44. San Miguel de Allende
O ronco dos motores e a leve pressão estavam me deixando nervoso. Era meu primeiro voo, e meu medo de altura se mostrava irredutível, especialmente com a turbulência inicial. Ao meu lado, por sua vez, Luan olhava calmamente pela janela.
Enquanto ele contemplava o céu azulado acima das nuvens, eu refletia sobre a ironia da situação: meu relacionamento estava tão turbulento quanto aquele voo. Desde que mencionei a possibilidade de mudar de cidade para cursar a faculdade dos meus sonhos, nossa relação se complicou nos meses que perduraram. Essa instabilidade entre nós permaneceu-se intransponível como uma parede rochosa; impossível de ser escalada ou ignorada.
Outra ironia do destino foi me recordar que em uma de nossas primeiras conversas um dos assuntos que tivemos foi sobre música quando ele passou a tocar AC/DC naquele carro velho, algo que nos uniu no início e agora parecia nos afastar. Afinal Luan usava fones de ouvido enquanto o avião cruzava o céu, impossibilitando qualquer tentativa de diálogo.
Quando a turbulência começou a diminuir e a calmaria passou a tomar conta de mim, inclinei minha cabeça sob o banco. Letícia estava algumas fileiras atrás de nós, fingindo costume enquanto puxava assunto com uma senhora ao seu lado. Embora parecesse relaxada, sabia bem que ela estava igualmente agitada por dentro, uma vez que estávamos indo justamente para o casamento de seu pai no México! James, que deveria vir junto para lhe dar apoio, não conseguiu ter o visto aprovado a tempo, por isso Luan veio em seu lugar.
Em contrapartida, James havia recém conquistado a custódia de sua casa e da oficina após uma batalha judicial contra o pai, que permanecia preso. Essa vitória trouxe algum consolo por não ter podido vir conosco, uma vez que agora ele era dono legitimo dessas propriedades por tudo o que passou nas mãos de seu genitor.
Durante o voo, cogitei várias vezes puxar assunto com Luan, mas ele se mostrava pouco receptivo. Passei a viagem toda lidando sozinho com minha frustração de não podermos agir como antes e com meu medo de altura.
✈️
Horas depois, finalmente desembarcamos no aeroporto internacional de Guanajuato. Não era lá onde ocorreria o casamento, mas era o aeroporto mais próximo de San Miguel de Allende, essa sim cidade onde aconteceria o casamento do pai de Letícia com sua futura madrasta em alguns dias. Iriamos até lá de carro a partir dali.
Nós três nos dirigimos às esteiras de bagagens para reavermos nossos pertences. Para minha surpresa, Luan pegou não apenas sua mala, mas a minha também, estendendo-a para mim.
— Obrigado — sorri, admirando seu cavalheirismo. Pela primeira vez em dias, meu namorado retribuiu o sorriso; discreto, sem mostrar os dentes, mas ainda assim um sorriso.
— Não por isso.
— Você está tão lindo com essa roupa hoje — comentei, aproveitando a leveza que se instaurava entre nós. De fato, Luan estava fabuloso com aquela camisa social de linho azul e os shorts verde musgo.
— E você está lindo sempre.
— Vocês gays... — a loira de óculos escuros murmurou, enquanto puxava sua mala rosa de rodinhas pelo aeroporto.
Íamos logo atrás dela, rindo de suas lamentações.
— Luan, eu estava com tanta... — comecei a dizer sobre a falta que ele me fazia, quando um grito feminino preencheu os corredores do aeroporto cortando minha fala.
A mulher que atravessou o saguão do aeroporto com os braços erguidos e uma animação ardente em um sorriso que curvava seus lábios lembrava muito a atriz Sophia Vergara, mas com um toque único: seus cabelos levemente ruivos dos quais conferiam-lhe uma aura distinta e sofisticada. Quando Alejandra surgiu, era impossível não se notar sua presença. Seu porte exalava uma elegância natural que combinava perfeitamente com sua postura confiante.
Vestia um elegante vestido de seda creme, que parecia feito sob medida para abraçar suas curvas impecáveis. Óculos escuros de marca escondiam parcialmente seus olhos expressivos, mas não podiam ocultar seu magnetismo. Joias discretas, porém evidentemente caras, brilhavam sutilmente a cada movimento. Um colar delicado descansava em seu pescoço, e pequenos brincos reluzentes adicionavam um toque de glamour sem exagero. Parecia uma figura saída de uma revista de modas.
Bem que Lêh comentou que ela era uma socialite acostumada ao luxo. Mas, diferente do que pensei, não parecia acompanhar a arrogância que muitas vezes vinha junto de tal status.
— ¡Mi querida Letícia! Yo y tu padre estábamos tan preocupados si todo había salido bien con el vuelo — Alejandra ergueu seus óculos até a testa, seus olhos azulados faiscando conforme abraçava minha melhor amiga. Seu espanhol e sotaque deixavam claro que era uma mexicana nativa.
— El vuelo fue tranquilo, Alejandra. Me alegra mucho que hayas venido a recibirnos — Lêh retribuiu o abraço caloroso da mais velha, com uma falsidade de nota de três reais. Algo que não dava para ser relevado era o fato do espanhol e o sotaque de Letícia beirar a perfeição.
Ao lado delas, seu Júlio se encontrava postado pacientemente. Conhecia o enfermeiro de longas datas, por isso ele acenou para mim em saudação por trás das duas. Seus cabelos castanhos eram uma prova clara de que Letícia não herdara o loiro dos cabelos de nenhum dos seus pais, por mais que ela sempre negasse que a cor de seu cabelo fosse oriunda de tintura.
— Ustedes deben ser los amigos de Letícia. Muchas gracias por venir a nuestra boda — Assim que as duas se soltaram, e Lêh foi abraçar seu pai, Alejandra se voltou para mim e Luan. Não sabia ao certo o que era "Boda", mas presumi que se referia a casamento.
Luan e eu acenamos timidamente em resposta. Alejandra parecia uma simpatia em pessoa. Não entendia por que Letícia tinha tanto cisma dela.
Pude perceber Lêh, bem discretamente, tentando se comunicar com seu pai através do olhar, como se dissesse: "preferia mil vezes passar as férias fazendo reforço na escola do que vir ao seu casamento." Seu pedido de socorro foi ignorado quando Alejandra se reaproximou, passando o braço pelo ombro da mais nova e caminhando juntas em direção à saída do aeroporto.
— Ahora ven aquí, querida. Faltan pocos días para el matrimonio, y necesito tu ayuda en la elección de las flores, los dulces de la fiesta, y también quiero tu opinión sobre mi vestido — A mexicana falava animadamente, pegando a mala de rodinhas da mão de Letícia e levando consigo seus pertences. De longe, vi Letícia forçar um sorriso enquanto era "sequestrada" por sua madrasta.
Assim que as duas tomaram distância, o pai de Lêh se aproximou de mim, apertando minha mão em um cumprimento.
— Kevin, obrigado por ter vindo. Não sabe o quanto sua presença é importante para acalmar os ânimos de Letícia.
Em seguida, se voltou ao meu namorado.
— Perdão, você que é o namorado da minha filha? — questionou, estendendo a mão dessa vez para Luan.
— Não, seu Júlio — interrompi, rindo da confusão dele. — O James não pôde vir. Este é o Luan, o meu na...
— Sou amigo do Kevin e da Letícia. Prazer em conhecê-lo — Luan me interrompeu, retribuindo o aperto de mãos.
Amigo?!
— Igualmente — disse seu Júlio, se mostrando preocupado, enquanto olhava para nós após o soltar. — Posso pedir um favor a vocês?
— Claro.
— Se for possível, podem tentar conversar com Letícia? Minha filha é forte, e sei que está tentando transparecer que está tudo bem com o casamento, mas, no fundo, está escondendo o que realmente sente. É compreensível que não queira que eu me case, afinal, eu e sua mãe nos divorciamos há somente pouco mais de um ano. Mas ela precisa entender que eu amo a Alejandra. É uma mulher maravilhosa, e ela gosta de verdade da Letícia. Posso contar com vocês?
— Pode sim, seu Júlio. Falaremos com ela — dei um sorriso reconfortante, acalmando o homem de meia-idade diante de mim.
Seu Júlio era um homem bondoso e simpático. Merecia ser feliz com quem escolheu amar. Ele apertou novamente minhas mãos, acenou com a cabeça para Luan e então apressou o passo em direção às duas mulheres de sua vida.
Olhei para Luan, esperando uma justificativa pelo fato de ele ter me apresentado apenas como seu "amigo", justo quando eu estava prestes a revelar que éramos namorados. Ele apenas me encarou de volta, com pontos de interrogação estampados em seu rosto, sem entender a frustração em meu olhar.
🇲🇽
Aquela mulher definitivamente era rica! Além de ter seu próprio motorista, um de seus carros era um Cadillac Escalade vermelho lançado naquele mesmo ano, sendo conduzido pelo seu motorista em direção ao sítio onde ficaríamos até o dia do casamento. Fiquei chocado quando ela mencionou, numa conversa casual, que esse carro era apenas um dos cinco que possuía.
— Podem nos deixar aqui. Quero dar uma volta no centro comercial de San Miguel de Allende — disse Letícia, fingindo empolgação ao avistar o comércio através da janela quando chegamos na cidade. No entanto, para mim estava claro que era apenas uma desculpa esfarrapada para escapar; ela não suportaria ficar tanto tempo no mesmo veículo que sua madrasta.
— Tem certeza, Letícia? Não vão se perder? — Seu Júlio olhou preocupado para a filha.
Ah, seu Júlio. Se ela tivesse a chance de se perder, tenho certeza que não seria uma preocupação para sua filha, mas sim uma benção.
— Pai, hoje em dia existe algo chamado Google Maps. Sei que na sua época usavam cartas náuticas e observavam as estrelas para não se perder, mas na minha geração temos a tecnologia a nosso favor.
— Escuta aqui, garota...
— Deja que ellos disfruten de la ciudad, querido. Es la primera vez que ella viene aquí — interrompeu Alejandra, um sorriso amigável desenhado nos lábios.
Letícia nem se deu ao trabalho de agradecer. Abriu a porta ao seu lado assim que o motorista parou e desceu do veículo.
— Vamos lá, Luan — chamei, embora meu namorado parecesse não ter intenção de se levantar.
— Tô de boa aqui. Depois ter que voltar de transporte público? Passo...
— Vem logo, sua mula — Letícia me empurrou de lado e então puxou o braço de Luan, forçando-o a sair do carro, enquanto dava uma risada forçada para sua madrasta.
À medida que aproximávamos do centro comercial de San Miguel de Allende, fomos recebidos por uma atmosfera vibrante e pitoresca que capturava a essência cultural do México. O sol do meio da tarde lançava uma luz dourada sobre as ruas de paralelepípedos e as fachadas coloridas dos edifícios históricos.
O centro comercial estava repleto de lojas pequenas e encantadoras, cada uma exibindo artesanatos locais, roupas tradicionais mexicanas e produtos feitos à mão. Barracas coloridas alinhavam as calçadas, oferecendo desde alimentos típicos como tacos e churros até artesanatos elaborados como cerâmicas pintadas à mão e joias de prata reluzentes.
Conforme caminhávamos, passávamos por um fluxo constante de mexicanos, alguns carregando sacolas de compras, outros conversando animadamente em espanhol enquanto apreciavam o passeio. Música mariachi reverberava ao fundo, adicionando um toque extra festivo ao ambiente já animado.
Os edifícios ao redor exibiam uma arquitetura colonial espanhola bem preservada, com varandas de ferro forjado exibidas com flores coloridas e paredes caiadas de branco que contrastavam com as cores vivas das buganvílias que se espalhavam pelos jardins e sacadas.
Enquanto nos aproximávamos da praça principal, podíamos ver uma fonte ornamentada cercada por bancos de pedra, onde os moradores locais e turistas descansavam e apreciavam o cenário pitoresco ao seu redor.
Lêh parecia um pouco mais relaxada longe da presença constante de sua madrasta, enquanto Luan, ainda um pouco relutante, começava a se interessar pelos produtos expostos nas barracas pelas calçadas. Era minha primeira vez longe do Brasil, e eu estava adorando aquele clima deleitoso.
— Esta cidade é realmente bonita — iniciei a conversa com a loira ao meu lado, aproveitando o momento em que ficamos sozinhos, já que Luan estava mais à frente.
— Sim, é verdade — respondeu Letícia, desta vez com pouco interesse em sua voz e olhar. — Esta cidade é conhecida pela sua arquitetura colonial e suas praças.
A enciclopédia ambulante ao meu lado estava certa. Os prédios ao redor estavam pintados com cores vibrantes como amarelo, vermelho e azul, criando um cenário visualmente deslumbrante.
— Qual é o problema com a Alejandra, Lêh? — finalmente perguntei, parando no meio do caminho entre algumas barracas locais.
— Meu pai pediu para você falar comigo, não é? — retrucou de volta. Meu rosto canalizava a resposta silenciosa para sua pergunta.
— Independentemente disso. Não acho que ela seja má pessoa, nem parece alguém falsa. Só queria entender por que você está tão hesitante quanto ao casamento.
O olhar trêmulo de Letícia me fez insistir ainda mais nas minhas indagações:
— Sua mãe começou a namorar aquele bombeiro gostosão. Com ele você não tem tantas implicações.
— Há um ano e meio, quem diria que o "heterossexual" Kevin Drummond estaria chamando outro cara de "gostosão"? — ela brincou comigo, rindo enquanto caminhávamos lentamente.
— Nem você deveria acreditar que eu era hétero mesmo.
— Pior é que eu acreditava — Letícia deu de ombros enquanto passávamos por mais barracas na praça. Luan estava tão à frente que quase o perdíamos de vista. — Estou com medo, Kevin.
— Medo do quê?
— Do papai se magoar com ela. De que ela parta o seu coração. Ele ficou muito mal quando terminou com minha mãe. Não quero que nenhum dos meus pais se machuque novamente.
Olhei para a loira caminhando ao meu lado, cabisbaixa, observando seus próprios passos pelos ladrilhos da calçada. Era raro vê-la ter uma conversa tão séria.
— Isso é com ele, Lêh. Não podemos evitar nos apaixonar com medo de nos machucarmos. Às vezes vale a pena viver um amor, mesmo que haja o risco de ter o coração partido no futuro, do que se fechar para novos relacionamentos e nunca mais experimentar essa sensação de aquecimento no peito.
— Talvez você esteja certo — ela murmurou baixinho. Eu sabia que Letícia entendia bem a intensidade de um amor novo e a paixão que vinha junto. Era visível em seu olhar sempre que ela estava com James. — Mas também tenho medo de que ele não me dê mais atenção depois de se casar. E se eles tiverem um filho, Kevin? Meu pai daria mais atenção ao novo filho do que a mim. Ele já me disse que vai se mudar para cá após o casamento. Já vou vê-lo apenas duas ou três vezes por ano...
— Lêh, você está com ciúmes de uma criança que nem nasceu e nem sabe se virá ao mundo? — sorri. — Deixe disso, boba. Você acabou de completar dezoito anos e no próximo ano estará na faculdade. Se seu Júlio e sua madrasta quiserem ter um filho, deixe-os terem e que sigam com suas vidas. O fato de seu pai se casar e se mudar, e sua vida adulta começar agora, não vai diminuir o amor que ele sente por você. Você sabe que seu pai te ama e sempre vai te amar.
Notei uma leve surpresa em seu rosto quando entrelacei nossas mãos. De mãos dadas, nos olhamos, sorrindo confidentes um para o outro.
— Dê uma chance à Alejandra. Faça isso pelo seu pai, Lêh.
— Eu odeio quando você joga os fatos na minha cara — Letícia riu, enquanto usava sua mão livre para secar as lágrimas que começavam a surgir em seus olhos.
Enquanto caminhávamos pelas ruas movimentadas de San Miguel de Allende, meu olhar foi atraído por uma barraca colorida e ornamentada com tecidos e lanternas penduradas. Sobre a mesa, uma senhora de idade avançada estava sentada, com longos cabelos grisalhos presos em um coque desalinhado. Ela usava um vestido estampado e pulseiras de contas coloridas em ambos os pulsos. Seu rosto enrugado exibia um sorriso acolhedor e um olhar que parecia penetrar na alma das pessoas.
— Lêh, vem comigo. Vamos ver o que essa cartomante tem para nos dizer — convidei, apontando discretamente para a barraca.
Eu era meio cético em relação a essas coisas, embora soubesse que Letícia acreditava piamente nelas. Se isso a ajudasse a se acalmar sobre o que o futuro reservava, não via mal em fingir acreditar também.
Nos aproximamos da cartomante, ao ponto que perguntei timidamente:
— Boa tarde. Você poderia ler as cartas para minha amiga aqui?
A cartomante nos recebeu com um aceno gentil, seus olhos experientes analisando Letícia por um momento antes de começar a embaralhar as cartas com movimentos precisos. Ela as colocou sobre a mesa e começou a virá-las uma por uma, estudando cada uma com atenção. Um tanto inquieta, Letícia se sentou na cadeira à sua frente.
— Veo aquí un futuro brillante para ti, joven — murmurou a cartomante, sua voz suave carregada de mistério. — Las cartas revelan que un niño está en camino en tu futuro. Esto te traerá gran alegría.
Letícia arregalou os olhos, surpresa e emocionada com o que acabara de ouvir. Eu olhei para ela, tentando captar sua reação.
— Um filho? — Olhei para ela confuso. — Você vai engravidar do James?
— Não seja idiota, Kevin. Não é um filho meu. Deve ser do meu pai. Vou ter um irmãozinho ou uma irmãzinha — Letícia abriu um largo sorriso. O receio que ela tinha há pouco, de ter um irmão e ter que dividir a atenção do pai, dissipou-se rapidamente com a possibilidade se tornando realidade. Ela estava feliz com a notícia, uma empolgação que me deixou igualmente satisfeito.
Conforme nos recuperávamos da surpresa inicial da leitura de Letícia, ela olhou para mim com um sorriso travesso nos lábios.
— Agora é sua vez, Kevin. Deixe a cartomante ler o seu futuro.
Eu hesitei por um momento, não muito certo sobre o que esperar, mas acabei cedendo à curiosidade. Troquei de lugar com Letícia e me sentei na cadeira, enquanto Luan se aproximava lentamente, curioso para ver o que estávamos fazendo.
A cartomante começou a embaralhar as cartas com uma expressão concentrada, murmurando palavras em espanhol enquanto se concentrava no que as cartas revelariam. Ela colocou as cartas sobre a mesa e começou a virá-las uma por uma, mais uma vez analisando-as.
— Veo en las cartas que pronto enfrentarás una decisión importante, joven Kevin — disse a cartomante, sua voz calma e profunda ecoando pela barraca. — Tu corazón estará dividido y tendrás que elegir entre dos alternativas.
Eu olhei para ela, perdido em suas palavras. A ideia de ter que fazer uma escolha importante mexeu comigo, e eu me perguntei o que isso poderia significar para o meu futuro.
— Vai lá, Luan. Deixa ela ler o seu futuro também — provoquei, um sorriso brincando em meus lábios enquanto Luan me lançava um olhar de reprovação.
— Ah, não, cara. Você sabe que eu não acredito nessas coisas. Isso é só charlatanismo — respondeu Luan, balançando a cabeça com descrença.
Talvez fosse justamente por sua negação, ou simplesmente a dificuldade de nos entender por falarmos outro idioma, mas a cartomante começou seu ritual habitual, embaralhando as cartas com um ar de concentração profunda mesmo com a relutância dele. O silêncio pairava sobre nós enquanto ela virava as cartas uma a uma, olhando para cada uma delas com intensidade.
Então, uma expressão de choque cruzou o rosto da cartomante. Seus olhos se arregalaram por um breve momento, antes de voltar a focar nas cartas em suas mãos. O silêncio prolongado que se seguiu deixou um nó de preocupação se formando em meu estômago e um olhar inquisitivo de Letícia ao meu lado.
— O que está acontecendo? O que as cartas dizem? — perguntei, ansioso por alguma resposta que explicasse a reação da cartomante.
Ela permaneceu em silêncio por mais alguns segundos, como se estivesse avaliando o que dizer a seguir. Finalmente, ela ergueu os olhos para Luan, com uma seriedade que enviou um arrepio pela minha espinha.
— Una sombra de muerte se cierne sobre este joven. Debe tener mucho cuidado, pues su vida está en peligro.
Letícia e eu arregalamos os olhos. Lêh, até mais do que eu, afinal ela acreditava cegamente na leitura da cartomante.
— Quanta baboseira — Luan nos deu as costas, saindo andando sem levar a sério sua leitura do futuro. Seu mau humor seguia-se perpetuamente.
— Kevin, você tem que ficar de olho no Luan. Isso é sério! — Lêh olhou em minha direção preocupada, enquanto abria sua pochete para pegar sua carteira com pesos mexicanos para pagar a cartomante. — Afinal, o que houve entre vocês dois?
Letícia percebeu que o clima entre nós estava estranho há tempos. Não havia comentado com ela até então sobre minhas diferenças recentes com ele.
🌵🌮🎺🏰
Diferente do que dissemos ao seu pai, conseguimos a proeza de nos perdermos para acharmos o caminho para o sítio de sua madrasta. As vias da cidade eram estreitas e sinuosas, ladeadas por casas coloridas com fachadas coloniais, capazes de confundir qualquer um.
Porém, não tardou para encontrarmos o caminho para aquele sítio estupendo. O portão de ferro forjado se abriu, revelando várias árvores floridas na entrada. A grama do percurso — onde ao fundo havia uma imensa casa em estilo colonial, pintada em tons de terracota, era pisada por nós enquanto adentrávamos.
Ao passar pelo jardim do sítio, notei uma piscina azul gigantesca que cintilava sob o sol. Confesso que, naquele calor, estava louco de vontade para me jogar nela.
— Querida, qué bueno que has llegado. Ven a ayudarme con los arreglos florales — chamou Alejandra, de longe, da porta da casa, dirigindo-se a Letícia.
Lêh me olhou, sorrindo discretamente antes de ir ao encontro da matriarca da casa.
Eu e Luan permanecemos no jardim, observando as várias pessoas ao redor. Não éramos os únicos hóspedes; soubemos que vários parentes de Alejandra se hospedariam ali até o dia do casamento.
Uma senhora encurvada, de cabelos suavemente brancos, aproximou-se de nós dois com o auxílio de uma bengala.
— Este lugar é uma graça, não acham? — ela perguntou.
Fiquei surpreso ao ver que falava português como nós, me fazendo me sentir em casa. Sorri em concordância. Mal sabia eu que, de simpática, aquela velha maldita não tinha nada.
— É uma pena que o mundo esteja em decadência — seus olhos, atrás dos óculos de grau, estavam voltados para mais longe.
Olhei na mesma direção e foi quando notei um casal de dois homens, de terno, perto de uma árvore. Estavam sorridentes conversando animadamente bem próximos. Em meio ao calor do momento, um deles se aproximou e deu um selinho no outro.
— Minha sobrinha não deveria permitir esse tipo de gente em sua casa. É como deixar as portas do inferno abertas na própria residência.
Aquela senhora desdentada continuava a expelir seus preconceitos. Obviamente franzi o cenho com suas palavras. Para minha surpresa, Luan deu uma risada discreta e assentiu com a cabeça, como se concordasse.
— É, o mundo está perdido — ele disse, fingindo compartilhar da mesma opinião. Aquela múmia sorriu para ele, como se tivesse encontrado um amigo em meio aos que "pensam" diferente dela.
Eu planejava confrontá-la, mas perceber que meu namorado concordou com ela só para evitar conflitos foi a gota d'água para mim. Virei as costas e caminhei rapidamente na direção oposta, com passos pesados e respiração ofegante.
Parei em frente a uma árvore naquele sitio, longe da vista de todos, aguardando Luan se aproximar. Ele veio, mas lentamente, despreocupado.
— O que deu em você agora?
— O que deu em mim, Luan?! Você está brincando comigo? Concordou com aquela velha homofóbica! Por quê? Tem vergonha de quem você é?!
Mesmo irritado, mantive a voz baixa o suficiente para não ser ouvido pelos demais.
— Não tenho vergonha da minha sexualidade. Mas para que discutir com ela? Não iríamos mudar a opinião dela.
— E concordar com ela trouxe algum benefício?
Estava atingindo o meu limite. Há meses, tentei fazer as coisas funcionarem entre nós, mas algo não estava mais encaixando. Não estávamos mais na mesma sintonia.
— Luan, eu te amo de verdade. Entendo que você não queira se abrir para o mundo, mas do jeito que as coisas estão, parece que você não se importa. Parece que nunca vai estar pronto. Eu quero que todos saibam quem eu sou e que respeitem minha sexualidade. Respeito sua escolha de não se assumir para todos, e não estou te julgando por isso, mas chegamos a um ponto em que isso não está mais funcionando para mim.
— Então, o quê, Kevin? Vai terminar comigo de novo? — Luan me encarou irritado, parecendo mais nervoso do que preocupado.
— Não. Quero dizer, não sei — desviei o olhar. Definitivamente, não queria perdê-lo. Mas, ao mesmo tempo, sabia que não conseguiria mudá-lo, da mesma forma que ele não iria me mudar.
Meu coração estava acelerado, temendo dizer algo do qual pudesse me arrepender.
— Só preciso de um tempo para pensar...
— Tempo? Tenha o tempo que precisar! — Luan estava tão enraivecido que, ao falar, algumas gotas de saliva voaram na minha direção. — Acho até que está fazendo um favor para nós. Ano que vem, quando você for para a capital cursar sua faculdade, provavelmente terminaríamos mesmo.
— Você não pode ter certeza disso! — Foi minha vez de demonstrar minha frustração. — Nem sei se passarei no vestibular para começo de conversa.
— Claro que vai passar. Você é inteligente e esforçado, não tenho dúvidas disso. — Não sabia se deveria encarar isso como um elogio ou ficar ofendido pela maneira como ele falou. — Obrigado por antecipar o término. Assim, fica mais fácil para nós dois.
Término? Eu estava mesmo terminando com ele?
Ao ver Luan me dar as costas e se encaminhar para a saída do sítio, voltei-me para ele:
— Aonde você vai?
— Para a casa do caralho — ele respondeu sem se virar, andando apressado e zangado pelo jardim.
— Então, vá mesmo, seu porra! — Desta vez, não me preocupei em abaixar o tom de voz. Falei alto o suficiente ao ponto que várias pessoas ao redor no sítio nos olhassem.
Não me importava. Não ligava para mais nada. Esperei apenas o suficiente para Luan sumir de vista, e então segui na mesma direção: para a saída. Não estava indo atrás dele. Só queria sair dali. Queria fugir. Não sabia de quem ou do quê. Talvez de mim mesmo, embora soubesse que isso era impossível...
Primeiro, caminhei rápido. Depois, quando me dei conta estava correndo pelas ruas de paralelepípedos da cidade. Se minha mente, que não estava funcionando direito, não se enganava, ali ficava o centro comercial; o único lugar que conhecia.
E realmente, lá estava eu de volta. Entre uma multidão de pessoas naquele fim de tarde alaranjado. Em um país estranho, perdido em meus pensamentos e com o coração na garganta. Não sabia ao certo o que fazia ali, mas precisava espairecer depois do que aconteceu...
— Me perdoe — Escutei uma voz masculina se desculpar ao esbarrar no meu ombro. Eu estava tão afoito que, se não fosse pelo seu pedido de desculpas, teria pensado que fui eu quem trombou com ele. — Kevin?!
Olhei para trás ao ouvir meu nome, só então percebendo que o homem usando um casaco trench coat bege se tratava de Arthur. Ele parecia genuinamente surpreso em me ver, enquanto segurava uma garrafa de tequila em uma das mãos.
— Mas será o Benedito?! — exclamei, revoltado, dando-lhe as costas e saindo andando apressado pelas ruas agitadas da cidade.
Percebi que Arthur vinha logo atrás de mim, insistente.
— Espera, Kevin.
— Espera meu pau! Deu agora de ficar me perseguindo, é? Veio até outro país atrás de mim? — apesar de dizer isso, virei-me para encará-lo.
— Eu nem sabia que você estaria aqui. Juro que é uma coincidência.
— E o que está fazendo aqui então? — o confrontei, de braços cruzados.
— Uma prima de segundo grau vai se casar. Não queria ter vindo, mas meu pai me obrigou a acompanhá-lo.
Inclinei a cabeça, ainda desconfiado.
— Alejandra, o nome dela. Posso ligar para ela agora se quiser para que possa confirmar tudo. Se você conseguir entender o que ela falar, é claro, já que ela é mexicana.
Puta merda.
— Só pode ser brincadeira — suspirei. Arthur me olhava confuso, levando a mão livre ao seu cabelo undercut. — Alejandra é a madrasta da Letícia. Ela vai se casar com o pai da minha melhor amiga.
— Sério? Que mundo pequeno! — Arthur escancarou a boca diante da minha revelação. Ele parecia realmente surpreso, mas não tinha certeza se realmente não sabia que eu estaria por lá. — E seu namorado? Não veio?
Fiquei em silêncio por um momento. Estava me acalmando até Arthur mencionar sobre Luan. Ele sempre tinha o dom de abrir a boca na hora errada.
— Considero esse silêncio como um "não"?
— Considere como um "não sei se ainda tenho um namorado".
Arthur não conseguiu esconder o sorriso que se desdobrou em seu rosto ao ouvir isso.
— Bom saber que minha infelicidade te trás contentamento. Alguém tem que se foder, não é mesmo? — rosnei mal-humorado.
— Não é isso, Kevin. Você sabe que me preocupo com você. Mas como sempre disse, Luan não era o cara certo para você.
— Se ele não era, então quem seria?
Por que fui perguntar isso? Arthur nunca perdia a chance de flertar comigo. Desta vez, porém, ele não respondeu. Apenas permaneceu sorridente.
No fundo, eu sabia que ele era um bom rapaz. Alguém que não tinha problemas com sua sexualidade, que me divertia e me apoiava constantemente na busca pela minha faculdade desejada. Se eu realmente não estivesse mais com Luan, desta vez talvez... Não! Ou talvez sim...
— Já disse que não vou te forçar a nada. Entendo que você está confuso agora, e não vou me aproveitar disso — Arthur pareceu me entender completamente. — Mas, sabe, não estou muito a fim de ir a este casamento.
Ele olhou para longe, em direção a uma imensa igreja. Da distância, só consegui vislumbrar suas duas torres altas de estilo neogótico, que se destacavam contra o céu. Elas eram esbeltas e com detalhes arquitetônicos como pináculos e janelas adornadas.
— O casamento será lá, na Parroquia de San Miguel Arcángel. Pense bem, Kevin. Se decidir que mereço uma chance, prometo fazer de você a pessoa mais feliz do mundo. Estarei no topo da torre leste da igreja na hora do casamento, te esperando.
Ele estava falando sério? Arthur estava propondo uma chance entre nós?
— Eu...
— Vou estar te esperando, Kevin — Seus olhos âmbares encontraram os meus castanhos, sem espaço para minhas palavras.
Quando nos esbarramos, senti uma certa melancolia em si, assim como eu estava me sentindo. Mas nosso encontro ao acaso pareceu ter melhorado o humor um do outro. Arthur sorriu para mim, ergueu a garrafa no ar e se afastou se juntando a multidão, logo desaparecendo de vista, sem que eu tivesse tempo de dizer mais nada.
A única coisa que passava pela minha mente naquele momento eram as palavras da cartomante de mais cedo: "Tu corazón estará dividido y tendrás que elegir entre dos alternativas."
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