Capítulo 5

Anos depois, antes das oito horas da manhã, eu estava entrando no Colégio Santa Doroteia, aquele que viria a ser minha primeira experiência oficial como professora de português e literatura, a profissão que escolhera.

Bem, não exatamente como professora. Eu estava apenas no quinto semestre de Letras e tudo o que poderia ser naquele momento era estagiária. Mas ao menos eu estava em um nível mais alto na hierarquia da escola do que um estudante de ensino médio, por mais que eles pudessem ter apenas três ou quatro anos a menos.

Sempre soubera que seria professora. Desde criança, quando brincava de ensinar minhas bonecas e usava as portas do guarda-roupa como quadro negro ou quando juntava as colegas em minha casa para estudar e comandava todo o processo. Enquanto todos da minha série se escabelavam por decidir qual curso e universidade ir, só precisava escolher se faria Pedagogia, como minha mãe, ou Letras.

Então, lá estava eu, ingressando com o pé direito no meu primeiro dia, do meu primeiro emprego, em uma escola particular de classe média bastante longe de casa.

Entrei no prédio, agora com olhos diferentes. Eu já havia entrado na escola, claro, para fazer as entrevistas. Só que ver tudo outra vez com os olhos de alguém contratado era bem diferente. Ainda mais diferente era ver uma escola como professora, não mais como aluna.

Assim, andei por um longo corredor com duas tonalidades de verde onde as paredes estavam repletas de obras que, imagino, fossem dos próprios estudantes. Ao final da exposição, havia uma sala envidraçada onde se lia Secretaria, e o corredor se separava em dois lados, um, à direita, que eu lembrava ser o lado do auditório e da escada dos estudantes para as salas de aula, e outro, à esquerda, onde ficavam a direção, vice-direção, coordenações e toda a parte administrativa.

A coordenadora pedagógica, Lígia, era uma mulher simpática de meia idade, baixinha e gordinha, com cabelos curtos escuros com mexas acobreadas. Ela me aguardava para o início de minha jornada.

— Bom dia, Carolina. – ela disse, com a mesma voz agradável e melodiosa que havia me dado a notícia de que seria a mais nova estagiária de Linguagens do colégio. – Que bom te ver! Tá nervosa?

— Um pouco. – confessei.

— Não precisa ficar. – ela falou, passando a mão por meu braço, em um gesto carinhoso. – Hoje é o dia da reunião dos estagiários, então até o recreio você estará comigo e vou apresentar você para o resto do grupo.

A segui pelo corredor e ela foi me apresentando aos funcionários do administrativo que lá estavam, o diretor, a orientadora e psicóloga, etc. Depois viramos à direita, passando pela sala da reprografia, e continuamos nosso caminho até o fim daquele corredor cercado de portas e janelas que davam para o pátio central, agora vazio. À esquerda havia um elevador, dois banheiros, masculino e feminino, e uma escada estreita que levava aos próximos andares; à direita, havia duas portas: uma estava aberta e dizia Sala de professores; a outra estava fechada e era a Sala de Reuniões, que foi onde entramos.

Lígia abriu caminho e segurou a porta, fazendo um gesto para que passasse. Meu estômago se revirou ao ver tantos rostos me observando. Senti-me como um animal de zoológico. Só faltava lançarem comida por cima da grade.

Minha agora coordenadora pedagógica começou me apresentando aos outros do grupo, que já estavam sentados na grande mesa oval no centro da sala. Cada área do conhecimento tinha dois estagiários, e, junto comigo, na área de Linguagens, havia Fernanda, um pouco mais velha, talvez uns vinte e seis anos, com cabelos crespos e escuros, mais ou menos de minha altura. A julgar por seu rosto sem nenhuma expressão e seu sorriso forçado de dois segundos, ela não era uma pessoa fácil.

Em Ciências da Natureza, Mariana, magra, alta, uma morena tão bonita quanto uma modelo internacional, daquelas que, se visse na rua, nunca imaginaria que seria professora, e Douglas, magro e também alto, bem alemão – muito branco, muito loiro e de olhos azuis, como a Andressa – e, pelos gestos ao me cumprimentar, super gay também.

Na área de Matemática, Camila, morena, estatura média, nada de mais, e Heitor, quase da minha altura, gordinho e com um sorriso muito simpático.

No canto da mesa Júlia, a também nova estagiária de Ciências Humanas (desde a quinta-feira anterior), uma garota magra e baixinha, com o nariz um pouco desproporcional ao seu tamanho, com longos cabelos descoloridos com pontas rosadas; e Antônio, com cabelos castanho-claro meio bagunçados, olhos azuis escuros, um tom meio acinzentado, e o sorriso de quem havia frequentado por muito tempo o consultório do melhor ortodontista da cidade. E não poderia esquecer de dizer: um charmosíssimo furinho no queixo.

Sentei em uma cadeira entre os estagiários da Natureza, enquanto Lígia sentava na outra ponta da mesa. Passamos a manhã discutindo estratégias. Eu tentava anotar tudo quanto possível, mas a conversa era rápida e muita coisa se perdia. Senti que Júlia e eu estávamos sendo esquecidas em vários momentos, pois ninguém se preocupou em nos explicar direito sobre o que estavam falando. Por alguns momentos só observei e ri com todos quando algo engraçado era dito, ainda que muitas vezes não entendesse o porquê.

Ao final da reunião, me sentia meio tonta e atordoada, então resolvi sair da sala rapidamente sem falar com ninguém, planejando ir até a sala de professores onde sabia que havia uma cafeteira cheia. Porém, como estava no canto contrário da saída, precisei esperar todo mundo sair até chegar na porta.

Logo que pus meus pés para fora do local, virando à direita para a sala de professores, senti uma mão no meu ombro esquerdo antes que pudesse me mandar dali, me obrigando a virar com o sorriso mais falso e agradável de meu repertório de sorrisos.

— Oi. – disse o estagiário sorridente, que naquele momento sequer recordava o nome. – Antônio, caso você não se lembre.

— Carolina. – respondi, agradecendo por dizer novamente o seu nome antes que precisasse chamá-lo de amado ou querido, o que seria muito esquisito, dadas as circunstâncias. Afinal, ele não era um estudante da escola.

— Vi que você ficou bastante perdida na reunião. – falou.

Concordei com a cabeça e tentei sorrir amigavelmente outra vez, já que o primeiro já havia morrido, mas acho que não tive muito sucesso. Meu nervosismo era evidente.

— Se precisar de qualquer coisa, se quiser ajuda, conselhos, pode falar comigo. – ofereceu, mostrando todos os seus dentes perfeitos e brancos. – Sou o estagiário mais antigo do grupo, então posso tentar resolver seus problemas.

Antônio deu uma piscadinha e soltei uma risadinha involuntária. Ele parecia um cara divertido.

— Legal. – respondi, sem saber mais o que dizer.

Ele se postou ao meu lado e seguimos os outros para a sala de professores.

— Você tá na mesma universidade que eu, sabia? – contou.

Claro que não poderia saber, sequer os conhecia. Mesmo assim sorri. Lígia havia me apresentado e pedido que contasse qual minha idade, curso, semestre, universidade, essas coisas. Só que se esquecera de fazer o mesmo com meus colegas. Logo, eu não os conhecia o suficiente nem para saber do que falar.

— Legal. – respondi, monossilábica outra vez.

— Faço História, último semestre. – ele disse, sem que eu tivesse perguntado.

— Que legal.

Caramba, será que eu só sabia responder isso? Antônio não pareceu perceber minha pouca ou nenhuma capacidade em me expressar corretamente. Ou deixou passar, devido ao meu nervosismo aparente.

— E você faz Letras. – lembrou, seguindo até um balcão alto que era provavelmente a divisa entre a sala e a cozinha. – Qual semestre mesmo?

— Quinto. – eu disse, chegando ao nosso destino e parando junto aos outros.

— Tô me formando agora, por isso em dezembro saio da escola.

Ele não parecia feliz por isso. Quem estaria?

Virei o rosto, analisando a situação do local e notei que todos iam até um armário e pegavam uma xícara, depois seguiam até uma fila que se formava atrás da cafeteira.

— Ninguém me disse que era pra trazer uma xícara! – suspirei, já pensando em qual recipiente traria no dia seguinte.

— Você pode usar a minha, se quiser. – ofereceu Antônio ao meu lado. – Eu não bebo muito café.

Fernanda, que estava atrás dele, fez uma expressão reprovadora, então abriu uma gaveta e fez surgir um copo plástico, enfiando-o no meu caminho.

— Não se acostume. – me advertiu. – Sugiro que traga uma xícara ou copo pessoal amanhã, pelo bem do meio-ambiente.

Verifiquei a expressão surpresa e ao mesmo tempo divertida de meus colegas na fila do café, sem saber o que responder. Peguei o copo, sorrindo sem dentes para fingir que não havia me incomodado pelo tom autoritário da garota, e segui para o fim da fila. Douglas, o loiro alto na minha frente, me olhou com ternura, balançando a cabeça para colocar a franja no lugar, e disse, baixinho e delicadamente:

— Ela tem esse costume de ser agressiva às vezes, mas não é má pessoa, viu? Quando se conhecerem melhor, você verá.

Pedi aos céus que isso fosse mesmo verdade e eu não acabasse odiando a estagiária que deveria ter mais coisas em comum comigo e poderia me ajudar quando precisasse. Então sorri e começamos a conversar sobre a escola e sobre alguns alunos, até que pude me servir e o sinal para o recreio tocou, fazendo o lugar encher rapidamente.

Lígia apareceu de repente ao meu lado, depois de um tempo, me chamando:

— Vem que vou te apresentar para os professores da área de Linguagens.

Ela então me puxou pelo braço e me guiou até a mesa no centro da sala, onde algumas pessoas já estavam sentadas.

— Cíntia, Leila, – chamou ela, fazendo duas mulheres se virarem para nos olhar. – Essa é a Carolina, a nova estagiária.

A mais nova, morena, cabelos curtos, lisos e negros, levantou e se aproximou, mostrando ser bem mais baixa que eu, provavelmente um metro e meio de altura.

— Muito prazer, honey! – ela disse, já me abraçando, com um largo sorriso no rosto que me fez saber que eu gostaria muito de sua companhia.

Sorri desajeitada e a abracei de volta, sentindo seu perfume adocicado.

— Eu sou a Leila, professora de inglês. – apresentou-se. – Tô muito feliz em te conhecer. Nós estávamos te esperando há um bom tempo. Diz que você sabe inglês!!

— Sim, estudei por alguns anos. – respondi, me libertando do abraço.

A outra professora, Cíntia, supus, tinha por volta de cinquenta anos, com cabelos loiro-amarelados na altura dos ombros e parecia ser aquele tipo de professora mãezona, que todos adoram. Ela também levantou e veio até mim, me abraçando com menos intensidade.

— Cíntia, muito prazer, português, literatura e produção textual.

— Hoje ela pode te acompanhar. – falou Lígia. – Por enquanto a Carolina só observa as aulas.

— Claro. – Cíntia respondeu.

— Senta aqui pra gente se conhecer, amada. – pediu Leila, puxando uma cadeira ao seu lado, onde sentei. – Qual o semestre, universidade, quais suas experiências, onde aprendeu inglês? Quero saber tudo.

E foi assim que passamos todo o intervalo, elas fazendo perguntas e eu respondendo, ou elas me apresentando aos outros professores.

Tentei ser breve em minhas respostas. Não precisava dizer que havia começado a dar aula de inglês logo que Victor Hugo fora para o Paraná e que fiz isso apenas para distrair minha mente.

Contando essas histórias para duas desconhecidas, nem vi que já havia passado o intervalo e precisávamos subir para eu ser apresentada para as turmas em que Cíntia teria aulas: os temidos primeiros anos. E até que não foi tão ruim.

— Mas você só trabalhou um dia, como pode saber? – indagou Andressa, antes da aula, na parte externa da cafeteria do meu prédio.

Ora, se não era esse meu sonho há tanto tempo, trabalhar em uma escola? Será que não tinha o direito de viajar um pouquinho nas minhas expectativas?

— Por que você é sempre tão do contra? – respondi de volta.

Não era a toa que fazia Direito, tão contestadora.

— Gosto de ser pé no chão. – remexeu-se na cadeira, fazendo-a ranger no piso de pedra.

— Tá bem. – retruquei, sarcástica, fazendo careta.

— Agora me conta, alguém interessante nessa escola, amiga? – perguntou Michele, minha melhor amiga/colega de curso, prendendo seus longos cabelos vermelhos e volumosos em um coque solto.

Estava sentada a minha frente na pequena mesa metálica verde.

— Bem... – comecei, imaginando cada pessoa que havia conhecido. – todos são interessantes.

Eu mal os havia conhecido para saber o que dizer de todos. Ainda não tínhamos intimidade.

— Cá, estamos falando dos outros estagiários... do sexo masculino, de preferência. – Dêssa explicou, inclinando-se para frente a fim de escutar melhor.

— Achei que você estava interessada naquele tal de Bruno! – insinuei, tentando me esquivar de ter que responder.

— Eu tô falando de você, sua boba.

Eu não entendia essa fixação dela em me arrumar um namorado. Ela é que devia estar procurando um para si, ora.

— Ah! Eu estava perdida demais para perceber algo assim. E muito nervosa. – suspirei.

Mas era óbvio que eu estava mentindo. Era muito mais fácil dizer essas coisas do que admitir em voz alta que algum cara tinha me chamado atenção.

Afinal, Dêssa não pensaria em outra coisa que em nos juntar.

— Porém...

Michele deu um gritinho entusiasmado a minha frente, apoiada nos cotovelos, me fazendo rir.

— ...acho que pode ter alguma pessoa interessante lá. Sabe que tudo depende de contextos e contextos, mas se estamos falando apenas de beleza, acredito que tenha um, pelo menos.

— Fala, fala, fala!!! – implorou Michele, piscando seus longos e escuros cílios.

— Nada demais, na verdade, tem quatro estagiários do sexo masculino. Acho que um pode ser desconsiderado, porque claramente é gay.

— Você não presta atenção em nada. E os professores? – perguntou Andressa.

— Não acho que ter alguma coisa com um colega de trabalho seja uma boa ideia, ainda mais um professor. – me fingi de horrorizada. – Seria como ter algo com meu superior. – acrescentei, com cara de nojo. – E imagina se o relacionamento não dá certo e tenho que conviver todos os dias com uma pessoa que não suporto. Vocês já viram quantos filmes já foram feitos sobre esse assunto?

Eu já conhecia a situação. Não que tivesse passado por isso, é verdade.

— Por isso tá solteira. – Michele comentou. – Você não se deixa levar pelas oportunidades que a vida te oferece, Carola.

Suspirei fundo, resmungando, irritada. Michele havia começado a me chamar assim depois que passei um tempo bastante grande sem ficar com ninguém: quatro meses, para ser exata. Não que não houvesse oportunidades. Eu apenas decidi não perder tempo com gente idiota.

A verdade é que eu não tinha muita sorte no quesito relacionamentos. Parecia que só chamava atenção de gente sem noção.

Além disso o semestre passado tinha sido difícil: quase reprovara em uma cadeira de sintaxe. Desde então, não tinha mais saído com ninguém, nem nas férias antes do segundo semestre, em julho, quando passara o mês todo lendo e dormindo embaixo das cobertas, me escondendo do frio.

Fiz uma careta de reprovação, cruzando os braços e revirando os olhos.

— O nome dele é Antônio. – confessei.

As duas malucas começaram a gritar feito as duas adolescentes idiotas que eram, mas tratei de acabar com suas expectativas antes que fosse tarde.

— Mas podem esquecer isso, por favor. Ele é meu colega, então vocês sabem que não vai rolar.

Michele suspirou ao meu lado e eu acrescentei com um sorrisinho sem-vergonha:

— Pelo menos até dezembro, quando ele se forma e sai da escola.

Andressa deu um grito tão alto de felicidade que várias pessoas da cafeteria se viraram para ver o que estava acontecendo. Ainda não entendia porque ela estava tão convicta em me arrumar um namorado sério. Por que diabos não ia procurar um para ela?

— Dêssa!! Menos!!! – implorei, entredentes.

— Então tem uma possibilidade. – ela respondeu. – E o melhor é que você pensou nessa possibilidade. O que significa que você se interessou mesmo pelo cara.

— A gente precisa ver como ele é! – suspirou Michele. – Ele tem Facebook? Instagram?

Revirei os olhos mais uma vez. Essas duas não iam largar do meu pé? Será que não viam que não valia a pena? Eu não precisava de um namorado. Nem elas.

— Não tenho ele como amigo nas redes sociais. Nem sei o sobrenome pra poder procurar. Então se acalmem! A gente se conheceu hoje!

— Difícil quando aparece uma leve oportunidade de você finalmente arrumar alguém e você não se dá conta. – Andressa falou.

Como se todas as mulheres precisassem arrumar alguém para serem felizes. Por que a sociedade acha que uma mulher não pode ficar feliz sozinha?

Se eu estava feliz? Naquele momento, sim, recém-empregada naquilo que tanto queria fazer. Se eu estava mesmo precisando de uma boa sessão de beijos e amassos? Possivelmente também, mas e daí? Eu não precisava de um namorado para isso. Era só ir a qualquer festa que rapidinho alguém aparecia. O que talvez fosse mesmo uma boa ideia para aquele final de semana. Assim elas largariam do meu pé.

— Precisamos ir para a aula. – encerrei o assunto para que elas não se estendessem por mais umas três horas e me atrasasse pra o primeiro período.

****************

Será mesmo que a Cá vai conseguir não se envolver com Antônio?

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