Capítulo 2
Ajeitei minha bolsa nos ombros e comecei a andar quando ouvi o desconhecido dizer:
— Melhor levar você, se não se importa.
Ainda estava um pouco trêmula com os acontecimentos. Mesmo assim meu lado debochado não conseguia ir embora e precisava urgentemente fazer alguma piadinha para liberar o estresse do acontecimento.
— De bicicleta? – perguntei.
— Bem... – ele sorriu, sem mostrar os dentes. – não tenho carro.
Fiz um barulho estranho, não de desdém, mais como um soluço. Não conseguia evitar ser daquele jeito, tão boba, especialmente quando as pessoas caíam em minhas piadas.
— Acho que quis dizer acompanhar você. – acrescentou.
Pensei um pouco e concluí que talvez fosse mesmo melhor ter uma companhia até em casa, só para não ficar imaginando coisas pelo caminho, como mais assaltantes ou algo pior. Além disso, senti uma leve necessidade de estar com o desconhecido por mais alguns instantes, afinal, como agradecer de verdade pelo que havia feito?
— Tudo bem, então. – respondi e andei até o portão.
O desconhecido levantou a bicicleta do meio do capim e, segurando-a pelo guidão, me seguiu até a calçada, antes verificando se por acaso os garotos não haviam voltado. A rua continuava deserta e silenciosa, exceto pelo barulho dos carros ao longe. Parecia que ninguém vivia por ali, o que eu sabia não ser o caso, já que havia diversos prédios e casas.
Andamos em completo silêncio, meio constrangidos, por uma quadra e meia, escutando apenas nossa respiração pesada, até falarmos ao mesmo tempo:
— Você não precisava me acompanhar...
— Eu devia pedir desculpas pelo bei...
Percebendo onde o rapaz queria chegar, desisti de minha frase e o cortei antes que ficasse ainda mais embaraçoso para nós dois:
— Não precisa!
Eu sequer conseguia olhar para ele depois de ele ter lembrado justamente dessa parte de nossa recém aventura. Com tantas coisas para pensar, ele foi se justificar por algo que nem sequer tinha sido um beijo de verdade?
— Eu só quis...
— Eu sei... – respondi sem ter muita certeza se sabia.
Ele diminuiu o passo por um momento, virando-se para mim:
— Por acaso a gente se conhece?
— Também tive essa impressão, mas não consigo me lembrar de onde. – eu disse, o encarando por alguns segundos para ter certeza.
Se a gente realmente se conhecesse, eu lembraria. Era difícil que não lembrasse. Minha memória era impressionante quando o assunto eram rostos.
— Você faz faculdade?
Eu ri, achando que estava brincando. O cara não tinha acabado de me chamar de menina? Só podia estar tentando se redimir.
— O que foi? – ele perguntou, com um sorrisinho de canto.
— Só tenho dezesseis... – declarei. – Quase dezessete.
Ele franziu a testa, como se não acreditasse e parou por um instante antes de atravessar a rua.
— Sério? – falou, admirado, com um sorrisinho de canto, sem me olhar. – Beijei uma garota sete anos mais nova?
Tudo estava indo muito bem até ele dizer aquilo, como se realmente tivéssemos nos pegado em alguma festa. Por que é que ele estava tão apegado àquela parte dos acontecimentos?
Eu não estava nem um pouco interessada naquele assunto.
— Você não me beijou! – proferi, soando mais alto e irritada do que na verdade estava. – E não sou tão mais nova como você faz parecer. Já vou fazer dezessete.
— Ooooh, não quis ofender! – ele se defendeu com as mãos para frente, mas sorrindo de uma forma bastante descarada. – Só fiquei surpreso. Você parece mais velha do que uma estudante de Ensino Médio.
— Não quero parecer mais velha. – menti, sem olhá-lo, voltando a caminhar no mesmo ritmo de antes para atravessar a rua.
Sempre queria parecer mais velha, como toda adolescente da minha idade. Mas naquele momento não estava com roupas de festa e um quilo de maquiagem, então não fazia muito sentido. Ou talvez fosse o fato de meus longos cabelos estarem presos em uma trança lateral. Ou ele estivesse apenas tentando me enrolar.
— E não importa nada disso porque... – tentei dizer. –não é como se você... tivesse... sabe... ficado comigo. Não posso nem dizer que me assediou ou algo assim. Você só me... calou?... não chamaria aquilo de beijo.
Ele riu, parecendo estar se divertindo com a minha reação. Eu provavelmente preferia o cara mais sério e preocupado de minutos antes não esse que ficava se divertindo as minhas custas.
— E acho que já posso ir sozinha daqui. – acrescentei com um sorrisinho falso nos lábios. – São só mais umas quadras. Tchau. E obrigada.
Comecei a caminhar mais rápido, sem olhar para trás, envergonhada demais para conseguir encará-lo por mais algum tempo.
Ouvi um barulho de sirene bem distante, então me virei para ver. Ou talvez isso tenha sido apenas um pretexto para olhá-lo mais uma vez. Para minha surpresa, o desconhecido acompanhava meus passos.
— Vou junto mesmo assim. – esclareceu.
— Não preciso de um guarda-costas. – afirmei, sem parar.
— Eu insisto.
E o cara era bastante teimoso também!
— Não sou tão indefesa. Consigo me virar. – segurei mais forte na alça da bolsa.
— Acredito. – ele garantiu, ainda assim continuou me seguindo.
Apertei ainda mais meu passo, esperando que o desconhecido entendesse isso como um fim para nosso encontro inesperado.
— Eu sei correr se precisar. – anunciei, e ele fez um barulho estranho, provavelmente segurando uma gargalhada. – e gritar!
— Sei que sim. – havia um tom de ironia em sua voz.
Eu estava começando a ficar furiosa com aquela conversa e nem percebi que a raiva vinha não do fato de ele estar me perseguindo ou porque havia me "beijado", mas porque eu sentia que aquela relação estava prestes a ir para um nível bem diferente. Eu estava ficando muito mais do que interessada no desconhecido e não queria que ele percebesse e usasse isso contra mim.
Como não estar? Ele me salvara e ainda era extremamente bonito, do tipo fatalmente lindo e em que eu não conseguiria parar de pensar depois. Me censurei mais uma vez por pensar nisso e desejei que nunca tivesse passado por aquele caminho. Não precisava de ninguém para me proteger. Sobretudo assim tão atraente.
Não queria ficar olhando, mas ele era moreno, de olhos bem escuros, com uma leve barba por fazer que não consegui deixar de admirar depois que passamos pelas luzes da rua, meio de canto, para que não notasse que o estava admirando. E mesmo com toda a roupa dava para perceber que tinha ombros largos. E ainda havia o fato de ser alto. E eu adorava caras altos.
Apressei ainda mais meus passos, agora quase correndo. O desconhecido então parou de me seguir, provavelmente porque havia ficado difícil correr segurando uma bicicleta. Seria mais fácil subir e pedalar ao meu lado.
Não se ouvia mais nenhum ruído na rua, nem de carros nem de pessoas. Provavelmente ele estava apenas esperando que entrasse em casa sã e salva, porém não havia como saber onde eu vivia.
De repente ouvi o cantar de pneus na calçada. No entanto eles não estavam na direção correta: estavam vindo em minha direção.
Parei, petrificada, sem saber o que estava acontecendo. Eu seria atropelada ou o quê?
Meu coração começou a palpitar forte no peito. Então a bicicleta passou voando ao meu lado e, em uma manobra em curva, parou bem na minha frente.
— Eu não... sou um agressor... um stalker... ou coisa... do tipo... Mas não posso... deixar você ir embora assim. – ele falou ofegante, me deixando nervosa. – Não depois de tudo... isso. Então... peço desculpas...
— Você já pediu e já aceitei. – respondi alto, cortando seu pensamento antes que falasse mais uma besteira para me deixar com vergonha.
Virei para continuar meu caminho, mas fui impedida quando ele pousou uma mão no meu cotovelo.
— Não tô pedindo pelo que já passou. – declarou, sua voz mais suave e grave. – Tô pedindo pelo que ainda vou fazer.
Antes mesmo que sua frase terminasse, seu tronco começou a se inclinar em minha direção, lentamente, como se pedisse minha permissão pelo que estava prestes a fazer. Ele queria me beijar, embora dessa vez quisesse o meu consentimento.
Aquele cara era muito estranho e eu definitivamente não sabia nada sobre sua vida. Embora realmente estivesse curiosa para o que quer que ele tivesse em mente, decidi não me mover, para ver até onde chegaria sua coragem. Ou loucura!
Esperei por longos segundos, prendendo o ar, até que seus lábios encontraram os meus, delicadamente, permanecendo assim por não mais de cinco segundos. Notando que eu não retribuía, o desconhecido então se afastou, fazendo uma expressão que parecia de desapontamento.
Só isso?, pensei. Imaginei que, depois de tudo o que aconteceu nos minutos anteriores, ele fosse um pouco mais maluco. Mas, bem, ele estava tentando beijar uma garota desconhecida quase sete anos mais nova, em uma rua deserta, depois de salvá-la de um assalto. Mais loucura que isso, só duas vezes isso!
O desconhecido parecia ter ficado com medo da minha reação, certamente. O que poderia esperar se há poucos segundos estava fugindo dele?
Por mais estranho que fosse parecer, eu estava completamente mexida com toda aquela situação. Sim, no fundo me divertia implicar com os garotos. E me divertia passar por aventuras inesperadas. Gostava de perigo. Logo, tudo que mais queria era que alguma coisa de verdade acontecesse. E essa coisa certamente incluía um beijo daquele cara tão bonito. Sobretudo se fosse um de verdade, sabe, de língua.
Então dei um passo adiante e entrei no espaço entre seu corpo e o guidão, enquanto ele me observava surpreso. Nossos rostos estavam muito próximos, ainda que ele fosse muito mais alto. Não me movi, apenas ergui a cabeça e entreabri meus lábios esperando por sua reação. Dava para ver o ar condensado saindo de minha respiração pesada.
Ele sorriu diabolicamente. Sua mão direita largou meu braço e subiu para minha nuca e pescoço, no mesmo momento em que seus lábios tocavam os meus, sua língua agitada a procura da minha. Minhas mãos instintivamente subiram por seus braços. Sua outra mão percorreu minha coluna, parando na altura da lombar, me puxando para mais perto. Senti a bicicleta deslizando suavemente pela perna, roçando no jeans, até encostar no chão e ali ficar.
Seus dedos se enroscaram em meus cabelos e escutei um gemido baixo de satisfação. O meu gemido de satisfação. Ele entendeu isso como um convite para apertar seu corpo ainda mais contra o meu, então segurei seu casaco com as duas mãos na extensão do zíper, me equilibrando na ponta dos pés.
Ser uma garota adolescente de dezesseis anos não me impedia de ter receios, embora preferisse correr riscos mais do que pensar nas consequências. Estávamos no meio da calçada, em uma rua deserta. Eu estava sendo beijada por um completo estranho que havia conhecido há poucos minutos. E ele ainda era bem mais velho. Eu nunca havia ficado com caras assim tão mais velhos.
Contudo, estava sendo muito difícil convencer meu cérebro de que deveria me afastar. O desconhecido era bastante persuasivo. Sabia exatamente o que fazer para me enlouquecer e me tirar o chão.
Muito tempo se passou até escutarmos ao longe o barulho de um carro vindo em nossa direção. Fiquei tensa e me afastei, empurrando-o.
— Pode ser um conhecido. – respondi, sentindo o rosto queimar.
Limpei a boca com o dorso da mão, tentando me esconder. Dessa vez ele conseguiria ver meu vermelhão, pois estávamos quase embaixo do poste de luz. Ele, entretanto, apenas me olhava com uma expressão enigmática, com um sorriso bobo nos lábios. Isso me deixou ainda mais envergonhada.
Acompanhamos o carro dobrar a esquina e seguir sem passar por onde estávamos. Quando me virei novamente, o desconhecido estava bem na minha frente outra vez.
O que eu estava fazendo ali no escuro, em uma rua deserta, beijando um completo estranho que por acaso havia me protegido de ser assaltada? Isso era loucura. Até para mim!
Recobrando aos poucos a consciência, anunciei:
— Eu já vou pra casa. Tá tarde.
Mal dei um asso para fora daquele círculo quando senti seus dedos em meu pulso, impedindo minha fuga.
— Já?! – perguntou, ainda sorrindo, com a voz rouca.
Era difícil resistir àquela sedução. Contudo, não poderia me deixar levar por aqueles olhos quase negros e aquela boca avermelhada; eu não era assim. Ou era?
— Sim! – sorri, desajeitadamente, tentando raciocinar e quase não conseguindo. – Alguém... er... deve estar preocupado que ainda não cheguei em casa. N-não avisei que demoraria.
O sujeito chegou mais perto, ainda segurando meu braço, seu corpo colado ao meu. Minha cabeça chegava no máximo até seus ombros e precisei erguer bem o pescoço para olhar em seus olhos. Ele abaixou a cabeça e me deu um beijo leve nos lábios, que não recusei. Parecia não haver escutado o que eu dissera. Ou resolvera ignorar.
Pisquei várias vezes, confusa. Nem conseguia me mover, hipnotizada por aqueles olhos escuros, o estômago cada vez mais embrulhado, de uma maneira pra lá de esquisita.
Ele me beijou mais uma vez, seu braço envolvendo minha cintura e me puxando até eu ficar na ponta dos pés. Com a testa colada da minha, sem se separar, disse o que eu certamente não esperava escutar:
— Acho que vou acabar me apaixonando por você.
Pisquei, fazendo uma careta, incrédula, me distanciando e empurrando-o de leve, mas deixando as mãos em seu peito. Foi impossível segurar o sorriso abobalhado ao responder:
— Você nem me conhece!
— Ótimo motivo para conhecer. – retrucou.
— Eu não te conheço! – falei com a voz esganiçada.
— Mas deveria. – ele interpôs.
— Você é completamente louco! – falei, rindo, enquanto me afastava.
— Não sou louco. Eu estou louco... – ele admitiu, se aproximando novamente. – por você.
E me beijou, dessa vez com mais intensidade e minhas pernas ficaram tão moles quanto gelatina. Aquilo era real? Não parecia com nada que eu já tivesse escutado.
— Não sei nem o que dizer... – sussurrei entre beijos.
— Não precisa dizer nada.
Dei um passo para trás e desta vez ele não se moveu, ainda que suas mãos estivessem em mim.
— Melhor eu ir. – era a quarta vez que dizia isso.
Já estava perdendo o sentido.
Girei nos calcanhares e quase corri até o portão da minha casa, sentindo seus olhos me acompanharem. Dessa vez o desconhecido não foi atrás.
Busquei a chave na bolsa e abri apressada, entrando em casa sem me virar. Se o encarasse outra vez, talvez quisesse voltar para seus braços. Então ouvi o barulho dos pneus na rua, se afastando.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top