15. Fibonacci

          O aroma do petit gâteau que seria servido de sobremesa ainda pairava no ar, o que só intensificava minha frustração por termos sido convidados a nos retirar da mesa de jantar e acompanhá-lo para o seu escritório antes de poder saboreá-lo. O olhar inquisitivo da senhora Vivian, ao lado do senhor Richard, só reforçava o clima tenso.

          Assim como todo os cômodos dessa mansão, o escritório transmitia uma visão de luxo, repleto de estantes de livros que se estendiam até o teto. A iluminação suave destacava a decoração clássica e a escrivaninha feita de madeira de cedro. A atmosfera era austera, com a porta agora fechada, criando uma barreira física entre nós quatro e os demais membros da residência.

          O pai de Luan caminhava de um lado para o outro, já visivelmente irritado. Seu rosto refletia descontentamento, e a maneira como apertava a mão com força indicava que a tensão estava prestes a se desdobrar em uma repreensão severa.

— O que vocês pensam que estavam fazendo?! — esbravejou Richard, direcionando seu olhar de desaprovação para nós dois.

          Luan tentou explicar, mas a fúria de seu pai não permitia brechas para palavras, o fazendo se calar antes mesmo de abrir a boca.

— Saindo com um garoto, Luan? Você enlouqueceu?

          Meus olhos encontraram os de Luan, onde vi a angústia refletida em seu olhar. Não podia ficar em silêncio diante da injustiça, então respirei fundo e me pronunciei.

— Senhor Richard, nós só estávamos...

— Você, fique fora disso! — Richard interrompeu abruptamente, apontando para mim com indignação.

          Apesar de sua reação, eu insisti, tentando manter a calma que ele claramente não merecia:

— Foi apenas um beijo, um maldito beijo!

— E foi apenas uma única mordida numa maçã que fez o mundo ser acometido pelo pecado. — Seu olhar fuzilante cortou o espaço entre nós. — Se quiser cavar sua vaga para o inferno, fique à vontade. Mas não vai levar meu filho junto contigo. Se bem que, nem sei se ainda posso chamá-lo de filho depois disso.

          Uma risada abafada escapou dos lábios de Luan, enfrentando os olhares inquisidores de seus pais.

— Virou religioso agora? Preocupado que vou para o inferno por ter beijado outro garoto, ou está pensando em se tornar pastor? O dinheiro desviado das suas empresas não é suficiente para satisfazer sua ganância? Agora irá até mesmo roubar o dízimo...?!

           Antes que Luan pudesse concluir sua fala, sua mãe avançou com rapidez, caminhando elegantemente e com firmeza sobre o chão de madeira. Apareceu diante dele tão velozmente que mal tive tempo de registrar com o olhar. O som do tapa ressoou tão alto, ecoando no escritório, que cheguei a duvidar se o isolamento acústico seria capaz de abafar o impacto o suficiente para impedir que seus irmãos e os empregados ouvissem do lado de fora.

          O golpe foi tão poderoso que Luan cambaleou para trás, quase perdendo o equilíbrio. A estante ao seu lado salvou-o do tropeço, pois instintivamente agarrou-se a ela. Observei, boquiaberto, enquanto ele se recompunha, agora ostentando uma evidente marca vermelha de cinco dedos em seu rosto.

— Não criei um filho para me envergonhar dessa maneira. Dezessete anos proporcionando do bom e do melhor para você, e é assim que decide retribuir? — Vivian, com o nariz erguido e um tom de desprezo, olhava de cima para seu filho caçula, como se fosse um rato acuado. Mesmo diante do ocorrido, ela mantinha sua postura firme.

          Para mim, tudo isso era inconcebível. Os acontecimentos estavam tomando rumos totalmente desproporcionais, começando pelo fato de que, apesar de saberem sobre o que os outros filhos fizeram, escolheram confrontar apenas Luan, tratando as ações deles como se fossem apenas pequenos problemas pontuais a serem corrigidos, enquanto ele era tratado como uma aberração.

— Pelos céus, ao menos não fui eu quem os flagrou cometendo essa imoralidade. Só Deus sabe o que faria se tivesse visto. — Richard, com ambas as palmas das mãos sobre a mesa do escritório, tentava inspirar fundo e expirar a fim de se acalmar, embora fosse evidente que ainda estava exaltado. Ele parecia prestes a enfartar a qualquer momento. Confesso, eu não acharia ruim se isso acontecesse.

"Para quê, Luan? Para chamar a atenção? Para provocar nossa fúria? Esqueceu do acordo que tínhamos? Quer arruinar tudo?!".

          Olhei para Luan, buscando entender a que seu pai se referia. O garoto de smoking ao meu lado encarava seu progenitor de volta, repleto de raiva.

          Aproveitando o breve silêncio no escritório que se instalara, arrisquei dar minha opinião, torcendo para não ser interrompido:

— Vocês estão sendo cruéis demais com o Luan! Não fizemos nada de errado. Muito pelo contrário, acho que quem está errado aqui são vocês.

— Cala a boca!! — Vivian esbravejou tão alto que as janelas do escritório vibraram com seu tom de voz agudo. — Se bem que não me surpreende em nada. O que esperar de um marginal como você? Só essa roupa que está usando custa mais do que seus pais receberiam em meses de trabalho. A opinião de um necessitado, do qual sua vida vale menos do que a camisa social que está trajando, de merda nenhuma me vale. Aprenda uma coisa, no mundo nós somos o que temos. Se você não tem nada, você é só uma formiga ocupando espaço e servindo de escada para quem tem. Então ponha-se em seu lugar, insolente!

          Aquelas palavras me fizeram congelar por alguns instantes, sem reação diante de tamanha soberba. Contudo, como num lampejo, Luan soube exatamente como agir. Ele chegou por trás de mim, arrancando à força minha camisa ao puxá-la para o seu lado pela barra, fazendo inclusive com que alguns botões voassem pelo escritório.

          Fiquei constrangido por estar sem camisa diante dos três, e aparentemente, o choque nos pais de Luan era semelhante ao verem o que o filho fizera, presumidamente imaginando que ele estivesse prestes a cometer alguma imoralidade diante deles. Luan, porém, lançou a camisa no chão bem ao centro do escritório e, em seguida, usou seu sapato social para pisar nela, deixando sua marca naquela vestimenta branca.

— Então, fiquem com ela. Kevin não precisa disso. E não ousem mais falar merda a respeito dele. Ele vale mais do que tudo o que vocês têm nessa mansão e nas suas contas bancárias. Kevin vale mais do que vocês dois juntos. Vocês não valem mais do que a "camisa" que ele está usando agora.

          Enfatizando o fato que eu sequer estava trajando uma camisa naquele momento, Luan riu triunfante. Foi como se me ver sendo atacado por eles fosse o gás que precisava para finalmente confrontar seus pais.

— Você enlouqueceu?! Quer levar outro tapa do outro lado da sua cara para ficar com os dois lados iguais? — Sua mãe ameaçou, dando um passo em nossa direção. O que a impediu de prosseguir foi o braço estendido do senhor Richard em sua direção.

— Quero que você caia fora da minha casa imediatamente — Ele olhou em minha direção. Seu tom não estava mais alto, contudo, ainda era evidente o nuance autoritário. — Nunca mais quero que ponha os pés nessa casa, tampouco que se aproxime de qualquer membro da família Pimentel. Já você — Agora seu olhar foi direcionado ao filho —, bem que sua mãe havia me dito que mandá-lo para um colégio público não iria resolver. Vou fazer o que já deveria ter feito há muito tempo. Te mandarei para o colégio interno do meu amigo em Londres. E, para o seu próprio bem, é bom que dessa vez você ande na linha. Se mesmo longe, ainda receber notícias sobre seu comportamento inadequado, aí sim terei um filho a menos.

          Sob o convite para me retirar, o homem de porte musculoso apontou com o braço para a porta fechada. Hesitei, sem saber o que fazer. O que eu mais queria era, de fato, sair dali, mas não podia deixar Luan naquela situação sozinho.

          O que me despertou de meus receios foi a mão gélida de Luan, tocando meu pulso. Me segurando, Luan se encaminhou junto a mim em direção à porta. Iríamos sair dali juntos.

          Antes que sua mão alcançasse a maçaneta, todavia, seu pai se adiantou e chegou primeiro, pressionando a porta com a mão, impedindo que ela fosse aberta e nos desse acesso à liberdade daquela prisão paradoxal.

— Você não. Somente ele. Você ficará trancado nessa casa até que tudo esteja resolvido para te mandar para o Reino Unido. Vocês dois nunca mais se verão. E se ocorrer de sua boca encostar na de outro homem, eu juro que quebro os seus dentes! Estamos entendidos?

          Consegui sentir a tremedeira da mão de Luan em meu pulso. Mesmo mostrando rigidez como uma rocha por fora, ele claramente temia seu pai mais do que tudo. Aos poucos, senti seus dedos afrouxarem e se soltarem do meu pulso.

          Com firmeza, encostei minha mão na dele. Entrelacei nossos dedos, diante de seu pai. Luan olhou surpreso para mim, e eu mantive meu olhar determinado, balançando a cabeça. Essa era a hora de agir, e esse era meu apoio para ele.

— Nós iremos sair daqui, e vocês dois não nos impedirão — Luan falou, encarando seu pai de forma tão feroz quanto, sem soltar nossas mãos.

          Quase podia ver fumaça saindo pelos tímpanos de seus ouvidos. Aquele homem carrancudo não deixaria esse ato passar ileso. Mas Luan ainda tinha um trunfo na manga.

— Quarta estante desse escritório, a contar da janela. Terceira prateleira, de cima para baixo. Atrás dos livros, um fundo falso. Nele, um cofre. A senha? Você deveria ter sido mais criativo, "paizinho", do que colocar a sequência de Fibonacci¹ até o número 144.

"Ora, afinal, a sequência de '55, 89 e 144', do Fibonacci, tem um significado coincidente para você, não é mesmo? Você, com toda sua pomposidade e arrogância, nunca cansou de se vangloriar do seu feito. No dia cinco, do mês cinco de 1989 foi quando você recebeu o resultado do seu teste de QI, com apenas 13 anos de idade. O resultado? 144. Sendo justamente treze, sua idade na ocasião, a quantidade de números de Fibonacci até o cento e quarenta e quatro".

          Eu e a senhora Vivian olhamos confusos para Luan, sem entender ao que ele se referia. Seu pai, contudo, parecia atônito com aquela informação.

— O senhor sempre se gabou da sua inteligência acima da média, elevando os negócios da família que já eram bem-sucedidos com sua expertise. Com isso, sempre amou a sequência de Fibonacci e como ela coincidia com esse evento importante para o senhor. Foi através disso que descobri a senha.

"Você sabe muito bem o que há dentro do cofre: Comprovantes que você desviava dinheiro de empresas sócias quando mais novo. Elas vieram a falência, já o senhor ascendeu em sua carreira. Foi assim que começou a acumular sua fortuna. E mais do que isso, os milhões, não, eu diria bilhões, que deve em sonegação de impostos lhe levariam à falência se essas informações viessem a público".

          A mãe de Luan, alheia a essas informações até então, estava com os olhos esbugalhados e perplexa, ao ponto de se apoiar na cadeira quando sua pressão abaixou. Essa família era um vespeiro de segredos, e Luan parecia tê-los guardado a sete chaves para quando precisasse utilizá-los. Tudo o que precisou foi de coragem para dar o primeiro passo.

— Iremos embora — Luan repetiu, seu olhar resoluto. — Não se preocupem, não piso mais aqui. Não quero mais saber de vocês na minha vida. Se vierem atrás de mim, esse castelo de cartas de fachada irá ruir.

          Extremamente frustrado, a contragosto, o pai de Luan respirou fundo e deu um passo para o lado, liberando caminho para nossa passagem.

— Luan! — A mãe dele gritou, assim que a maçaneta foi pressionada por ele.

— A senhora deveria se preocupar mais com quem está dormindo do que com minha sexualidade — Luan falou em tom frio, sem olhar na direção de sua mãe. — Píer trinta e seis, cofre de armazenamento seis, rua Marítimo Resguardado. As provas da infidelidade do seu marido estão lá.

          Com sua mãe ficando em choque com essas novas informações, eu e Luan enfim deixamos o escritório.

          Nós passamos pelo hall da entrada de forma apressada, Luan ainda segurando minha mão. Os empregados olhavam em nossa direção, curiosos sobre o que acabara de ocorrer. De igual forma, Liam e Laura, que estavam sentados no sofá apreensivos, buscavam com o olhar informações sobre como foi nossa "reunião" com seus pais.

          Não entendam errado. Eles não demonstravam um pingo de arrependimento por jogarem Luan na fogueira. Deviam estar mais preocupados com os próprios umbigos.

          Antes de cruzarmos o portão para o lado de fora do terreno, Celeste, a amável empregada da mansão que conheci mais cedo, me chamou com a mão e apontou para minha mochila que ela segurava. Pedi para Luan me aguardar do lado de fora e fui em sua direção para recuperar minha mochila e minhas roupas, afinal, eu estava sem camisa no momento.

— Imaginei que isso ocorreria cedo ou tarde — Ela sussurrou, enquanto eu vestia minha camisa, em um canto do jardim em que ninguém mais nos via. — Eu havia deixado preparado caso a situação pedisse. Por favor, seja discreto. E cuide bem dele.

          Celeste me entregou um pesado saco preto. Ao bisbilhotar dentro dele, percebi que havia várias roupas de Luan lá, empilhadas de forma desorganizada. Ela claramente estava se colocando em risco ao me entregar aquilo, por isso agradeci enquanto pegava, de igual forma, a mochila de Luan que também me foi entregue.

          Uma vez fora do terreno da mansão, me deparei com Luan digitando algo em seu celular de forma apreensiva.

— O que é isso? — Ele perguntou quando notou minha presença, ao reparar na sacola em minhas mãos.

— Suas roupas — Entreguei a ele. — Aquela empregada parece gostar bastante de você.

— Celeste é gente boa, uma das poucas pessoas que se salvam daí de dentro — Luan falou sem dar muita importância, voltando a atenção ao seu celular.

— O que está fazendo?

— Estou procurando uma casa ou um apartamento para alugar. Quem sabe até mesmo uma pensão. Não tenho muito dinheiro guardado, então preciso achar algo em conta e rápido.

          Me coloquei em sua frente, olhando em seus olhos. Ele estava tendo uma crise naquele momento, e seu desespero para buscar um lugar para dormir enfatizava que ele já havia perdido o controle da situação, que julgava ter até então.

— Se acalme! — Coloquei minhas duas mãos sobre seus ombros. Ele levantou o olhar assustado.

— Eu estou com medo, Kevin — Seus olhos marejados deixavam evidente que suas ações naquele dia tomariam consequências drásticas.

— Eu sei. Não vai ser fácil, mas eu estou aqui por você. E você vai ficar na minha casa. Ao menos, até que consiga voltar a ficar na casa do James, seja lá o que te impeça de ir para lá nesse momento.

— Não posso, Kevin. Seus pais...

— Darei um jeito nisso. Me deixa te ajudar, caramba! — O abracei, tentando acalmá-lo e demonstrar que estava disposto a dar um jeito de resolver aquela situação. Mesmo que eu não tivesse dito a ele, me sentia meio culpado por tudo o que houve.

          Não falamos mais nada, apenas caminhamos juntos em direção ao ponto de ônibus. Uma vez dentro dele, Luan caiu no sono assim que se encostou do lado da janela, conforme as paisagens noturnas do lado externo passavam ao nosso redor. Aproveitando-se de que ele estava dormindo, peguei meu próprio celular e liguei para uma certa pessoa.

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❝GLOSSÁRIO❞

¹ Fibonacci  na matemática a sequência de Fibonacci é uma sequência de números inteiros, começando por 0 e 1, na qual cada termo subsequente corresponde à soma dos dois anteriores. 

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