a torre de uma igreja e estava profanando o local ao encher a cara ali.
Meu coração quase saltou do peito quando vi Kevin Drummond surgir à minha frente. Ele parecia um príncipe saído de um livro de contos de fadas com aquele smoking adorável.
— Kevin!
All the things come back to you 🎶
(Todas as coisas voltam para você)
Levantei-me do parapeito, entrei na torre e deixei a garrafa no beiral. Talvez tenha cambaleado um pouco, afinal, estava bêbado. Ainda assim, o sorriso ardente que dei para ele manifestava exatamente o que estava sentindo naquele momento. Eu definitivamente não imaginei que Kevin fosse aparecer de verdade.
𝓟𝓞𝓥 𝓛𝓤𝓐𝓝 🚬:
Próximo à entrada da igreja, saltei da carroça antes dela parar e corri o resto do percurso a pé, agradecendo ao condutor ao acenar para trás. Acho que ele murmurou algo por eu estar usando um terno e calça social que roubei da sua carroça, mas não fiquei lá para ouvir suas lamentações. Se fosse para ouvir reclamações, ah, meu amigo, meu relógio valia muito mais do que essa carona e esse ternozinho que ficou largo em mim; as mangas dele eram bem mais largas que meu corpo!
Mas eu não tinha tempo a perder. Não sabia por que estava tão apressado, ainda assim, sentia que precisava encontrar Kevin o mais rápido possível. Algo lá no fundo dizia que eu poderia perdê-lo se não o fizesse. Talvez até já o tivesse perdido de vez...
Abri as imensas portas de maçaneta dupla da igreja exasperado causando um grande rangido no local, no exato momento em que o padre perguntava "Se alguém tem algo contra esse casamento, fale agora ou cale-se para sempre."
Sing with me, sing for the year 🎶
(Cante comigo, cante pelo ano)
Sing for the laughter and sing for the tear 🎶
(Cante pelo riso e cante pelas lágrimas)
Eu estava ofegante, recebendo olhares de todas aquelas pessoas por ter interrompido o casamento. Mas nenhum daqueles pares de olhos me interessava. Os únicos olhos que eu buscava eram os do garoto de olhos caramelos.
Minha visão capturou Letícia no altar, próxima de seu pai e de sua madrasta. "Kevin não estava lá." Pude captar a mensagem não verbal dela referente a ausência dele. Sem me desculpar, bati em retirada e me lancei a correr dali.
Eu precisava encontrá-lo. Precisava achá-lo e deixar claro o quanto o amava e o quão idiota fui. Não podia nem queria mais cometer erros. O medo de perdê-lo se apoderava de mim. Depois de tanto tempo, minha ansiedade voltando com força e minhas lágrimas começando a rolar dos meus olhos sem que eu entendesse meus próprios sentimentos de medo. Corri sem saber por onde procurar. Não fazia ideia de onde ele estava.
𝓟𝓞𝓥 𝓚𝓔𝓥𝓘𝓝 🛹:
Arthur estava claramente fora de si. Até mesmo quando mencionou meu nome, percebi sua língua se enrolar para pronunciá-lo. Sua postura me surpreendia, considerando que ainda conseguisse se manter de pé, e as garrafas no parapeito da janela sem grade daquela torre deixavam claro que ele estava afogando as mágoas na bebida.
Dei alguns passos em sua direção, meu olhar permanecia decidido desde o momento que apareci por lá.
— Estou muito feliz que tenha vindo.
— Arthur, deixa eu falar...
— Você fez a escolha certa, Kevin! — Quando Arthur tocou meu braço e se aproximou para me beijar, senti o hálito da bebida vindo de sua boca. Recuei, causando estranhamento nele. — Sei que bebi um pouco mais do que deveria, mas não precisa se assustar. Hic — ele deu um soluço em meio sua fala.
— Não é isso, Arthur. Eu vim apenas para dizer que ainda amo o Luan e vou lutar para que possamos superar o que está ocorrendo entre nós.
— Mas...
— Deixa eu terminar, por favor — Prossegui, mantendo minha decisão firme. — Sinto muito que tenha deixado as coisas chegarem a esse ponto, mas não sinto por você o mesmo que você sente por mim. Mesmo se eu e Luan nunca mais voltarmos, não poderia ficar com você após tudo o que aconteceu entre nós. Foi errado não ter falado para o Luan sobre suas investidas. Hoje me arrependo amargamente disso.
Fiz uma pausa, encarando-o. Vi Arthur engolir em seco, incapaz de pronunciar qualquer palavra.
— Esse é o fim, Arthur. Não quero você como parceiro amoroso, nem hoje nem nunca. Desculpe por ter dado margem a isso. A partir de agora, vou seguir meu coração e não meus impulsos. Espero que isso te liberte e que você possa ser feliz, porque você merece.
Esperei por algum tempo, mas ele não disse nada. Desolado, Arthur virou as costas para mim e retornou ao parapeito da janela, sentando-se e olhando para o exterior. Pegou a garrafa que havia depositado no local e em um só gole entornou toda a bebida pela sua garganta.
Da mesma forma, dei as costas e caminhei de volta para a escadaria abaixo do alçapão da torre. Querer resolver o problema de todos, não magoar ninguém com minha decisão e tentar reconfortá-lo seria puramente egoísta da minha parte. Hoje eu entendia que precisava deixar ir, não dizer mais nada. O tempo cuidaria do resto, e eu fiz o que pude. Arthur estava com problemas, mas não estava em meu poder fazer mais nada. Como Luan me disse uma vez, não podemos salvar ninguém — é algo que partiria dele, não de mim. Agora, como ele seguiria sua vida, era com ele.
Maybe tomorrow the good Lord will take you away 🎶
(Talvez amanhã o bom Senhor te leve embora)
𝓟𝓞𝓥 𝓛𝓤𝓐𝓝 🚬:
O som das trovoadas acompanhadas dos relâmpagos no céu cada vez mais cinza sinalizavam que a chuva estava a caminho. Corri pelos arredores da igreja, buscando por Kevin em todo lugar. Precisava encontrá-lo... Mas, quando conseguisse, como fazê-lo acreditar que desta vez eu estava realmente disposto a mudar?
Em meio à correria, quase derrapei no chão escorregadio, recuperando o equilíbrio no último segundo ao avistar um vulto e olhar para trás. Kevin emergia de um canto externo da igreja, acabando de descer uma escadaria estreita. Seus olhos saltaram tão surpresos quanto os meus por nos encontrarmos ali. As paredes de pedra quase se tocavam naquele corredor externo da igreja, formando uma passagem claustrofóbica, mas isso não importava agora. Kevin estava ali, e eu precisava chegar até ele.
— Olá...
— Luan? O que está fazendo aqui? Achei que não fosse vir — Ele comentou meio sem jeito. Sua expressão logo mudou para uma intensa preocupação ao olhar para baixo. — O que caralhos aconteceu com sua mão?!
Voltei minha atenção para meu próprio punho. Toda a adrenalina me fez esquecer até mesmo da dor, mas a situação estava feia para minha mão. Estava quase em carne viva algumas partes das articulações dos meus dedos pelo corte do vidro de outrora, e o sangue continuava a escorrer.
— Não foi nada. — Balancei os ombros, voltando meus olhos verdes para ele. Kevin estava charmoso com aquele smoking, e a gravata borboleta em seu pescoço o fazia parecer a pessoa mais fofa do mundo naquele momento.
— Como assim "não foi nada"?! Precisamos cuidar desse ferimento! Não se envolveu em outra briga, não é? — Apesar de tudo o que aconteceu da última vez, Kevin estava completamente preocupado comigo, erguendo cuidadosamente meu pulso direito para avaliar meu ferimento.
Foi nesse instante que pudemos ouvir o som da chuva caindo intensamente atrás de nós. Os pingos grossos caíam com voracidade, desencadeando toda a água acumulada nas nuvens cumulonimbus durante toda a tarde. A princípio, estávamos protegidos da chuva naquele corredor coberto, mas alguns pingos conseguiam nos atingir pelas laterais.
Também conseguíamos ouvir vozes altas vindo um pouco mais distante. Eram gritos de alegria, indicando que o casal felizardo estavam finalmente casados, e deixavam a igreja sob a chuva naquele momento.
O som daquelas pessoas festejando, mesmo sob aquela chuva torrencial, e os olhos preocupados de meu amado com meu ferimento me deram a certeza do que eu faria em seguida.
Agarrei Kevin pela cintura com minha mão livre e o puxei para perto de mim bruscamente, lançando ambos em direção à chuva, longe da cobertura daquele corredor.
Kevin me olhava embasbacado enquanto rodopiávamos sob o céu aberto, nossos corpos se encharcando e nossos cabelos colando em nossas testas. O frio da chuva era quase um choque, mas minha mente estava focada em uma única coisa.
Sing with me, sing for the year 🎶
(Cante comigo, cante pelo ano)
Sing for the laughter and sing for the tear 🎶
(Cante pelo riso e cante pelas lágrimas)
Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa ou tentar se afastar, segurei seu rosto entre minhas mãos gélidas, nossos olhos se encontrando em um momento de pura conexão. Sem pensar duas vezes, inclinei-me para frente e pressionei meus lábios nos dele.
𝓟𝓞𝓥 𝓚𝓔𝓥𝓘𝓝 🛹:
Sem mais nem menos, Luan me beijou sob a chuva! Seus lábios doces e avermelhados encontraram os meus em um beijo ardente roubado por ele, que eu prontamente correspondi. Perdi todos os sentidos e abaixei minhas guardas completamente ao tê-lo de volta.
Sing with me, if it's just for today 🎶
(Cante comigo, mesmo se for apenas por hoje)
A chuva criava uma cortina ao nosso redor, o que me recordou do nosso primeiro beijo, do lado de fora do sarau de poesias, que também ocorreu durante uma tempestade. Mas desta vez, nenhum de nós fugiu quando nossas bocas se separaram.
— Luan, você me beijou na frente de todo mundo — constatei preocupado, olhando para trás, onde uma parcela das pessoas que saíam do casório sob a proteção de guarda-chuvas nos encaravam perplexas.
— Que se danem — Luan olhou de volta para eles, sorridente. Ao avistar a tia homofóbica de Alejandra, ele lhe estendeu o dedo do meio, ao que ela respondeu recuando para trás em uma clara cena dramática, como se tivesse sido atingida por uma bala perdida, sendo amparada por duas mulheres. — Sou bissexual, porra!
Observei Letícia nos olhando de longe, ao lado de seu pai e sua madrasta. A loira sorriu para mim amigavelmente antes de acompanhar de forma animada o recém casal em direção à limusine que os aguardava na rua.
— Eu sinto muito por tudo, Kevin — Luan se voltou para mim, assim que deixamos de ser o centro das atenções.
— Eu quem tenho que me desculpar, Luan. Por tantas coisas. Há coisas que não te disse, e deveria ter dito. Também não soube respeitar seus medos em se assumir. Esta é a segunda vez que escolho terminar ao invés de lutar por nós...
— Pare de se culpar — Mesmo com a seriedade em sua voz, não pude deixar de me derreter por vê-lo tão bonito com o cabelo molhado pela chuva, especialmente usando aquele terno. — Ambos falhamos como namorados, mas fui pior. Falhei como ser humano ao menosprezar quem sou apenas para ser aceito. Tenho medo do mundo, Kevin. Mas tenho ainda mais medo de viver em um mundo sem amor, um onde não possa te amar da forma que merece em qualquer lugar, não apenas sobre quatro paredes.
— Não vamos desistir um do outro novamente — Não sabia se era uma afirmação minha ou um pedido, mas abracei-o com firmeza para mostrar que não deixaria nossas opiniões divergentes nos separarem de novo.
Dream on, dream on, dream on 🎶
(Sonhe, sonhe, sonhe)
Dream until your dreams come true 🎶
(Sonhe até que seus sonhos se tornem realidade)
Enquanto estava abraçado a ele, vi Arthur passar pelo corredor em direção à chuva. Sua expressão era de completa derrota, e sua embriaguez era evidente a quilômetros de distância. Arthur sequer foi capaz de nos encarar diretamente, passando por nós cambaleando sob a chuva.
— O que ele está fazendo...?!
— Vou te explicar tudo depois, Luan. Prometo. Mas não se preocupe agora — sussurrei, impedindo Luan de fazer algo que pudesse estragar o momento. O melhor era deixar Arthur ir. — Por que está com este terno folgado? — num tom brincalhão, tentei mudar de assunto enquanto Arthur se afastava.
— Se eu te contar que fugi de seguranças em um hotel, vim até aqui de carroça e ainda roubei este terno, você acreditaria?
— Nem fodendo! — ambos rimos enquanto a chuva continuava a nos envolver, ignorando o fato de que provavelmente ficaríamos resfriados no dia seguinte.
𝓟𝓞𝓥 𝓐𝓡𝓣𝓗𝓤𝓡 🍺:
Cambaleava em direção à saída da Paróquia, a garrafa vazia na mão e minha mente em um turbilhão de pensamentos confusos. Cada passo que eu dava parecia mais pesado, como se o chão estivesse tentando me puxar para baixo. Minha mente, por outro lado, me arrastava para um buraco negro; tudo havia dado errado, e a pessoa em quem depositei minha esperança de conforto estava com outro agora. Meus problemas se amontoavam em minha cabeça – meu pai, minha futura faculdade, minha falta de confiança, a vida amorosa.
Quando olhei para trás, vi Kevin e Luan rindo juntos no meio da chuva. A imagem deles, tão felizes, me atingiu como um soco no estômago. Parecia que estavam zombando de mim, rindo da minha miséria. Meu cérebro embotado pelo álcool não conseguia processar a verdade. Tudo o que sentia era raiva e humilhação.
A garrafa escorregou dos meus dedos trêmulos e se quebrou no chão. Tudo parecia um borrão, mas a dor no peito era clara como cristal. Naquele momento, eu me senti mais perdido do que nunca.
Quando dei por mim, minha mão já estava apontando a arma na direção deles. Quando a peguei? Não me recordava. Tampouco sabia por que havia feito isso. Parecia que eu era outra pessoa dentro do corpo de um estranho, apenas assistindo tudo se desdobrar de camarote, sem controle sobre meus atos, sem ter como me impedir.
Dream on, dream on, dream on, dream on 🎶
(Sonhe, sonhe, sonhe, sonhe)
Dream on, dream on, dream on 🎶
(Sonhe, sonhe, sonhe)
Aaah 🎶
(Aaah)
𝓟𝓞𝓥 𝓚𝓔𝓥𝓘𝓝 🛹:
Em meio à chuva e às gargalhadas, observei que Arthur estava parado atrás de Luan, nos encarando há algum tempo. A chuva estava tão forte que demorei para perceber o que ele estava apontando em nossa direção. Quando finalmente entendi do que se tratava, já era tarde demais...
O estampido do disparo foi tão rápido quanto o relâmpago que iluminou o céu naquele momento. E mesmo sendo veloz, mesmo que aquele projétil fosse tão pequeno, aquela arma de fogo causou um estrago avassalador quando foi direcionada para Luan e o atingiu.
Em questão de segundos, Luan estava estirado no chão, a chuva servindo de cobertor para seu corpo imóvel e ensanguentado após ser baleado. Em êxtase, desviei o olhar para trás. Arthur deixou a arma cair no chão e estava trêmulo com seu ato, parecendo que a ficha finalmente havia caído do que acabara de cometer.
Os convidados do casamento gritavam em pânico, enquanto outros corriam em nossa direção para ajudar. E eu? Eu estava estático. Não conseguia me mover, não conseguia assimilar. Diante do meu mal súbito e do meu choque, recusava-me a processar a informação de que Luan estava...!
Maybe tomorrow the good Lord will take you away 🎶
(Talvez amanhã o bom Senhor te leve embora)
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❝GLOSSÁRIO❞
¹ Sprint → é um termo em inglês que significa corrida rápida de curta distância.
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