31. Dissonância na Mansão dos Pimentel
Gentilmente, Luan me despertou com um leve solavanco em meu ombro, conforme o carro em que estávamos estacionava ao lado da calçada. Ergui-me sentindo o rosto amassado. Apesar de ter tido apenas um breve cochilo, senti que minhas energias tinham sido recuperadas. Pela janela, olhei ao redor. Mesmo se tratando de um bairro bem sofisticado, aquele certamente não era o bairro de Luan.
— Ashley está hospedada naquele hotel — ele apontou pela janela para o lado oposto. Um magnífico hotel com uma fachada moderna estendia-se à nossa frente. — Vem comigo, Kevin.
Assenti, embora estivesse um pouco relutante se minha presença naquele momento fosse de fato necessária. Descemos do carro, o motorista permanecendo em seu assento ao nosso aguardo. Uma vez em frente ao hotel, aguardei Luan do lado de fora, enquanto ele se dirigia à recepção para chamar por sua "noiva". Não demorou mais do que cinco minutos para que retornasse pela mesma porta giratória pela qual entrou.
— Já chamaram por ela.
Fiquei surpreso ao descobrir que hóspedes de hotéis chiques como esse tinham o privilégio de receberem visitas até mesmo de madrugada.
O silêncio se estendia ao nosso redor, conforme a rua vazia e noturna pareciam tecer sombras mais a frente que dançavam entre seus véus de forma assustadora. Não sabia dizer se era o medo de estar altas horas da noite na rua, ou se o arrepio que senti foi oriundo da brisa gélida da madrugada, e o fato de eu estar apenas com uma camisa regata.
Luan, de toda forma, notou quando meus pelos se arrepiaram. Ele retirou sua blusa moletom pela cabeça, que já havia secado, a estendendo em minha direção.
— Não precisa, Luan. Não estou com frio. — Apesar de dizer isso, eu estava com os braços abraçados ao meu próprio corpo a fim de me aquecer.
— Deixa disso, Kevin. Pega logo. — Ele insistiu. Bom, diante de tanta insistência e o fato de eu estar apenas com uma regata por baixo e ele uma camiseta de manga longa, acabei aceitando, trajando a blusa de meu namorado. Ela ficou levemente larga em meu corpo, enquanto o garoto que me emprestou sorria satisfeito.
Antes que pudesse agradecer, uma garota surgiu em nossa frente ao passar pela porta giratória. A luminosidade amarelada que vinha do interior do prédio nos dava a visão de Ashley trajando um roupão de manga longa em cetim, amarrado em sua cintura, por cima de seu pijama de seda. Seu cabelo cacheado estava amarrado para trás com uma fita vermelha.
— Oi, meu amor. — Sua mão encostou no peito dele, inclinando para beijá-lo, mas Luan imediatamente deu um passo para trás, afastando-a de cima de si.
Ashley se recompôs, um tanto desnorteada. Não demorou muito para que seus olhos se deparassem com a minha presença.
— Oh, esse é aquele seu amigo que vi na sua escola certo dia, né? — Ela questionou, e então seus olhos se voltaram para baixo. Especificamente para a mão do seu noivo. A confusão parecia tecer um clima de tensão em sua cabeça. — Que aliança é essa, Luan?
— Ashley, o Kevin não é meu amigo. Ele é o meu namorado. — Com seriedade, Luan lançou seu braço sobre meu ombro, me trazendo para frente a fim de me apresentar devidamente.
Onde eu havia amarrado meu burro? Eu estava simplesmente sendo apresentado para a noiva dele como seu namorado, no exato momento em que ela descobria a sua sexualidade. Tudo o que consegui fazer foi dar um tímido aceno no ar para ela.
— Que porcaria de piada é essa, Luan?! — Apesar de tentar se convencer de que aquilo era apenas uma pegadinha, Ashley demonstrava uma irritação crescente.
— Não há brincadeira alguma. Eu me apaixonei por outro garoto. Parece coisa de outro planeta, eu sei. Mas é real. — Nossos olhos se encontraram, Luan sorria conforme sua mão descia até encostar na minha própria. — Lamento, Ashley.
— Lamenta? Luan, eu te esperei a vida toda! E quando estamos tão perto de completar dezoito anos e nos casarmos, você chega e fala que está com outra pessoa? Um homem! — Não posso julgá-la. No lugar dela talvez eu me sentiria da mesma forma. — Além disso, você é a última pessoa que eu imaginaria gostando de garotos.
— Eu também. Também nunca me imaginei gostando de outro cara. Mas aconteceu, e eu simplesmente não poderia estar mais feliz ao lado dele. — Sei o quanto Luan estava se esforçando para manter o controle da situação, ao mesmo tempo que tentava acalmá-la. Mas também sabia o quão difícil era para ele, por isso apertei firme sua mão, tentando transmitir-lhe confiança.
"Escuta, Ashley. Você acha que me conhece. Mas na verdade, durante toda nossa vida mal nos falamos. Outras pessoas traçaram nosso futuro, e simplesmente aceitamos. Ou melhor, você quem aceitou isso. Sempre fui transparente sobre não querer me casar com você."
— Você veio dando corda desde que voltei para o Brasil!
— Sim. Você tem razão. Cometi um erro ao tentar te usar para esquecer o Kevin quando brigamos, errei em forçar a me apaixonar por você, e por conta desse curto período, eu me desculpo pela minha falta de honestidade.
Ashley se encostou no pilar de sustentação externo do hotel, parecia que sua cabeça estava em um turbilhão de pensamentos. Eu não poderia ser mais grato pelo fato do hotel possuir isolamento acústico, e ninguém do seu lado interior conseguir nos escutar.
— Ouça. Você acabou se apaixonando por um Luan que não existe. Quem você conheceu era um garoto invejável, o aluno maravilhoso, herdeiro de pais milionários, um cara bonito e seguro de si, com um futuro promissor o aguardando. Em resumo, você conheceu o Luan perfeito. Mas esse não é o verdadeiro Luan. Você se deixou apaixonar apenas pelo que via e pelo que meus pais me venderam a você. Na realidade, não posso culpá-la. Nunca fui de me abrir com as pessoas, então quase ninguém conhece minha personalidade real e meus defeitos. Sou falho, não o cara perfeito que presume que sou. Você não me ama, ama quem acha que posso ser. Eu mereço ser feliz com alguém que me conhece de verdade, e que ama meus defeitos. E, Ashley, você merece conhecer alguém que te ame de verdade. Infelizmente, não sou esse alguém.
Eu compreendia que Luan não acreditava que aquele casamento fosse de fato acontecer. A culpa de toda aquela situação foi causada pelos canalhas dos seus pais.
Ele soltou minha mão, se aproximando dela. Não manifestei nenhum sinal de objeção, nem mesmo os ciúmes tomou conta de mim dessa vez. Como poderia depois de todas as palavras que ele disse?
— Você é uma boa garota, não deixe seus pais traçarem seu futuro por si. — Meu namorado selou seus lábios na testa dela. Ashley não chorava, mesmo que sua expressão corporal demonstrasse que ela estava arrasada. Ainda assim, a elegância dela impedia que se mostrasse vulnerável em nossa frente.
— E os seus pais, Luan? Como eles vão lidar com... — Ela me olhou por cima de seu ombro —... o seu namorado? Imagino que não vão ser tão compreensíveis.
— Eu estou indo resolver isso nesse momento. Não se preocupe. Por mim, quero que eles se fodam se não aceitarem.
Sua mão encostou na dela. Pela última vez, seus dedos se tocaram, enquanto se encaravam. Ashley balançou a cabeça pesarosamente, como se dissesse para Luan seguir em frente.
E ele assim o fez, soltando-a e caminhando em minha direção. Já havíamos começado a caminhar juntos, nos afastando do hotel, até que ouvi meu nome ser mencionado:
— Kevin, não é? — Me virei em resposta, conforme Ashley me encarava. — Você conheceu esse verdadeiro Luan que ele mencionou?
Pendi minha cabeça ao lado, meu namorado segurando minha mão e me olhando fundo nos olhos da mesma maneira. Voltei minha atenção à jovem garota, confiante.
— Sim. Eu conheci o verdadeiro Luan. E me apaixonei por ele, com todos os seus defeitos.
Sabia que aquela resposta era suficiente para que Ashley pudesse virar a página. Por conta disso, ambos retornamos nossa caminhada até chegarmos ao veículo que nos aguardava, dessa vez em direção à mansão dos Pimentel.
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Não demorou muito até que finalmente nos encontrássemos em frente ao portão da mansão de Luan. Sem saber o que poderia ocorrer lá dentro, meu namorado decidiu dispensar nosso motorista, pagando a corrida de uma vez. Quase enfartei ao ouvir o valor que deu. Sei que atravessamos a cidade, e ele ficou esperando muito tempo, mas caramba! Com esse valor dava para dar entrada em seu próprio carro. Nessas horas aposto que Luan se arrependeu de ter recusado ganhar a Lamborghini que seu pai lhe ofereceu.
De toda forma, uma vez que o motorista partiu, passamos pelo portão de ferro e adentramos o terreno. Luzes reincidiam sob nossos pés conforme pisávamos nos ladrilhos do jardim da entrada, iluminando nosso caminho. Ser rico era outro nível, e tinha pleno conhecimento que Luan estava totalmente aberto a abrir mão dessa vida de luxo de uma vez por todas. O que me deixava confortável era saber que ele não estava fazendo aquilo por mim, mas sim por ele próprio.
Quase havia me esquecido o quão branco o piso do hall da entrada era. Sua clareza, aliada às luzes da mansão que possivelmente nunca se apagavam, quase me fizeram esquecer que era bem tarde da madrugada.
Notei que não havia ninguém no ambiente conforme adentrávamos. Luan encostava seu violão próximo ao sofá, enquanto eu vagava meu olhar de forma mais minuciosa pelo cômodo. Não havia reparado na existência de um extenso aquário de quase três metros de comprimento ao canto da sala da primeira vez que estive ali. Mais surpreendente foi perceber que não havia peixe algum dentro do receptáculo. Ricos tinham mesmo gostos inusitados, como pinturas penduradas nas paredes, que para mim pareciam apenas borrões de tinta. Ou até mesmo um vaso sinuoso e esquisito em cima de uma mesinha de centro.
— Feio, não é? — Luan comentou brincalhão, conforme eu observava o objeto mais de perto em minhas mãos.
— Horroroso.
— Nunca vou entender como essa coisa aí custou o equivalente a oitenta mil dólares.
Senti calafrios em partes do meu corpo que eu nem sabia que existiam. O choque foi tamanho que quase deixei o vaso cair sem querer. Por sorte, meus dedos foram firmes em agarrá-lo pela borda antes que se espatifasse no chão. Entre tremedeiras, o aloquei de volta em seu lugar, isso tudo enquanto Luan ria descontraído.
— E agora, o que faremos? — Questionei, uma vez que meu namorado estava parado no centro do hall.
Luan pigarreou algumas vezes, enquanto retirava um isqueiro do bolso da calça.
— Isso não é hora de fumar, Luan.
Com um sorriso travesso, ele me ignorou e se dirigiu ao outro lado do cômodo. Havia outro vaso no local, com um ramo de flores dentro dele. Luan furtivamente alcançou uma garrafa de álcool, cuidadosamente oculta atrás da cortina, sugerindo que talvez tenha sido preparada previamente por ele. Despreocupadamente, despejou uma pequena quantidade do líquido no interior do vaso. Em seguida, acendeu o isqueiro em sua direção; enquanto minha boca pendia para baixo.
As chamas começaram a tomar conta das flores em um estalo alto e crepitante, no exato momento em que o alarme de incêndio da casa começou a apitar estridentemente. Em questão de segundos, jatos de água caíram do teto através dos sprinklers.
— O que raios está acontecendo aqui? — Com o cabelo escondido sob uma touca, a senhora Vivian surgiu em disparada do mezanino do segundo andar, enquanto amarrava seu roupão e descia as escadarias.
— O que esse garoto faz aqui?! — Usando um pijama cafona, foi a vez do senhor Richard surgir enraivecido ao me ver, vindo logo atrás de sua esposa.
A fumaça continuava a subir, e as chamas já dominavam as flores que estavam no vaso. O que impediu que um incêndio tomasse conta da mansão foi a chegada repentina de uma empregada que carregava um extintor de incêndio consigo.
A mulher de meia-idade vestia um avental, e utilizou o extintor contra o vaso, extinguindo de vez o fogo através de seus jatos. De imediato, reconheci aquela mulher. Segundo Luan, seu nome era Celeste. Era a amável empregada que pôs seu emprego em risco na ocasião em que Luan foi embora de casa, lhe entregando uma muda de roupas.
Outros empregados vinham pelos corredores, preocupados com o som do alarme de incêndio. Os sprinklers estavam parando aos poucos de respingar água em nós, conforme a fumaça se dissipava.
— Que algazarra é essa? — A irmã mais velha de Luan surgiu no topo da escadaria, nos observando. Ao lado de Laura, o irmão mais velho deles, Liam, nos olhava com desdém por de trás de seus óculos.
— Tinha que ser o bostinha do Luan. — Liam falou com rispidez. — Trouxe esse zé ruela junto dele de novo, ainda por cima.
— Calado, Liam!! — Richard esbravejou, e o silêncio se instaurou. A ironia da situação foi o fato de o próprio alarme de incêndio parar de apitar no mesmo momento que deu seu grito, como se também estivesse o obedecendo. — Toleramos coisas demais desde que voltou, Luan. Chegar todo dia tarde em casa, jogar basquete e videogame, até mesmo inventou de profanar seu corpo fazendo uma tatuagem! Mas agora, decidiu passar de vez por cima de minha autoridade e trouxe "isso" para cá novamente?
Era óbvio que por "isso" ele se referia a mim. Tão doce quanto um jiló. Todos os empregados estavam afastados, apenas observando aquela discussão acalorada em família, sem se meterem.
— "Isso" ao que o senhor se refere, é o meu namorado. — Com firmeza, Luan deu um passo para frente. Exclamações sutis de surpresa vieram dos empregados, que no mesmo instante se silenciaram diante do olhar feroz de Richard ao girar com a cabeça pela sala.
— Seu insolente. Acha que vai me desrespeitar na minha própria casa?! — Richard demonstrava um nervosismo descompassado. Me pergunto se em algum momento do seu dia ele era calmo, porque todas as vezes que o via ele estava à beira dos nervos.
— Não estou te desafiando, pai. Nenhum de vocês. Vim apenas comunicar que falei com a Ashley agora há pouco. E, informei a ela que não haverá casamento algum.
Minha nossa senhora da bicicletinha sem freio, para quê? Foi só abrir a boca, que o rosto daquele homem carrancudo foi ficando cada vez mais vermelho. Se fosse um balão, eu diria que estaria prestes a estourar.
— Luan Pimentel Montenegro! — Vivian quem tomou frente, seus olhos capazes de incinerar quem quer que fosse que ousasse lhe retrucar. — Acha que tem o direito de escolher com quem irá se casar? Essa decisão não lhe pertence.
— Calada você também. — Richard não poupava as palavras nem mesmo com sua mulher. — Para quê, Luan? Me diga, por qual propósito você foi nascer? Te coloquei num patamar que sempre soube que não merecia, acreditando que quando chegasse o momento sua fase rebelde se extinguiria e você tomaria jeito. Mas é como dizem, raposa velha perde o pelo, mas não perde o vício.
— Pai, você sempre priorizou o Luan. Sempre depositou suas expectativas nele, quando eu quem deveria ser merecedor desse reconhecimento. Eu sempre fiz tudo conforme o senhor mandava. — Da escadaria, Liam usou a oportunidade para manifestar seus ciúmes em relação ao seu irmão mais novo. — Eu jamais faria o que esse bosta do Luan fez...
— Cala a boca, seu maconheiro! — O olhar mortal de Richard para seu filho progenitor foi atenuado com sua voz grave e pesada. As palavras simplesmente sumiram da garganta de Liam, que as engoliu a seco sem coragem de prosseguir. — Acha que minha decepção é só com o Luan? Vocês todos. Essa família. Vocês têm noção do quão mais alto eu poderia ter alcançado? Claro que não tem, afinal não são vocês quem possuem 144 de QI. Maldita hora em que decidi ter filhos. Um após o outro, foi uma decepção constante. Esperava que o último fosse aquele que compensaria o amargo da vida que vocês me trouxeram, mas veja no que se tornou. Uma aberração que beija outros homens.
Eu não podia mais suportar ouvir aquelas palavras. O silêncio naquela sala era pior do que sua fala. A omissão de todos era uma aceitação ao seu autoritarismo.
— Vai fazer o quê, Luan? Vai me ameaçar de novo de expor meus segredos?
— Se fosse para te ameaçar, eu nem aqui estaria, "pai". — A forma séria como Luan falava, mas a ironia no termo pai era totalmente perceptível. — Vou dizer o que meus irmãos não têm coragem de falar. Você também é uma decepção como pai. Por muito tempo, te culpava justamente por ter me botado nesse mundo. Ao mesmo tempo, eu me sentia culpado por frustrar a vida e expectativas de vocês, enquanto eu mesmo não tinha direito à minha própria vida. Me culpava por estar simplesmente vivo. Mas eu conheci o Kevin, o mesmo cara que vocês insistem em dizer que destruiu minha vida e me levou para a perdição. Foi o oposto, ele quem me fez ver sentido na vida. Hoje não lhe culpo por ter nascido, pelo contrário, sou grato. Sinto muito que eu possa ter estragado sua vida, mas isso não lhe dá o direito de arruinar a minha. Estou feliz sendo quem sou, e serei ainda mais quando cruzar por aquela porta.
Richard estava com a cabeça abaixada, ouvindo as palavras de seu caçula. Os empregados estavam em choque, mesmo sabendo que deveriam manter sigilo sobre tudo o que ocorria ali. Liam e Laura assistiam tudo da escadaria, em estado de perplexidade. Vivian não ousou abrir a boca, desde que seu marido mandou se calar. E eu, olhava para um Luan ofegante, mas cheio de si, por enfim ter se soltado das correntes que o prenderam por toda sua vida.
— Você... Você consegue ser mais insignificante que um cão de rua! — Em um ato repentino, Richard ergueu sua cabeça e partiu para cima de seu filho com o punho erguido no ar. — Vai levar a surra que devia ter recebido dos tempos.
Antes que o senhor Richard conseguisse golpear seu filho, Luan agarrou o pulso de seu pai no ar, impedindo-o de prosseguir. Com a mão livre, Luan utilizou de suas habilidades adquiridas no seu treino de boxe. Com o punho fechado, sua mão dominante veio do plano vertical, de baixo para cima, adentrando a guarda baixa em direção ao queixo de Richard. Uma vez atingido pelo "uppercut", Richard caiu no chão da sala com estrondo.
— Seu filho de uma puta! — Sua mãe brandiu ao seu filho, indo de encontro ao seu marido caído. Eu conto ou vocês contam?
— Pai, já chega! Você está exagerando. — Laura suplicou apoiada no corrimão da escada. Sua voz transmitia angústia, o que me deixou surpreso pelo fato dela se colocar a frente para defender Luan.
— Não se meta, Laura! — Vivian repreendeu sua filha, enquanto Richard, sentado ao chão, usava o dorso de sua mão para limpar o sangue que escorria de sua boca. Aos poucos começou a se erguer de volta. Aquele olhar de desprezo para Luan evidenciava que seu pai revidaria.
Vivian só demonstrava apatia pelo seu marido; aquela mulher não era nenhum pouco melhor que o homem em nossa frente.
— Eu te botei nesse mundo, então tenho o direito de te tirá-lo dele. — Richard fechou um punho sobre sua mão, se aproximando de Luan.
Se aquele golpe que Luan aplicou tivesse sido dado em um Rafael ou um Felipe da vida, com certeza teriam sido nocauteados. Mas Richard era um homem corpulento, tinha o dobro de tamanho de Luan. Ele não se abateria tão fácil.
— VOCÊ É UM VERME!! — Berrei, recebendo todos os olhares em minha direção. Já não aguentava mais; a noite toda sendo apenas um telespectador de absurdos dos quais eu até então não havia feito nada para impedi-los. Minha respiração estava descompassada, conforme Richard se virava em minha direção. — Cansei de vê-los te tratando como um homem que merece palavras gentis, de ver pisarem em ovos para falarem com o senhor. O senhor é repugnante, mais insignificante que uma ameba.
— Kevin...
— Não, Luan. Não venha me dizer de novo que não tenho o direito de me meter. Claro que eu tenho! Não vou mais ouvir esse asno disseminando preconceito e te tratando feito lixo. Quando o único lixo nessa casa é ele. Aliás — virei sutilmente minha cabeça para a mulher próxima ao sofá. Vivian me encarava igualmente estupefata —, ele não é o único lixo. A senhora também é. Uma vagabunda de marca maior, que prefere ficar ao lado de um marido que a trata como nada, invés do filho. Aliás, da próxima vez que pensar em dizer algo sobre meus pais, que eles não valem mais do que simples roupas caras que vocês compram, lavem a porra da boca de vocês! Pois meu pai é muito mais homem que um bosta controlador e conservador que só ama a si mesmo. E minha mãe é muito mais mulher que uma vadia narcisista como você. Da próxima vez que aparecerem diante de meus pais, não respondo por mim!
Finalmente as palavras que estavam guardadas no fundo do meu peito foram faladas em alto e bom som. Se algum usuário do Twitter estivesse presente, a forma como manifestei minha repulsa me faria ser facilmente cancelado. Azar o deles, de toda forma. Queria ver terem que conviver com pessoas desprezíveis como essas, se retribuiriam com sorrisos.
Os olhos verdes e fulminantes de Richard estavam voltados para mim. Nós nos encarávamos de igual forma extasiados de ódio. Ele, porém, quem tomou a iniciativa de caminhar lentamente em minha direção.
— Como foi que chamou minha mulher?
Hipócrita. Ele a tratava até pior, mas quando era outro falando dela, se sentia no direito de bancar o macho alfa protetor. Sem pestanejar, sua mão foi direcionada ao meu rosto. Eu sabia que não poderia escapar daquele golpe, mas dessa vez, ao menos, não recuaria nem fecharia os olhos. "Pode vir, otário", pensei determinado.
Porém, o soco não me atingiu. Luan foi tão ágil, ao ponto de entrar na minha frente, servindo de escudo conforme o soco acertava seu respectivo rosto. A pancada foi tão forte que Luan caiu no chão da sala. Vendo essa como uma oportunidade, Richard se sentou em cima de seu abdômen, conforme lhe desferia socos incessantes em seu rosto.
O som do rosto de Luan sendo esmurrado era dilacerador. Ele não conseguia se erguer nem se defender. Seu pai não poupava esforços para lhe agredir, lembrando-me da vez em que Luan estava na situação oposta, desencadeando golpes de igual maneira no Rafael na escola. Parecia que os picos de raiva eram algo bem comum em sua família.
— Pai, para!! — Laura gritava das escadas, sua voz embargada.
— Já mandei não se meter, garota. — Apesar da situação crítica, Vivian em momento algum alternou o tom de sua voz. Sua eloquência era majestosa, mesmo que seu caráter fosse vil.
— Para, por favor. — Apoiada ao corrimão, Laura demonstrava um momento dúbio ao ver seu irmão mais novo apanhar dessa forma, ignorando a ordem de sua mãe, enquanto lágrimas caíam de seus olhos.
Liam, por sua vez, estava inerte. Não manifestou nenhum sinal de querer impedi-lo, nem de preocupação com Luan. Acho que ele estava apenas chocado com tudo aquilo; mas seu egoísmo era nítido.
A mão de Richard só parou de socar o rosto de Luan quando um par de mãos femininas a agarraram no ar com firmeza.
— Já chega, senhor Richard. — Celeste, a empregada da mansão, o olhava com severidade.
— Celeste, está maluca? Solte já o meu marido! — A patroa de Celeste tentava impor autoridade, mas Celeste permanecia firme, seu olhar fixo no homem que estava segurando.
— Não irei repetir, senhor Richard. Eu disse que já chega.
— Me solta, sua imunda. — Richard se desvencilhou das mãos dela em um impulso firme. — Agora até os ratos decidiram se rebelar? Quem mais vai querer se meter?
Ele olhou ao redor, os funcionários em um silêncio fúnebre. Nenhum deles teve coragem de se opor a tirania daquele homem, temendo as consequências.
— Foi o que pensei. — Um sorriso maligno permeou os lábios de Richard. Ele voltou-se então para a empregada em sua frente. — Faça suas malas e saia da minha mansão.
— Não irei sair até que deixe seu filho em paz.
— Quem você pensa que é? — Vivian interveio, sua voz finalmente aumentando. — O que acha, querido? Podemos acusar Celeste de roubo de minhas joias e tentativa de agressão. Assim ela aprende com quem está se metendo.
— Uma ótima ideia. Ainda tenho aquele revólver guardado. Basta inserir as impressões digitais dela nele. — Aquele homem inescrupuloso agarrou a gola do avental de Celeste a trazendo para perto, isso enquanto ainda mantinha Luan preso abaixo dele. A mulher de rabo de cavalo buscava afastar seu rosto do dele em repulsa; aposto que ele estava com bafo. — Você acaba de selar o seu destino, vagabunda.
Num ímpeto, o estilhaço do vaso de oitenta mil dólares ressoou quando atingiu a cabeça de Richard. Aturdido com meu próprio ato, testemunhei o pai de Luan cair ferido após meu ataque. Celeste e eu corremos para ajudar Luan a se levantar, deixando a lasca que sobrou do vaso jogada no chão. Apesar do rosto machucado, Luan conseguiu se erguer facilmente.
Olhei para o chão em desespero, temendo ter tirado a vida do pai de Luan. Richard, porém, estava bem vivo — não sei se felizmente ou infelizmente, embora sua cabeça sangrasse e parecesse atordoado.
— Meu vaso tailandês! — Vivian gritou em desespero, mais preocupada com seu bem material do que com seu marido.
Richard, sentado no chão, recostou-se no sofá, visivelmente ferido, incapaz de se manter de pé.
— Não se aproximem mais de mim, nem de quem eu amo. Dessa vez falo bem sério. Se obedecerem, não farei questão de me intrometer em relação aos crimes que cometem, ninguém vai bater na sua porta para te prender por ilegalidades fiscais. — A voz de Luan era firme, embora enfraquecida pela dor.
Luan reavia seu violão do chão exibindo um olhar tristonho, enquanto Celeste e eu permanecíamos ao seu lado. Uma última vez, ele se virou para seus pais, ambos no chão o encarando com ferocidade.
— Não espero que morram cedo. Pelo contrário, quero que vivam muito. O suficiente para um dia se arrependerem. O bastante para que cogitem me pedir perdão, mas já adianto: não o façam. Pois não os perdoarei. Quero que morram com seus arrependimentos, e os levem para o caixão junto do dinheiro precioso de vocês.
Nós três começamos a caminhar, determinados a deixar aquela mansão.
— Luan... — Laura falou em tom baixo e melancólico, inclinada na escadaria, observando seu irmão partir.
— Esse violão. — Com dificuldade, Richard falou sem se movimentar. Luan parou de andar, de costas para ele. — Fomos nós quem o compramos. Você não tem direito a nada nosso, não irá sair com ele.
— Não se preocupe, "Richard". Nunca tive intenção de deixar a mansão com esse instrumento. — Luan sorriu, dando mais alguns passos para frente sem se virar.
Meu namorado virou o violão para o outro lado, agarrado ao braço do instrumento como se fosse um taco de beisebol. Direcionado para o aquário enorme em sua frente, Luan usou de toda sua força para descontar sua raiva e chocar a base do violão contra o receptáculo de água, partindo o vidro em um impacto impiedoso. O som das cordas do violão se chocando fizeram soar um barulho desconcertante, que quase foram ofuscados pelo barulho dos milhares de fragmentos de vidro que caíam no chão junto a água. O instrumento estava totalmente quebrado, assim como o aquário pelo qual passamos por cima, assim que a porta de maçaneta dupla foi aberta, dando acesso ao lado de fora.
Antes de sairmos, porém, ainda consegui vislumbrar uma reação em cadeia que fez o quadro pendurado perto da escadaria se desprender da parede, por pouco não atingindo Liam. O retrato, que compunha todos os membros da família Pimentel exceto Luan, despencou em direção ao térreo com um estrondo retumbante, simbolizando de forma vívida a queda iminente dessa família.
— Acha que irão soltar "eles"? — Assim que saímos, Luan questionou a mulher ao nosso lado.
— Não acho. Tenho certeza. — Celeste andava demasiadamente apressada pelo jardim em direção ao portão.
— Eles quem? — Questionei, confuso.
Porém, não foi necessário que Luan me respondesse. O som de rosnados vindo de trás de nós sinalizavam que ao menos três criaturas amedrontadoras se aproximavam.
— Pitbulls! — Falei em desespero, ao notar os cães correndo em disparada em nossa direção sobre suas quatro patas.
Corremos velozmente, até que chegamos aos portões. Contudo, eles se encontravam trancados. Luan não teria tempo de pegar sua chave. Celeste, determinada, já se encontrava escalando o portão, próxima de saltar para o lado de fora.
— Sobe. Depressa! — Luan fez um apoio com as mãos para mim saltar.
Olhei para trás mais uma vez, vendo que os cães estavam há pouquíssimos metros de distância. Seus grunhidos sinalizavam que estavam famintos, possivelmente o cardápio que os Pimentel prometeram para seus cães era: Kevin à milanesa. Não havendo escolha, coloquei meu pé na mão estendida de Luan, firmando minhas mãos nas barras de ferro do portão. Mesmo tremendo, continuei escalando até chegar ao topo do portão, pronto para descer do outro lado.
Luan começou a subir o portão, e por pouco um dos cães não agarrou seu tênis. Com um salto, juntei-me a Celeste do lado de fora, enquanto Luan vinha logo em seguida. Finalmente estávamos a salvo, do lado de fora da mansão. Os cachorros latiam do outro lado do portão, impotentes para nos alcançar.
— Por que fez isso, Celeste? — Luan questionou a mulher que o ajudou. — Não era para ter se envolvido. Agora, você vai ficar sem emprego. Me sinto totalmente culpado...
— Não se sinta, meu querido. — Ela colocou a mão em seu ombro, tentando confortá-lo. — Eu não podia mais trabalhar em um lugar onde pais tratam seus filhos dessa maneira. Não pude me omitir.
— Você tem seus próprios filhos para criar. Como vai ser agora que perdeu seu emprego?
— Ora, não fiquei inválida só porque fui demitida, vou arrumar outro emprego. Não se preocupe comigo.
Sabia que apenas falar isso não mudaria a preocupação de Luan. Ele se preocuparia com ela, com certeza.
— Vamos para minha casa por hoje, Luan. Iremos ver o que fazer depois. — Tentei mudar o foco da conversa.
— Talvez eu possa ficar um tempo no James. — Luan ponderou.
— Nada disso, Luan. Você irá para minha casa. — Celeste interveio, deixando nós dois atônitos. — Não posso te deixar desamparado.
— Celeste, não posso. Não vou causar mais esse incômodo a você...
— Nada disso, mocinho. O incômodo seria não saber onde você anda enfiado. Por hora, você ficará conosco. — Celeste não aceitaria uma negativa como resposta. Luan se viu, então, inclinado a assentir e sorrir em agradecimento.
Celeste começou a caminhar pela calçada à nossa frente. Olhei para Luan; sabia que nesse momento não havia mais nada a ser dito. Ele não precisava de palavras de conforto, só precisava me ter ao seu lado. Luan apenas balançou a cabeça em minha direção, se virando e caminhando logo atrás dela.
Aquela noite havia sido, sem sombra de dúvidas, a mais agitada de toda minha vida. Superou com folga a primeira vez em que estive naquela mansão. Falando naquele dia, Luan, dessa vez, parecia seguro de si, totalmente o oposto da primeira vez que deixou sua casa. Na ocasião, ele estava desamparado, sem saber o que fazer, ansiedade a mil e possivelmente sabendo que uma hora ou outra voltaria para lá.
Dessa vez não. Ele estava confiante de que nunca mais voltaria para aquela mansão. Havia cortado de vez os laços com sua "família". A certeza veio quando seguiu caminho, sem olhar para trás. Eu, entretanto, fui compelido a me virar uma última vez para fitar aquela mansão monumental e chique; um lar sem nenhum resquício de amor. Era uma casa muito engraçada, nela havia de tudo, e ao mesmo tempo, não havia nada. ¹
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❝GLOSSÁRIO❞
¹ A Casa → Referência a música "A Casa" do poeta Vinicius de Moraes, de 1980.
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