Capítulo 3
2944 palavras
Entrei em casa quase tremendo e subi as escadas direto para o quarto, passando silenciosamente pela porta de minha mãe para que ela não aparecesse. No entanto, não havia ninguém lá. Ela provavelmente estava no andar de baixo e nos fundos, pois não escutei nenhum ruído.
Eu sabia que ela estava em casa, pois costumava chegar por volta de seis e meia da noite e já era quase sete. Além disso, vi seu carro na garagem assim que entrei.
A qualquer momento ela apareceria, eu tinha certeza. Minha mãe parecia ter um faro para saber quando eu chegava. Já esperava que, logo que me visse chegar àquela hora, fosse dizer: Carolina, sua irresponsável, você não tem juízo? Voltar pra casa a essa hora sozinha? Essa semana minha colega foi assaltada quando estava indo pegar o carro. Ela tá com transtorno de estresse pós-traumático, sabia? Já pensou se fosse você?
É claro que sabia de tudo isso, porque era o que a ela mais adorava contar, sabe, desgraças alheias. Sem contar que era uma mulher pra lá de dramática, transformando tudo em um grande dramalhão mexicano, cheio de mortes ou gravidezes indesejadas.
Trabalhando onde trabalhava, seria bem possível que muita história fosse verdade! Ela era professora do ensino fundamental em uma escola municipal de periferia, um lugar que eu mesma não tinha coragem de visitar.
Passei pela porta aberta de meu quarto e joguei a bolsa na cama desarrumada. Me atirei no colchão, tomando o cuidado de deixar os pés para fora, já que minha mãe ficaria furiosa se eu sujasse alguma coisa com minhas botas.
Fiquei ali naquela posição por vários minutos contemplando o teto no escuro. Um sorrisinho idiota teimava em surgir de tempos em tempos em meus lábios, enquanto eu repassava mentalmente cada instante vivido naquele começo de noite, o que poderia ter feito diferente, o que não poderia. Por que eu ainda sentia aquela estranha sensação no estômago? Maldita mania de ficar criando expectativas!
Se contasse para alguém, talvez achassem que tinha sonhado. Ou que era louca. Aquele tipo de encontro inesperado não acontecia na vida real, talvez em livros e filmes.
Mas eu não era uma pessoa muito óbvia nem comum, e coisas estranhas viviam acontecendo comigo. Parecia haver uma espécie de imã para o perigo.
Quase um ano antes, minha irmã mais velha, Cristina, havia ido me buscar em uma festa na casa de uns colegas quando uma moto parou ao nosso lado em uma sinaleira e dois caras, ainda de capacete, nos mandaram abrir o vidro e entregar o celular e a carteira. Minha irmã rapidamente entregou tudo. Eu, no entanto, tinha bebido um pouco demais e acabei dizendo que não entregaria nada, pois meu celular era velho e estava quebrado e eu não tinha nem um tostão furado.
Os caras ficaram irritados e Cristina engatou a marcha e pisou fundo no acelerador nos tirando de lá sãs e salvas. Foi realmente uma atitude idiota, já que o revólver que tinham poderia muito bem ser verdadeiro e uma de nós poderia não estar viva para contar a história. Contudo, só fui me dar conta disso tudo no dia seguinte ao acontecido, quando acordei e todas as cenas me vieram a mente.
Obviamente nunca revelamos isso a nossos pais, ou minha mãe teria um ataque do coração e nunca mais nos deixaria sair de casa. Muito menos teria deixado que minha irmã fosse fazer intercambio nos Estados Unidos, que era onde estava no dia que o desconhecido me salvou.
Depois de alguns minutos pensando no cara da rua, escutei os passos de minha mãe nas escadas e no corredor. Ela entrou no quarto escuro e acabou levando um susto ao ligar o interruptor de luz e me ver ali em silêncio, o que fez com que derrubasse todas as roupas que trazia no chão
— Carolina! – gritou, colocando a mão no peito. – Você vai dobrar todas essas roupas de novo, sua maluca. O que faz aqui no escuro?
Dei uma risadinha, achando graça por ter assustado minha mãe inconscientemente.
— Foi mal.
Ela se agachou e começou a catar do chão todas as peças de roupa que então haviam virado um emaranhado de tecido. Fiquei com pena, pois provavelmente ela tinha acabado de passá-las.
— Isso são horas de chegar em casa, filha? Já tá escuro. Você disse que não ia demorar e depois sequer respondeu as mensagens que eu mandei.
Praticamente o mesmo discurso que havia imaginado que faria.
— Eu sei, mãe. Demorei a achar algo que gostasse. – menti. – E esqueci de ligar a internet no celular.
Nem havia escutado ele tocar dentro da bolsa.
— Você veio como? – ela quis saber, arrumando os cabelos castanhos, iguais aos meus, só que mais curtos, de volta no prendedor no topo da cabeça.
— Peguei carona, mãe. – respondi, me sentando com as pernas para fora da cama.
Ela me olhou de um jeito estranho, como se soubesse que estava mentindo. Mães sempre sabem, mas mães professoras parecem ter um sexto sentido bem mais amplo que outras mulheres.
Era mesmo um pouco difícil passar a perna nela, só que, como uma boa adolescente, já tinha PhD em enrolá-la, e as aulas de teatro haviam me ajudado a ser uma ótima atriz quando precisava. Não dar muito detalhe, ir direto ao ponto. Não olhar diretamente nos olhos, não ser muito invasiva nem extrovertida demais.
— Hmmm. Tá com fome? Vou fazer panquecas.
Ou ela estava fingindo ou estava realmente fora de si, com algum problema maior no que pensar, pois não deu nem uma piscadinha. Bem, ela realmente tinha problemas maiores para cuidar.
Abri um sorriso de satisfação e respondi.
— Claro. Já vou.
Assim que ouvi seus passos na escada, se afastando, peguei meu celular na bolsa e procurei nos contatos o número de minha melhor amiga.
Não havia mais ninguém na face da terra com quem eu gostaria de dividir os últimos acontecimentos. Não importava que fizesse apenas alguns minutos que estávamos juntas. Ninguém era tão próxima a mim quanto minha amiga Dêssa.
Ninguém conseguiria transpor a barreira da nossa amizade que começara aos quatro anos de idade, no primeiro dia de aula na Educação Infantil do mesmo colégio em que ainda estudávamos. Não que me lembrasse exatamente como tinha acontecido. Minha impressão era de que simplesmente começáramos a brincar e de repente já éramos melhores amigas. Eu sempre estivera lá pra ela, e ela sempre estivera lá pra mim e era isso.
Não que a gente não brigasse. . .
É claro que a gente brigava. E muito. As duas eram teimosas até o último fio de cabelo e não havia nada mais divertido do que bater boca com Andressa. Ela sempre tinha um contra-argumento para todo argumento que eu dava, o que me fazia sempre tentar ser ainda mais criativa e às vezes as discussões levavam dias. No fim das contas, era sempre a mesma história: eu começava a ficar sem ideias e terminava por inventar alguma coisa muito sem sentido, mas que também acabava sendo muito engraçada, então ríamos e era isso. Aí era esperar até a próxima briga.
Apenas uma vez pensei que nossa amizade teria acabado, pois ela passou um mês sem me dirigir nenhuma palavra, mesmo eu tentando de todas as formas fazê-la rir. Tudo porque, na minha ingenuidade, acreditei seriamente que ela fosse apaixonada por meu primo e que não quisesse admitir. Então fiz a burrada de desafiar Andressa a beijá-lo em jogo de Verdade ou Consequência. O problema é que ela realmente não ia com a cara dele e acabou ficando furiosa comigo. No fim, a raiva passou e ela voltou a ser minha melhor amiga. Então prometi a mim mesma nunca fazer ela se irritar comigo daquela forma outra vez, por isso não tentei mais juntá-la com ninguém.
Logo, ansiosa para falar com alguém sobre aquela confusão maluca em que havia me metido, escrevi rápido e mandei a mensagem perguntando se estava online. Minha amiga respondeu quase de imediato.
Não perdi tempo e cliquei no botão de ligação. Esperei que atendesse, já começando a roer a unha do indicador, nervosa sobre como começar.
— Caramba, o que houve que até precisa me ligar?
Andressa era do tipo que preferia mandar áudios de cinco minutos a fazer uma chamada de verdade, o que me deixava realmente irritada. Por que as pessoas tinham cada vez mais preguiça em escrever? Ou por que não ligavam de uma vez e pronto?
— Aconteceu algo muuuuito maluco comigo agora mesmo. – falei, tentando soar enigmática, mas na verdade meio constrangida.
— Maluco e você na mesma história parece ser algo bem comum. – ela riu. – Mas precisava ligar?
— Não dava pra contar por mensagem. É uma história meio longa.
— Como assim longa? – a ouvi gritando do outro lado da linha. – Faz meia hora que te deixei no shopping! O que você conseguiu fazer nesses últimos trinta minutos sozinha?
Fechei a porta enquanto falava e me aproximei da janela com a persiana fechada, me encostando em duas caixas de papelão. Não queria que minha mãe escutasse e pensasse que estava virando uma arruaceira descompensada e me desse um de seus sermões de horas. Nem que ela ficasse me comparando com minha irmã mais velha, que era sempre a filha mais responsável, enquanto eu era a doida insensata que nunca pensava no que estava fazendo e vivia mentindo. Não deixava de ser verdade.
Em compensação, era eu quem estava sempre lá com eles, não ela. Mas isso eles pareciam nem lembrar.
— Eu estava voltando do shopping e... – contei, tentando me lembrar de cada detalhe do que havia acontecido desde o início, evitando certos detalhes mais íntimos que não diziam respeito a ninguém mais além de mim.
Ela só respondia com gritinhos, suspiros ou não!, sério?, mentira!!.
— ... aí voltei para casa e estou falando com você.
— Que viagem!!! Quem é que fica com um desconhecido na rua assim? Você estava bêbada?
Ignorei as perguntas e assenti, concordando com o fato de que a aventura tinha mesmo sido uma viagem:
— Sim, eu sei!
— Me conta como ele era! Loiro, moreno, bonito?
Eu ri, sabendo que nem em um milhão de tentativas eu conseguiria descrevê-lo da melhor forma.
— A beleza depende dos olhos de quem vê. – respondi.
— Aham... isso significa que ele não era bonito. Já entendi.
Cética. Era difícil discutir com alguém assim, mas eu até que me esforçava.
— Tô apenas argumentando: nós temos gostos diferentes, beeem diferentes. – salientei, lembrando suas últimas e estranhas conquistas. – Embora em outras circunstâncias eu pudesse não ter a mesma opinião sobre ele, se pensar que me salvou de ser assaltada e tudo o mais...
— Descreva a pessoa, Carolina! – exigiu, me deixando nervosa.
Cheguei a estremecer só de lembrar do cara. Aqueles olhos, aquela boca...
— Bem, para começar, ele era alto. Muito alto. – lembrei, tentando soar menos empolgada do que realmente estava, porém sentindo meu corpo inteiro estremecer. – Alto, tipo quase 1,90m alto. Acho!
— Caramba! O coitado deve estar com dor nas costas agora por sua causa.
— Dêssa! – sentei da cama, rindo.
— Verdade, você mede o quê? 1,50?
— Que absurdo! – reclamei. – Não sou anã, nem perto disso.
Tenho 1,62m, o que é considerado estatura média, mas como Andressa tem 1,75m, ela acha que todo mundo é muito baixo. Ela inclusive vivia chamando meu primo de Anão, sendo que ele a tinha passado em altura havia mais de dois anos. Será que ela não sabia que a altura normal no país não era a dela? Não era comum se parecer com a Barbie por aqui. Além do que, ficava bem mais difícil encontrar um cara que fosse mais alto que ela, então eu estava no lucro.
— Tá bom. E o que mais? Cabelos? Olhos?
— Na verdade... – comecei timidamente. – ele tem cabelo comprido... tipo, nos ombros, acho, mas estava preso.
— Ahh! – falou, com um tom de quem não gostou nada da descrição. – Fico aqui imaginando alguém muito hardcore. Ou Emo. Não! Emo usa cabelo solto.
— Nem existem mais Emos, Andressa! – retruquei. – E falei que tudo depende. Também não gostava muito da ideia, mas, sério, meio que mudei de ideia depois de conhecer esse cara. Moreno, alto...
— Bonito e sensual. – me interrompeu, rindo debochadamente. – Tá bom.
— Bem, fazer o quê. Minha opinião. – tentei me defender, ainda que soubesse que não adiantaria nada, pois apenas quando o visse ela poderia ter sua própria opinião formada.
— Sério que você não estava olhando tipo um filme da Disney e dormiu não, amiga? Porque o que parece é que você tá descrevendo um príncipe encantado. Ele estava usando armadura? Tinha coroa? – comecei a rir com a ideia. – Certo que você confundiu a bicicleta com um cavalo, não?
Queria negar e dizer que não havia imaginado isso, mas ela me conhecia demais para saber que estaria mentindo. Afinal, Dêssa que era apaixonada por contos de fadas e histórias de amor. Por outro lado, também sabia que isso não passava de ficção e que na vida real eu não tinha nenhuma expectativa de encontrar um príncipe vagando por aí. Ainda mais um digno de ser chamado de encantado. Era só uma garota de dezesseis anos e até eu sabia que nenhum homem podia ser considerado encantado.
Nem meu pai era! Especialmente meu pai!
Inclusive, se parássemos para pensar bem nas características dos príncipes de contos de fadas, dava para concluir que eram, muitas vezes, machistas e controladores. Nada em que uma garota com bastante conhecimento fosse cair. Quer dizer, o príncipe da Cinderela não se contentou em ficar sem ela e foi procurar em todo o reino quem coubesse no tal sapatinho de cristal, criando uma espécie de reality show para encontrar sua futura esposa. Como isso poderia ser considerado cavalheiresco?
E os príncipes da Bela Adormecida e da Branca de Neve, que as beijaram sem consentimento? Isso não era considerado assédio? Fala sério! Até a pobre da Rapunzel teve que sofrer com seus cabelos para puxar seu bendito príncipe até a torre em que estava presa só para que ele fizesse o que tivesse vontade com ela, que nem tinha para onde fugir.
Não era a toa que quem escrevera as histórias eram homens. Por isso preferia romances escritos por mulheres, especialmente mulheres atuais, que criavam protagonistas intensas, batalhadoras, que corriam atrás do que queriam e enfrentavam a sociedade do jeito que fosse, sabe, como a Katniss, de Jogos Vorazes ou mesmo a Daenerys, de Guerra dos Tronos.
Aliás, até a Disney percebera isso e resolvera criar novas histórias em que as princesas eram tão fortes que nem precisavam de príncipes, como a Elsa, de Frozen, ou a Merida, de Valente.
— Ai, Dêssa... – eu não conseguia parar de rir, como sempre. – Talvez você tenha razão e eu tenha imaginado. Será que ele é bem diferente do que me lembro?
— Pode até ser que ele não fosse o salvador, mas sim o bandido. Certeza que não tá com, tipo, Síndrome de Estocolmo?
Deitei para trás na cama rindo descontroladamente, embora no fundo começasse a pensar nessas possibilidades.
— Será que ele era super alto, magrelo e desengonçado? – sugeri, entrando na brincadeira.
Pelo que me lembrava, não era mesmo!
— O mais importante você não me disse. – ela falou de repente. – Fala aí o nome do cara pra gente procurar na internet e ver se você tá louca ou não.
Imediatamente parei de rir. E de respirar, sentindo meu coração pulsando no peito. Pisquei várias vezes para o teto, tentando buscar na memória em cada detalhe, cada frase dita. Contudo, seu bendito nome não estava em nenhuma parte.
— Cá, você tá aí? – Dêssa perguntou, preocupada, depois de algum tempo.
Engoli em seco, sem saber o que dizer. Parecia que o meu dia tinha tudo para terminar da pior forma possível.
— Você não sabe o nome, não é mesmo?
— Não. – falei, negando com a cabeça, ainda que ela não pudesse ver.
— QUEM É QUE BEIJA UM DESCONHECIDO NA RUA E SEQUER PERGUNTA O NOME! – ela gritou no outro lado da linha, me fazendo afastar o celular do ouvido.
Comecei a rir. Dessa vez de nervosismo.
— Você ficou com um completo estranho e nem estava bêbada?! – Andressa me repreendeu. – Até onde sabemos, ele pode ser um psicopata ou coisa pior! Você parece que é maluca!
— Nem peguei o número dele! – choraminguei, agora me dando conta do tamanho de minha estupidez. – Fiquei burra.
— Talvez tenha sido hipnotizada ou algo do gênero. Ou drogada. – insinuou.
Eu estava mesmo hipnotizada. Por sua beleza. Porém não achei que a coisa tinha ido assim tão longe!
— Não posso nem procurar por ele.
— Mas ele pode te procurar, não? Ele sabe onde você mora, pelo menos. – ela tentou me tranquilizar.
Foi então que senti meu coração apertar ainda mais e o sangue se esvair do corpo.
Olhei para as caixas empilhadas ao meu lado, depois para o roupeiro semidesmontado, as duas malas enormes de roupas paradas embaixo da janela. A sala vazia e com móveis amontoados por onde eu havia passado minutos antes, ao entrar em casa. A bagunça de caixas pelo corredor.
Não, talvez ele não possa, pensei.
⭐⭐⭐⭐⭐⭐⭐⭐⭐⭐⭐⭐⭐⭐⭐
E agora? O que será que vai acontecer? Como Carolina vai encontrar com o desconhecido outra vez?
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