Capitulo 3
Pov Alice
Não consegui me concentrar nas aulas, não é como se eu me concentrasse antes, mas hoje eu só conseguia pensar no trato que eu fizera apenas algumas horas atrás e em como ele ia me favorecer, os prós eram maiores que os contras, que no caso seriam ter que estudar e principalmente com aquela garota, Marina. Cujo discursinho moral já entregou a personalidade irritante e altruísta dela, de personagem principal de filme ruim.
Quando o sinal bateu, me apressei pelos corredores daquela imensa escola procurando por ela, tinha esquecido de pegar seu número ou de perguntar em qual turma ela estava, e depois de quase vinte minutos perambulando pelos corredores que ficavam cada vez mais vazios eu finalmente cedi, minha turma sempre eram umas das últimas a ser liberada, ela já deveria estar é longe, falaria com ela amanhã, hoje ainda era segunda feira. Dei meia volta e comecei a caminhar em direção a saída, até meus olhos baterem com as grandes letras que anunciavam a área da secretaria, era aqui que eles guardavam as informações dos alunos, uma lâmpada se acendeu em minha cabeça e caminhei em passos largos até umas das funcionárias, que digitava como o flash no teclado do computador, e quando notou minha presença levantou seus olhos mortos como peixe em minha direção, com uma antipatia gritante em seu rosto. Não me deixei abalar, pois por mais detestável que eu fosse, eu poderia sempre atuar melhor que uma atriz.
- Boa tarde. Me desculpe incomodar, mas eu gostaria de verificar os dados da aluna Marina Garcia. – Digo com olhos sorridentes e meu melhor tom de voz, é claro que ela não daria seus dados com tanta facilidade, mas eu sempre tinha uma carta na manga.
- Desculpe, Mas não damos dados de alunos para desconhecidos, nenhuma instituição faz isso.
- Ela me mandou aqui! – Exclamei mais alto que o normal, e a atendente me olhou surpresa, eu tinha pegado sua atenção de verdade agora – Eu sou uma amiga muito próxima da Marina, e ela me pediu para eu vir aqui pegar seus dados para que ela possa terminar sua inscrição em uma competição de... de Soletração! É uma competição super avançada onde o prêmio de primeiro lugar é de cinco mil reais! A Marina é muito boa e acreditamos que ela pode ganhar esse prêmio.
Soletração? Isso ainda existe? A atendente ainda me olhava nada convencida.
- Se é assim porque ela mesmo não veio?
Baixei os olhos, apertei as mãos em cima do balcão, e suspirei como se me lamentasse.
- Acontece que Marina é bolsista e sua situação financeira é sinceramente... triste de se ver. Ela corre da escola a um dos seus trabalhos de meio período, dessa vez de noite, que mal podem ajudar as contas de casa, imagina pagar a cirurgia do seu irmão caçula...
- Cirurgia? – Seu corpo se inclinou para ouvir melhor, e sua expressão morta dera lugar a uma de intriga que era satisfatória de se ver.
- Sim.... Seu irmão de apenas nove anos precisa passar por uma cirurgia muito importante e muito cara, que ela claramente não tem condições de pagar, por isso ela precisa do dinheiro do concurso, por isso ela precisa ao menos tentar...
Olhei fundo em seus olhos, tentando transmitir minha mentira bonita na expressão mais sutil e verdadeira de suplica e tristeza, enrijecendo todos os músculos do meu corpo e rosto como se esperasse por uma resposta decisiva com o medo e esperança que exigiria. Mentida tão bem que parecia real até pra mim, por isso quando a atendente suspirou vencida e começou a escrever umas coisas no teclado, eu respirei aliviada.
- Eu vou te fazer essa exceção, mas não conte a ninguém viu! – Ouvi o barulho da impressora não muito longe e ela logo se levantou para pegar o papel que acabara de sair de uma das impressoras – Apenas porque é uma situação de vida e morte de uma criança.
Ela passou o papel cuidadosamente para minha mão, que ainda estava quente em minha mão, e finalmente mostrou um sorriso puro e gentil quando desejou boa sorte para Marina e melhoras para o seu suposto irmão com uma fé quase que religiosa.
Abaixei a cabeça e sorri agradecida demostrando profunda gratidão, e já de costas eu sorri ainda mais abertamente, maliciosamente e orgulhosamente, pela minha suja vitória, mentira e habilidade de atuar.
{...}
Pov Marina
Me preparei para responder as típicas perguntas que pais fazem depois do primeiro dia de aula, e mesmo que o meu tinha sido... ruim? Não, eu estava agradecida. Aquelas pessoas esnobes não me importam, o ensino era perfeito e eu nunca me senti tão sortuda, mas o que realmente estava na minha mente era obvio, Alice. Esse era o nome dela e combinava bem com ela, com a aparência ao menos, ninguém nunca me pareceu como uma princesa como ela, a personalidade o contrário, feia, horrível e percebível em pouco minutos. Mas isso não importava, tínhamos feito um trato benéfico para as duas, então isso não poderia ter sido ruim. Não importa, eu mentiria dizendo que meu dia fora normal, eu sempre mentia.
Mal pisei em casa e suas vozes chegaram a mim antes mesmo de seus corpos, fui recebida com vozes altas e empolgadas e perguntas até meio invasivas, respondi todas de uma maneira convincente e tranquila, mentindo sobre tudo e todos, Nicolas perdeu seu interesse rapidamente e balançou a cabeça levemente antes de se retirar, ninguém nunca via mas as vezes eu esbarrava com esse seu lado mais sério e até meio mórbido, ele fingia que não mas sabia bem da gravidade da sua saúde, da gravidade da situação financeira da nossa família, e mais importante... ele sabia que eu mentia, que eu venho mentindo a tempos, mentindo pra mim mesma e para eles, ele fingia também, fingia tão bem como eu e com o mesmo propósito, um mentiroso reconhece o outro e isso era de família, pensei.
Os convenci fácil e dei a desculpa que estava cansada e ia me deitar, dessa vez eu não menti e mal tive tempo de digerir as informações de tudo o que tinha acontecido hoje antes de acidentalmente cair no sono. Não sei por quanto tempo adormeci, mas fui acordada pelo o toque do meu celular tocando distante em algum lugar do quarto, levantei desorientada e já tinham passado muitos toques quando finalmente consegui achar e atender, sem ao menos checar o número, por isso acordei totalmente quando uma voz conhecida e indesejada chegou aos meus ouvidos.
- Marina.
- Alice?
- Em carne e osso! Quer dizer...
- Como conseguiu meu número?!
- Peguei na secretaria.
- Eles não deveriam dar meu número assim... Eles não deveriam mesmo! Eles não fariam isso.... Você roubou?
- Porque eu roubaria se eu posso comprar? Nem todos têm sua ética de trabalho idiota. Eu não roubei nada, e nem comprei, apenas fique longe da secretaria por agora. Estou indo pra aí, começamos as aulas hoje.
- Espera, mas agora?
- Claro! Você acha que um super-herói espera o dia seguinte para salvar alguém?
- Não, mas...
- Arrume suas coisas e fique na frente de casa, estou entrando no carro, tchau.
...
Ela desligou.
Que garota mais insolente! Ela nem perguntou o que eu achava, e se eu tivesse um compromisso? Quem ela pensa que é? ... claro... eu deveria saber, pessoas como ela não se importam com ninguém, pessoas como ela pensam que são algo, parecem algo, presos numa maldita ilusão que vai embora quando morrem e seu dinheiro não vai junto, e injustamente não lhe sobra tempo suficiente para enxergar e sofrer com a desilusão. Arrumo rapidamente uns materiais para estudarmos e os organizo na bolsa, foi apenas o tempo de trocar de roupa e escovar com uma rapidez doida os dentes até eu ouvir a campainha tocar, ela mora perto assim?
Aviso meus pais que vou a casa de uma amiga da escola antiga sem ter ao menos tempo de me despedir direito, e desço as escadas às cegas que já estava acostumada, mas ao invés de Alice, era um garoto que me esperava na minha porta
Apesar de mais alto o garoto parecia ter a minha idade, seus olhos eram grandes e negros, e apenas consegui notar uma tristeza em seu olhar que parecia escondida na penumbra, mas apesar disso seus lábios esboçavam um leve sorriso nada mais que educado, sinais salpicavam todo o seu rosto em um belo contraste entre o claro e o escuro de seus sinais, olhos e cabelo.
- Boa tarde, eu sou sobrinho do casal daquela casa ali – ele disse apontando para o outro lado da rua – Eles sempre entregam as suas correspondências que acabam parando lá, mas eu estava de saída e acabei vindo dessa vez.
- Você mora com eles? Eu nunca te vi por aqui...
Estendi a mão para pegar os papeis e ele os entregou, se afastando logo em seguida, procurei seu olhar, mas ele apenas fugia, balbuciando por uns instantes antes de responder.
- Eu moro com eles é que eu... eu... não saio muito de casa, é isso.
- Entendi... Bom! Qual é o seu nome? O meu é Marina.
- Meu nome é...
- Julian! – A voz alta e levemente irritante de Alice chamou nossa atenção, eu nem a notado por todo o tempo em que seu carro estacionou em frente a minha casa e ela caminhou até nós brotando do nada ao lado de Julian, que no susto tinha imediatamente se pondo ao meu lado, e ao contrario dela que eu nunca tinha visto estar tão brilhante, o garoto tinha encolhido os ombros e olhando para baixo como um cachorro assustado e confuso desde o momento que ela chegou, me espantei, ela era tão ruim assim? – O que está fazendo aqui? Está sempre trabalhando.... Não sabia que tinha tempo para paquerar!
Olhei bem para ela, que parecia se divertir implicando com o pobre garoto, o olhava com a cabeça inclinada e um sorriso travesso, como uma criança curiosa. Os dois pareciam se conhecer e me perguntei se seu olhar triste era resultado disso, que tipo de coisa ela fazia para se divertir?
- Eu não trabalho o tempo todo... – Ele murmurou constrangido e vermelho como uma pimenta – Eu tenho que ir... Prazer em te conhecer Marina.
Julian não olhou nem pra mim antes de ir embora em passos apressados em direção ao outro rua, observamos aquela figura desengonçada se afastar até sumir de nossa vista por um bom tempo.
{...}
Aquilo era inveja? Ou eu estava simplesmente impressionada? Torci que fosse a última opção, eu não podia sentir inveja desse tipo de gente, elas não eram dignas disso. Varri com meus olhos mais uma vez a grande área florida e verde que parecia pra mim tão linda e colorida quanto o jardim de éden, tão grande quanto a minha casa inteira, talvez eu pudesse apenas sentir inveja desse jardim... As portas de sua casa se abriram e fui puxada para dentro violentamente pelo pulso por Alice, que já estava irritada pela demora em que eu fiquei apreciando seu jardim, e a ideia de invejar apenas o seu jardim se esvaiu completamente quando meus olhos bateram com o interior da sua casa, que começava com uma sala desnecessariamente grande, com decoração moderna e chique, principalmente branco e preta, e foi basicamente assim por todos os cômodos que passamos e quais ela me apresentava apenas apontando com a mão, muitos cômodos em que a maioria não parecia ser usado nunca, em muitos pessoas limpavam o que não estava sujo e pareciam brilhar e perfumar o que já estava assim.
Ela parou de repente na frente de uma porta larga e fechada, praticamente isolada dos outros cômodos da casa, me perguntei porque tinha me levado aqui e fitei seu rosto a fim de ler sua expressão, ela agora não tinha nenhum sinal de divertimento ou rivalidade de enquanto mostrava sua casa com uma gloria quase desesperada, seus olhos se tornaram nebulosos e pareciam distantes.
- Alice...? Alguma coisa errada? – Perguntei.
Sua expressão era neutra, mas seus olhos me olhavam como se eu fosse um pedaço de carne, para logo depois sorrir sujamente e balançar a cabeça com a maior calma desse mundo, como uma sociopata... eu já deveria ter percebido. A porta foi aberta e duas pessoas que deduzi serem os pais dela trabalhavam em meio a papeis espalhados numa mesa de centro, sentados no chão como crianças e aparentando exaustos como adultos, óculos nos olhos e maquiagem estragada, paletó e gravata jogados em algum canto do sofá, como se não dormissem a dias, a olhei espantada, mas ela não pareceu se afetar, eles eram mesmo donos de uma empresa?!
- Mãe, pai? Essa é minha... colega, Marina. Ela vai me dar aulas particulares a partir de hoje.
Seus pais demoraram para notar sua voz, e quando o fizeram levantaram a cabeça em nossa direção totalmente desinteressados e confusos, e nos olharam por apenas um segundo antes de se perder em papeis e telas de novo, e sua mãe se deu o trabalho de responder com um entusiasmo forçado.
- Que ótimo filha! Prazer em conhecer Marina, estudem bastante! – Sua mãe respondeu e cutucou o braço do marido
- Sim, estudem bastante – Já o pai não tirou os olhos do computador.
{...}
Surpreendentemente os dedos de Alice anotavam com destreza e rapidez tudo o que precisava ser anotado da minha explicação. Me perguntei se estava apenas fingindo, afinal era claro que ela não era muito inteligente na escola, me fazia perguntas o tempo todo e eu tive que explicar coisas mais de duas vezes, os exercícios demoraram mais que o normal e saíram mais errados do que certos, mas ela parecia estar se esforçando de verdade e mesmo que por poucas horas eu pude ver nela algo mais que uma excentricidade detestável que ela carregava em cada ato que esboçava. E quando o Sol de fim de tarde começou a refletir no quarto em luz e cores, e o cansaço acumulado pela tarde tomou nossos corpos, aproveitamos panquecas com frutas e melados, sucos e chás de múltiplas escolhas em um lanche da tarde mais gostoso do que eu já tinha comido em meses, tantas pessoas na casa e o silencio parecia como uma cidade na madrugada, fechei os olhos e aproveitei o silencio que aproveitava as noites em claro para ouvir, agora sobre um sol que beijava minha pele como lábios mornos.
Quando abri os olhos um par de olhos de mel me fitavam atentamente, afastei o rosto, constrangida, tinha esquecido que ela existia, tinha esquecido que qualquer coisa existia...
- É tão bom assim? – Ela perguntou a contragosto, largando sua colher de qualquer jeito em cima da panqueca mal terminada.
- Você não percebe? Esse silencio... é apenas esse silencio que é tão bom, um silencio como esse em uma casa tão grande, no meio do dia, você pode gritar, chorar e praguejar quem queira para os ventos, pode rir, gargalhar e cantar aos gritos e ninguém vai te ouvir.... Como seria isso? Eu vi toda essa casa e você se gabou todo o caminho, mas é disso que eu tenho inveja... era pra ser assim?
- .... Não, não era pra ser assim. Esse silencio nessa casa sem fim, onde ninguém pode te ouvir, onde o eco soa distante muito longe para querer o alcançar... é bom?... Então é isso que você pensa...
Apesar do seu tom, ela apenas esboçou um sorriso e balançou a cabeça em desaprovação, ela tentou rir para disfarçar, mas apenas lhe saiu um suspiro frustrado.
- Talvez seus pais...?
- O que tem meus pais? - Ela rebateu rispidamente.
- O que há entre você e seus pais?
- Não é obvio? Uma relação normal entre pais e filhos.
- Não é obvio? Aquilo pode ser tudo menos uma relação normal. Não sei se sempre é assim, mas pais e filhos que mal se olham nos olhos e mal trocam palavras não é uma relação, você disse desse silencio... talvez eles não te escutam? Talvez nunca tenham a escutado? Sim... é por isso que você é assim parece tão feliz e confiante, mas é triste e sozinha como o cão, eu aposto... que você só age assim porque queira ser ouvida?
Depositei minha colher ao lado do meu prato vazio e bem aproveitado das panquecas, e quando levantei meu olhar para falar de novo seu rosto já tinha se tornado incrédulo, ficando assim por longos segundos, como se visse a verdade pela primeira vez, e seus olhos nebulosos e distantes, procurando por palavras e momentos para usar contra mim com lábios trêmulos, logo se perderam e deram lugar a um fogo em seus olhos que me fuzilava e ganhava munição a cada segundo que passava, se materializando enquanto ela catava com a mesma destreza e rapidez que antes escrevia, os meus livros e cadernos os enfiando de qualquer jeito na bolsa e logo depois os jogando violentamente pra mim. Nem tive tempo de reagir e logo fui guiada a porta e empurrões e palavras que eu não conseguia entender a maioria.
- Saia da minha casa!!! Como você pode dizer essas coisas tão calmamente?! Quem você pensa que é? Pensa que me conhece? Pensa que conhece minha família? Você não esteve nessa casa nem por um dia inteiro... eu deveria te deixar aqui pra morrer!
Eu já tinha sido arrastada para o corredor e antes que eu pudesse dizer, ou apenas processar o que tinha acontecido tão rápido, o som das suas palavras que já tinham se tornado incompreensíveis foi interrompida abruptamente pelo estrondoso batido da porta e logo depois um abrupto silencio.
Ela tinha me empurrado de uma forma que minhas costas tinham se chocado fortemente no mármore que dava vista para o primeiro andar da casa. Meu coração saia pela boca e meus olhos marejavam de medo, senti uma vertigem ao olhar pra baixo, como dentro de uma casa podia ser tão alto? Por deus...! Ela me empurrou e eu senti que quase cai de metros do chão, eu senti minhas costas no ar e minhas pernas se levantaram do chão, eu consegui voltar mas... por uns segundos eu quase morri nessa casa.
Eu quase morri nessa maldita casa!
Quando meu susto passou e minhas lágrimas secaram eu continuei ali, sem saber o que fazer. Eu tinha quase morrido e deixaria tudo pra trás, era estranho como minutos depois isso não me impotava muito. Apenas quando passados longos minutos desde o estrondo que pareceu tremer toda a casa e o preocupante silencio depois dos gritos seus, que ela não me pareceu mais tão insana e eu percebi amargamente tudo o que eu havia dito de errado. Passei pelos mesmos cômodos, o mesmo jardim e entrei no carro estacionado a frente da casa, as mesmas pessoas ainda faziam as mesmas tarefas, enquanto passava por toda aquela casa para ir embora eu finalmente tinha a entendido, eu sei que a casa toda ouviu seus gritos e estrondos, mas ninguém tinha ido checar.
A menina que quase me matou ainda me dava medo, mas eu quase esqueci disso, pois a menina estava ficando louca naquela casa silenciosa.
Me lembro que daquele dia em diante eu passei a gostar menos do silencio.
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