38. Memórias Sob o Túmulo

          Escondido atrás de uma lápide, certifiquei-me de manter uma distância razoável do túmulo "dele" enquanto seus familiares prestavam as devidas condolências ao meu finado amigo.

          Já era o terceiro Dia de Finados que eu passava naquele cemitério, e o segundo no qual eu me mantinha oculto de seus familiares. Não que minha visita fosse indesejada; eu apenas não queria interagir com eles e ter que passar por todo aquele processo de falar sobre o ocorrido, o quanto Diego foi incrível quando vivo e tampouco como estava minha vida. Sentia que seria, de certa forma, um tanto injusto da minha parte falar para eles que minha vida estava bem, dentro do possível, quando o filho deles já não estava mais presente no mundo dos vivos.

          Uma coisa que reparei dessa vez foi que havia bem menos familiares do que no ano anterior — que, por sua vez, havia bem menos do que no dia em que ele foi enterrado. Reconheci de longe seus pais, seu irmão mais velho e uns dois tios dele. No ano passado, por outro lado, haviam vindo umas dez pessoas para prestar homenagens a ele.

          Era um saco ficar escondido esperando que fossem embora. Quando o coveiro, ou mesmo visitantes de outras lápides surgiam próximos a mim, eu disfarçava, fingindo estar procurando a lápide que eu buscava. Definitivamente não era a forma como eu idealizava passar o meu feriado.

          Após boas horas, sua família enfim decidiu ir embora. Mantive-me de costas, usando os óculos escuros que Luan me deu meses atrás, a fim de não ser avistado. Ao olhar sobre meus próprios ombros após um tempo e perceber que estavam longe o suficiente, finalmente pude caminhar em direção à lápide de Diego.

          Dei um suspiro, que mais se assemelhou a um assopro fraco, quando cheguei diante dela. Sempre me dava uma sensação de enjoo quando chegava naquele lugar. A lápide era feita de granito escuro com um acabamento polido. A base dela tinha um design retangular simples, com uma leve curva no centro. Já a parte vertical, que servia como cabeceira, era adornada com uma gravura de flores, esculpidas na pedra. O nome dele estava inscrito igualmente no local: "Diego Harris", em letras bem visíveis. Abaixo dele, havia uma frase escolhida por sua família: "À Diego, filho, irmão, sobrinho, amigo. Sua luz brilha eternamente em nossos corações."

          Inclinei-me sobre o túmulo, depositando o ramo de hortênsias lilases que trazia em minhas mãos em frente à onde ele estava enterrado. A flor que eu trouxe se juntou a tantos outros ramos trazidos por sua família naquela tarde. Sem me importar com os estranhos que caminhavam mais atrás, sentei-me no chão diante da lápide. Mesmo com o clima nublado, não removi os óculos escuros do rosto enquanto fitava o seu lugar de descanso eterno.

— Até quando vai se manter escondido? — Sem sequer olhar para trás proferi com firmeza, buscando transmitir a seriedade que almejava.

          Um discreto arrastar de sapatos sobre a grama do cemitério foi captado pelos meus ouvidos. O som dos passos se tornou mais audível ao se aproximar da área pavimentada onde eu estava sentado.

— Oi — Luan me saudou, de forma cínica e tímida, ao posicionar-se em pé ao meu lado. Eu mantive meu olhar, escondido pelos meus óculos, concentrado na sepultura à minha frente, sem lhe dar a devida atenção. — Há quanto tempo percebeu que eu estava te seguindo?

— Não muito — respondi de forma fria e seca.

          De fato, durante hás várias horas em que estive lá, não havia me dado conta que Luan estava se esgueirando em meu encalço. O cheiro dele, tanto do seu perfume característico quanto da nicotina do cigarro que havia fumado, foram o que me fizeram reconhecê-lo ao se aproximar demasiadamente.

— Então... — Luan tentou iniciar uma conversa, ainda sem jeito, mantendo seu olhar fixo na lápide à minha frente. — Diego...

— Sim, Luan. Diego — minha impaciência era transparente.

          Recordava-me bem da época em que, mesmo sem intimidade com Luan, Letícia e eu o seguimos até o bar onde trabalhava. Porém, a situação atual era completamente distinta. Não havia justificativa para sua tentativa de espionagem, especialmente após eu deixar claro que não desejava dizer nada sobre meu falecido amigo.

— Só preciso saber se você não o matou. Seria bom saber se não estou namorando um psicopata, e se não serei o próximo alvo. — Luan tentou amenizar o clima com uma risada sem graça, porém, meu olhar mortal fez com que ele se retratasse imediatamente sobre sua brincadeira. — Desculpa.

          O sol, oculto pelas nuvens, não iluminava tão bem a região. Não sei se um cemitério, nesse cenário, era o lugar ideal para falar sobre pessoas que já se foram, ainda mais no Dia de Finados. Talvez esse seja o real intuito da data e do local, mas ainda assim tudo se intensificava naquele dia.

— Não pode me culpar, Kevin — Luan tentou se justificar, olhando para baixo em minha direção —, eu estava preocupado com você durante todos esses dias, e você não quis dizer nada. Recorri até mesmo a Letícia.

          Finalmente, direcionei o olhar para cima, surpreso com a menção do nome de minha amiga.

— Ela não sabe nada desse Diego, mas me disse que você estava igualmente estranho, nessa mesma época do ano, ano passado.

          Com um fiapo de grama que arranquei da região, enrolei-o sobre meu dedo indicador enquanto olhava agora mais para baixo; especificamente para a base da lápide. Luan permanecia imóvel ao meu lado, como se aguardasse se eu diria algo.

— Das vezes em que fomos juntos para casa, você deve ter reparado que, mesmo estudando próximo à nossa escola, no caminho de minha casa até lá, existem no mínimo outras três escolas mais próximas, certo?

— Bom, sim — Luan assentiu, embora não fosse tão explícito em um primeiro momento onde eu queria chegar. — Realmente tem algumas escolas mais perto da sua casa. Mas nunca dei tanta importância a isso, afinal a distância não é tão grande quanto a casa dos meus pais ao ponto de gerar algum grande estranhamento.

— Mas tem um motivo, na verdade — voltei a encarar o fiapo que se enroscava em meu dedo. — Eu estudava no colégio Nova Geração. E eu deveria ter continuado o ensino médio por lá, mas, eu decidi mudar de escola. Quando o ensino médio começou, pedi para meus pais me matricularem nessa nova escola, onde ninguém me conhecia. Quis recomeçar do zero, depois que Diego faleceu.

          Queria eu ter uma válvula de escape nesses momentos, como o Luan tinha com o cigarro e o seu violão. Contudo, tudo que eu tinha era um pedaço de grama entre os dedos, enquanto contava a Luan, aquilo que eu não queria lembrar.

          Talvez, só talvez, tenha sido esse o motivo que me levou a começar a escrever poesias e a participar de saraus. Naquela época, tudo o que eu conseguia escrever eram poesias melancólicas e depressivas; era ali que eu me abria para desconhecidos, sem expressar explicitamente o que estava sentindo.

          Meu namorado prestava a devida atenção, sem ousar me interromper.

— Diego era para mim, o que James é para você hoje em dia. Ele era o meu melhor amigo. Antigamente eu não era tão sociável quanto hoje em dia, comecei os primeiros anos do fundamental sendo alguém tímido e sem amigos. Mas aí, o Diego apareceu.

"Em uma atividade em duplas que acabamos sendo jogados juntos por sermos os únicos que sobraram, acabamos firmando uma boa amizade. Ele era um cara divertido, vivíamos indo na casa um do outro, ao ponto que nossas famílias chegaram a se conhecerem. Foi com ele que aprendi a andar de skate, inclusive.

"O pai dele nasceu nos Estados Unidos, e Diego, mesmo sendo brasileiro, herdou parte da cultura dos americanos. Entre elas, virou um hábito nos finais de semana irmos para algum campo abandonado, jogarmos baseball."

          Dei um sorriso ameno no rosto ao me recordar dos bons momentos que passamos juntos na nossa infância.

— Então aquele taco de baseball que o pai do James quebrou, foi ele quem te deu, né?

— Não exatamente — respondi, ainda cabisbaixo. — Depois que Diego morreu, sua mãe me deu o taco de baseball favorito dele de presente. Ela sabia o quanto aquilo significava para nós, e também sabia que eu, na época um adolescente desolado, estava me sentindo igualmente triste com a morte dele.

          Não intencionalmente, o fiapo de grama que eu usava para me distrair durante meu relato, se partiu em dois quando fiz um pouco mais de pressão sobre ele.

— Você quer saber como ele morreu, não quer?

— Só se você quiser falar — Luan respondeu imediatamente balançando as mãos no ar. Acho que ele percebeu o quanto aquele assunto era sensível para mim, mas eu já havia adentrado nesse tópico, não tinha por que não ir até o fim.

— Ele havia faltado naquele dia. Até aí tudo bem, ele não era tão assíduo na escola, assim como você — dei um sorriso torto mediante minha própria fala. — Ainda assim, após sair da escola, quis ligar pra ele para marcarmos de fazer algo; estava estressado aquele dia e queria espairecer. Liguei. Liguei. E liguei. E nada. Por fim, decidi aparecer em sua casa para ver o que havia ocorrido — fiz uma pausa em meu depoimento. Um embrulho se formou em meu estômago, como se eu revivesse o pior momento de minha vida. — Seu pai me recebeu, e, em meio às lágrimas, me contou que Diego havia tomado alguns remédios mais cedo e tirado a própria vida.

          Olhei para cima; mesmo com os óculos escurecendo parte de minha visão, foi bem perceptível a cara de espanto de Luan ao saber como tudo havia ocorrido.

— Eu não fazia ideia, Luan. — Balancei a cabeça, minha voz agora transmitindo um pouco mais da minha angústia interior do que antes. — Durante todos esses anos como amigo dele, nunca percebi nenhum sinal de que ele estava passando por todos esses conflitos internos. Não fazia a menor ideia de que ele precisava de socorro.

— Ele... Uma carta... Ele deixou uma com o motivo? — ainda atordoado, Luan tentava expressar sua dúvida. Se o choque para ele, que nem conheceu Diego, era desse tamanho, imaginem quanto foi o meu na ocasião.

— Ele deixou uma carta. Mas não vem ao caso, depois de morto o motivo já não importava mais. É claro que era importante, mas não tem o que ser feito ao sabermos só depois que ele morreu. Diego estava passando por problemas, estava com depressão. Nem eu, nem sua família sabíamos. Ele foi aos poucos definhando, chegando ao seu limite, até que recorreu à última instância.

"Você me perguntou se eu havia matado o Diego. Bom, de certa forma sinto que sim. Pois não fui capaz de salvá-lo, não percebi, não o fiz feliz o suficiente para que não fizesse isso. Me sinto culpado porque eu não consegui escutar o grito silencioso de socorro dele. Eu deixei meu melhor amigo morrer."

          Queria ser capaz de chorar por ele tanto quanto fui há um tempo. Não havia um dia em que eu não chorasse ao ponto de soluçar e a barriga doer tamanha a dor. O tanto que já chorei no decorrer dos anos pela morte de Diego, me fizeram externamente me tornar uma casca rígida. Lembrar dele não fazia mais com que as lágrimas fluíssem de meus olhos. Mas, minhas lágrimas terem secado não significava que internamente já havia cicatrizado. A dor estava tão grande por dentro, como foi na época.

— Kevin, eu não acho que somos capazes de salvar ninguém — Luan externou seu pensamento após um tempo. Olhei para ele, esperando que prosseguisse. — Não tem que se sentir culpado por isso. O que estava ao seu alcance você fez. Você o amou como amigo, e demonstrou isso enquanto ele estava por aqui.

— Eu teria feito bem mais se eu soubesse!

— É claro que teria — com a voz pacífica, Luan me deu um sorriso bondoso. — Mas você não sabia. Ninguém sabia. Mesmo passando por tudo isso, pode ter a certeza de que em alguns momentos, você o fez feliz. Se não fosse você em sua vida, quem sabe ele pudesse ter ido ainda mais cedo.

          Voltei o olhar para o túmulo, sem demonstrar maiores expressões, refletindo sobre as palavras de Luan.

— Me sinto culpado por outra coisa também. Sinto que estou traindo o Diego em ser feliz novamente. Eu posso me dar a liberdade de ser feliz quando ele não tem mais essa chance? Eu tenho um namorado! Acabei de passar pelo ano de maior autodescobrimento da minha vida, e Diego não está aqui para presenciar nada disso. É justo, Luan?

          Dessa vez, não me importei com o que algumas poucas pessoas que passavam próximas pudessem pensar ao escutar.

— Claro que você pode ser feliz, Kevin. Aliás, você deve. Ele iria querer isso para você.

— Não é só isso. Hoje, por exemplo, vi que tinha menos pessoas da família dele o visitando do que no ano passado. Sabe o que isso significa, Luan? Aos poucos, as pessoas vão se esquecendo. Claro que os pais dele sempre virão, mas e depois? Mais importante do que isso, e eu? Vim ano passado, esse ano e muito provavelmente estarei aqui ano que vem. Mas quem me garante que estarei aqui nos próximos dez anos? Vinte anos? Cinquenta anos?

"A vida vai continuar seguindo. Vou continuar envelhecendo. Mas Diego não. Ele permanecerá jovem para sempre. Eu irei para tantos lugares, mas ele vai continuar aqui enterrado, nesse mesmo lugar, sem nunca sair. Vou me casar, e se nós tivermos filhos, eles nunca conhecerão o Diego."

          Percebi que incluí, inconscientemente, Luan nos meus planos futuros de casamento, ainda assim decidi seguir com meu desabafo.

— Tenho medo de esquecê-lo. Medo de que chegue um momento que Diego se torne apenas uma vaga lembrança de alguém que conheci, quando na real ele foi uma das pessoas mais importantes de toda minha vida.

— Quanto aos nossos filhos, irei me assegurar de que eles saberão quem foi o Diego — mantendo meu discurso de casamento, Luan se mostrou convicto a fim de me tranquilizar. — Só não posso lhe assegurar que daqui há muitos anos eu mesmo me lembrarei de te lembrar. Pode ser que quando ficarmos velhinhos, nossas memórias já não sejam das melhores. Ainda assim, isso não apagará o que vocês passaram. Eu tenho para mim que cada minúsculo acontecimento de qualquer momento da nossa vida molda quem nos tornamos no futuro. Então, mesmo que um dia se esqueça de vir visitá-lo, Diego já estará marcado eternamente em sua vida; ele é parte de quem você é.

          As palavras de Luan me atingiram como uma flecha. Não tinha a menor noção de que ele conseguiria alcançar esse nível profundo de entendimento do meu luto. Tão surpreso quanto, fiquei quando senti um solavanco em meu ombro. Uma firmeza tão rígida que me lembrava do toque de Diego quando vinha chamar minha atenção.

          Ao olhar para essa direção, avistei primeiramente a aliança no seu dedo indicador, e então me dei conta de que era a mão de Luan ao erguer mais ainda a cabeça. Meu namorado fez esse gesto em sinal de conforto, acenando lentamente com a cabeça.

— Obrigado, Luan.

— Precisa ficar um tempo sozinho?

— Por favor.

          Entendendo que eu precisava daquilo, Luan assentiu e então sua mão se soltou do meu ombro. Meus ouvidos o captaram se distanciando, primeiro pelo pavimento, depois pela grama. Não precisava olhar para trás para saber que Luan havia partido de verdade e não estava mais me vigiando, eu confiava nele.

          As palavras de Luan fizeram minha cabeça girar em espirais, com todos os meus dilemas emocionais. Eu realmente havia dado o meu melhor pelo Diego quando em vida? Era claro que o luto seria algo permanente em minha vida, mas, eu tinha esse direito de me isentar da culpa e seguir adiante?

          Lembrar de Diego nessa época do ano me deixava distante de todos, me deixava pior do que deveria, enquanto no resto do ano eu agia quase que normalmente. Conheci Letícia e meus demais amigos depois que ele se foi, e nunca contei a eles sobre isso. Eu sequer me considerava como gente antes do ensino médio, justamente pelo meu "erro" de não perceber a dor do Diego. Mas agora Luan sabia, e buscou tirar o peso das minhas costas de que não houve erro algum da minha parte.

          Retirei os óculos escuros do rosto, olhando sem filtro algum para a lápide. O real motivo para ter vindo de óculos é que eu não gostaria que as pessoas vissem meu olhar pesado, mas sem lágrimas alguma, acreditando que eu estava indiferente à morte de Diego de dois anos atrás. Mas eu não estava! E agora não importava mais o que achassem, eu e Diego sabíamos o que eu sentia por ele. Ele era meu melhor amigo, e, talvez, se estivesse vivo, podia ter sido com ele que eu descobriria minha sexualidade. Numa realidade alternativa, eu poderia ter me apaixonado por ele invés do Luan. Com o aroma fresco impregnado no ar das hortênsias que eu trouxe, passei mais algum tempo sentado diante do jazigo, antes de ir embora.

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