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Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos.

Eu me pergunto se, quando Dickens escreveu estas célebres palavras, ele sabia que estava descrevendo com precisão o período de espera entre uma mensagem e outra do crush. Não que o bonitinho da jaqueta fosse meu crush. Meus dias de crushar já estavam bem distantes de mim, isto é, desde que o Fernando partira meu coração. Depois disso, eu me tornara bem mais madura e experiente. E seria muita burrice passar pela experiência novamente.

Mas havia algo ali.

É tão raro encontrar na vida real alguém com um amplo repertório intelectual, capaz de compreender e interpretar suas referências e piadas internas. Ainda mais alguém tão jovem.

— E tão bonito — minha adolescente interior completou e eu revirei meus olhos.

Meu coração já estava bem mais calmo. Eu racionalizara toda minha ansiedade e a embrulhara num pacote mais altruísta e fácil de engolir.

Não se tratava de Selena Gomez ou Emily Dickinson nem nada parecido. Configurava uma excelente estratégia para protegê-la. Por isso, fora uma boa ideia ficar com o celular da Rafa. Eu poderia analisar bem quem era esse garoto, submetê-lo a alguns interrogatórios, ameaçá-lo de morte caso ele machucasse minha pequena e só passá-lo adiante se a coisa fosse dar certo.

Ao menos, eu gostaria que alguém tivesse feito isso por mim. Teria me poupado de muita dor.

Conforme combináramos, eu e minha irmã trocamos de celular por aquela noite. Primeira coisa que fiz ao pegar aquele Samsung velho com capinha de glitter cor-de-rosa, foi tentar colocar um mudo em toda a miríade de grupos aleatórios dos quais ela fazia parte:


Gatinhas do vôlei

As que fazem curling de salto

Quatro amigas gostosas

3 besties mais gostosas

Surpresa de aniversário pra Pri

The Originals <3

Família Oliveira

Otaku

Espíritos irmãos!!1 *___*

FAMÍLIA HORST AHAZA


O único que me fez pausar se chamava:


Harém do Vinícius


Quê?

Não resisti e, assim que acessei o grupo, imediatamente cliquei na parte que mostrava arquivos de mídia trocados entre as meninas.

Bingo. Essas loucas haviam trocado dezenas e dezenas de fotos do bonitão da jaqueta que fala francês e lê Emily Dickinson. De todos os ângulos possíveis. Algumas fotos tremidas e desfocadas, tiradas à pressa e de longe, durante uma aula ou algum intervalo. Outras até mesmo em lugares fora da escola. Outras ainda certamente roubadas das redes sociais do próprio garoto. Será que ele era modelo, além de tudo? Algumas fotografias eram extremamente profissionais e expunham o estado físico do rapaz em todo seu tanquinho e glória. Céus. Essas meninas eram absolutamente malucas, mas pudera. Eu também seria se tivesse a idade delas e fosse exposta tão cedo a alguém desse nível.

Coitados dos outros meninos da escola. Sem chances. Vinícius devia ser como um deus em sua classe.

Levei um susto quando o celular tremeu na minha mão, bem na hora que, com o movimento de dois dedos, eu dera um zoom um tanto impróprio.


Vinícius: Eu tenho uma pergunta extremamente séria e relevante agora.


Já passava das onze da noite. Pisquei algumas vezes, encarando a notificação de mensagem, e tentei apressadamente digitar o código de desbloqueio do celular, mas apertei os números errados umas cinco vezes antes de finalmente conseguir acessar o aplicativo.


Vinícius: Qual é a parada com a internet o tempo todo pedindo para que você "prove que não é um robô"? Você acha que é um sintoma da nossa sociedade pós-factual que duvida das coisas mais elementares?


Se ele era o mais brilhante, eu não sabia, mas no mínimo era o cara mais aleatório do planeta.

Era tão nonsense e repentino que não resisti dar risada. Mas, aí relembrei do meu propósito nisso e, restabelecendo minha expressão facial para algo mais neutro, digitei o que imaginei ser o mais próximo de uma resposta proveniente da minha irmã, mesmo enquanto o aplicativo indicava que ele já estava digitando algo.


Rafaela: Oi?

Vinícius: "Duvide que o mundo é um globo, duvide de que sou humano, mas não duvide do meu amor por você. "

Vinícius: Shakespeare versão nossa geração. :D


Certo. Ele acabara de fazer uma declaração de amor, de forma bem-humorada, em referência à uma frase do meu maior ídolo, paixão e referência.

Uau. As sirenes de perigo voltaram a gritar. Desesperadamente. 


Rafaela: Acho que é só uma proteção contra ataques de hackers ou algo assim.


Isso. Seja obtusa. Declare o óbvio.


Vinícius: Será? Será que não é uma tendência da sociedade a suspeitar de tudo e de todos? A desconfiança entranhada em nossos sistemas.

Rafaela: kkkk, pode ser. Não dá para confiar em todo mundo, né? Ainda mais quando nos relacionamos a maior parte do tempo através de uma telinha e não conseguimos enxergar nem ouvir o outro.

Vinícius: Mas vê como isso não faz sentido. Só porque não se pode ver o rosto de uma pessoa, não quer dizer que não se possa conhecê-la. Aliás, acho que desse modo dá para conhecer a parte mais importante.

Vinícius:  O amor não enxerga com os olhos, mas com a mente.

Vinícius: Isso também é Shakespeare. ;)

Rafaela: Eu sei. *Revira os olhos*

Vinícius: :D

Rafaela: O que eu quero dizer é que... É uma forma bonita de pensar, embora um tanto ingênua. Não funciona na vida real. Tem muita gente má nesse mundo se aproveitando da inocência ou do idealismo dos outros. A internet é um antro de trapaceiros e de fraudes. Todo cuidado é pouco.


Foi só depois que digitei tudo que percebi a ironia do que eu estava dizendo. Afinal, eu mesma não era quem o Vinícius pensava que eu era. E, por algum motivo, isso doía um pouco. Ainda mais se eu soubesse a frase seguinte que ele falaria, eu provavelmente teria maneirado no discurso de mãe.


Vinícius:  "A suspeita sempre persegue a consciência culpada; o ladrão vê em cada sombra um policial."


Precisei de alguns segundos para recuperar meu fôlego e me convencer de que ele não sabia de nada, que ele só estava novamente querendo mostrar o quanto conhecia o meu autor predileto.


Rafaela: :|

Rafaela: Henrique VI.

Rafaela: Shakespeare novamente...

Vinícius: Juro que não ia dizer nada dessa vez.

Vinícius: Mas espero que você tenha notado e esteja apreciando o esforço que estou fazendo para impressioná-la.

Rafaela: Acho que estou ficando é assustada.

Vinícius: Eu sei que é clichê culpar os pais por tudo, mas eu definitivamente culpo meus pais. Eles são jornalistas e escritores e sempre diziam que a melhor coisa para impressionar uma garota era saber recitar boa literatura.

Rafaela: Soa como um bom conselho.

Vinícius: Soa, né? Mas todas as vezes que tentei usar isso até hoje, experimentei o que deve ser a versão humana da tela azul da morte. Sabe como é? O olhar fica fora de foco e vazio e aí você já sabe que a alusão passou por cima do alvo e atingiu uma árvore ou algo assim. São poucas as que entendem ou reconhecem do que se trata. Por isso, perdão se estou soando meio bizarro ou pedante, mas é a euforia de conversar com alguém que entende. Porque, pelo menos nisso, Shakespeare errou feio. Poesia definitivamente não é o alimento do amor. Porque, de verdade, as poucas vezes que usei poesia como cantada foi o mesmo que borrifar repelente na garota...

Rafaela: O cara também não podia acertar sempre, né? Concordo que é alimento para um amor saudável e comprometido, porque tudo nutre o que já é forte. Mas se for só um crush, já era. Um bom soneto dá as últimas marteladas no caixão.

Vinícius: Jane Austen disse isso.

Vinícius: Bem, não com essas palavras.

Rafaela: Viu? A internet tem razão. Você é tão rápido nas referências que pode muito bem ser um robô.

Rafaela: Prove que não é um robô. ;D

Vinícius: Juro solenemente que não sou um robô. Sou apenas intimidado pelo medo de ser mediano.

Rafaela: Shakespeare?

Vinícius: Taylor Swift :D

Vinícius: Passou perto.


Adormeci com o celular da minha irmã comprimido contra o peito e um leve sorriso no rosto.

Eu mal registrava o fato de que iria vê-lo no dia seguinte na escola. E de que ele certamente não saberia quem eu sou. E que, em vez disso, seus olhares e seus esforços se direcionariam a mais uma dessas garotas cuja paixão se enfraqueceria com poesia e citações.

O florescer de algo assim... desse fogo que arde sem se ver... tinha um quê de contraditório e ilusório. Que posso dizer? Era um momento em que tínhamos tudo diante de nós e nada diante de nós. Ao mesmo tempo. As sirenes gritavam e eclodiam em canções simultaneamente.

E, para mim, naquele instante, bastava desfrutar da primavera daquela esperança, aceitando, junto com ela... o inverno do meu desespero.

* * *

continua...

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