7 - Investigação paralela

Vinte e dois anos atrás


A GAROA FRIA se derramava por toda a estrada enquanto o carro subia e serpenteava o caminho irregular até a vinícola.

Animada, Josiane ergueu a cabeça, colando o rosto no vidro.

Aos sete anos, ela já apreciava os vislumbres das montanhas através da chuva, como se a água formasse uma cortina prateada que balançava sobre as intermináveis fileiras de vinhas que cresciam nas terras de Blumenau. Nas terras dos seus tios.

Sua mãe parou o carro perto da entrada da casa; uma construção grande de pedras antigas, que se encaixava muito bem àquela terra.

— Venha, Josi.

Segurando a mão de sua mãe, Josiane andou com ela até a entrada da casa. Tocaram a campainha. Não demorou muito para que sua tia Raquel abrisse a porta, arregalando os olhos ao ver a irmã mais nova ali.

— Preciso conversar com você, Raquel. É urgente.

— Josi! — as vozes de duas meninas, com idades próximas das suas, gritaram seu nome com alegria ao vê-la.

— Sueli! Alice!

Deixando a mãe e a tia para trás, Josiane correu para dentro da casa, indo ao encontro das primas. Por um momento, quase congelou no lugar. Ela estava com as roupas e os cabelos úmidos. Poderia manchar o chão da sala e ser repreendida pela mãe, como sempre acontecia. Mas, daquela vez, sua mãe não disse nada, como se mal se apercebesse de sua presença.

Assim, Josi correu e subiu as escadas com as primas.

— Vocês vão passar a noite aqui? — Alice perguntou, animada.

— Não sei. Mamãe só me colocou no carro e falou que tínhamos que vir para cá o mais rápido possível. Não trouxemos nenhuma mala.

Sueli apontou para sua cama.

— Você pode dormir comigo, Josi.

— Não, ela vai dormir comigo!

A discussão foi interrompida quando as três meninas escutaram o barulho de algo se quebrando.

Olhando uma para a outra, em uma combinação muda e cúmplice, elas desceram as escadas outra vez e se esgueiraram para a cozinha, onde suas mães estavam conversando. Pararam atrás da porta entreaberta. Josi viu um copo quebrado no chão.

— Desculpa, ele escapou da minha mão — sua mãe falou, correndo os dedos pelos cabelos. — Estou tão nervosa.

— Flora...

— Olha, Josi é minha filha, e é por isso mesmo que não quero que ela seja um problema.

Escondida atrás da porta com as primas, Josiane piscou. Aline e Sueli se entreolharam e não disseram nada. A menina franziu os lábios. Por que ela era um problema? Será que era por que não gostava de comer brócolis e beterraba?

Tia Raquel cruzou os braços, encarando a irmã mais nova.

— Você está escutando o que está saindo da sua boca, Flora?

Ainda escondida, Josi viu sua mãe largar um papel em cima da mesa.

— É claro que estou. Não durmo há noites. Por isso, fiz o que fiz. Leia tudo isso atentamente. Um dia, quando a Josi for maior, ela irá entender. E saberá que deverá fazer de tudo para colocar nossa família em primeiro lugar sempre.

Josiane mal percebeu que havia apoiado as mãos no batente.

Lá fora, o vento uivava em uma cadência trêmula com a chuva incessante, ricocheteando o vinhedo. Soprava através das janelas, como se murmurasse baixinho, apenas para Josiane ouvir.

"Sempre".


*****************


Atualmente


Já era quase meia-noite quando Josiane saltou de dentro do táxi e encarou as imediações do hotel onde os dois deputados haviam sido assassinados.

Ignorando as batidas crescentes do coração, ajeitou a alça da mochila no ombro e cruzou a entrada decadente do local.

Ela parou na recepção, onde havia uma mocinha mexendo no celular e mascando chiclete. A garota não a olhou. Josiane limpou a garganta. Entediada, ela levantou os olhos.

— Não posso falar com repórteres. E já está tarde.

— Não sou repórter. — Josiane colocou o distintivo em cima do balcão. Torceu para que a garota não percebesse que o distintivo se referia à polícia do estado de Santa Catarina, e não de Minas Gerais. — Quero dar uma olhada na cena do crime.

— A polícia já levou tudo o que tinha para levar, fotografou tudo o que tinha para fotografar, conversou com todo mundo que tinha para conversar. O quarto está lacrado.

— Mesmo assim, quero entrar.

— Não me falaram que haveria uma inspeção hoje.

— Meus superiores querem uma nova averiguação — Josiane insistiu, usando seu tom mais persuasivo e convincente. — Como não há câmeras de segurança no hotel, e nem nas redondezas, precisamos analisar cada detalhe, para não deixar nada passar.

A garota mascou o chiclete e tamborilou os dedos pelo balcão, pensativa. Josiane decidiu mudar a abordagem.

— Há mais hóspedes aqui? Vocês já voltaram a funcionar?

— Já sim. A polícia liberou hoje à tarde. Mas, depois do que aconteceu, quase todo mundo vazou. O bairro não é dos mais seguros. Um ou outro, que não tinha para onde ir, ficou por aqui. Mas acho que é questão de tempo até partirem.

— E você não tem medo de ficar aqui sozinha? Pelo que vi, não há nenhuma viatura por perto.

— Ninguém se importa com bairros como esse. E é claro que tenho medo. — Ela remexeu os ombros, desconfortável. — Todo mundo tem medo. Mas, se não venho trabalhar, não recebo. E tenho mais medo da fome e da miséria. Tenho filhos para sustentar. Tenho que cuidar da minha família.

"Um dia, quando a Josi for maior, ela irá entender. E saberá que deverá fazer de tudo para colocar nossa família em primeiro lugar sempre".

A fala de sua mãe, tão perdida no tempo, tão marcada em seus ossos, causou um arrepio em Josiane.

— Quanto mais rápido resolvermos essa história, mais rápido as coisas poderão voltar ao normal. E você vai poder cuidar da sua família.

Sua fala pareceu surtir efeito na garota. Ela fez um gesto de cabeça para as escadas e indicou o andar onde o crime acontecera.

Assim, Josiane subiu até o quarto.

Faixas amarelas lacravam a porta de entrada. Passou por debaixo delas, entrando na cena do crime. Os dois corpos já haviam sido retirados no dia anterior e enviados para o IML.

Abriu sua mochila com cuidado, pegando a lanterna e todo o equipamento que precisava. Checou se a arma estava segura no coldre.

Ninguém poderia saber que ela havia ido até ali.

Não fazia parte da equipe responsável pelo caso.

Não tinha autorização para fazer uma investigação paralela.

Mas ficar parada não era uma alternativa.

Vestindo luvas de látex para preservar a cena, e garantindo que seu cabelo ficaria bem preso no coque para que nenhum fio caísse no chão, Josiane tocou única janela, estudando a altura do quarto e da rua. Era impossível que o assassino houvesse entrado por ali.

Checou a maçaneta, a porta; inexistiam sinais de arrombamento. O que significava que os deputados haviam deixado seu algoz entrar.

Será que se conheciam? Será que esperavam mais alguém?

E, afinal, o que tinha levado dois deputados de partidos tão opostos, que se atacavam constantemente nas mídias, a se enfiarem em um hotel de baixo nível como aquele, longe demais do luxo de Brasília?

Josiane continuou andando ao redor do quarto, usando a luz da lanterna para iluminar as marcas no chão, onde cada corpo tinha sido encontrado. Ela não possuía acesso aos laudos da investigação, mas algumas informações captadas na delegacia e na mídia a ajudavam a montar o quadro.

O deputado Josué Cabral fora alvejado no sofá. As marcas de sangue estavam grudadas no tecido.

E Hélio Milani levara um tiro que o derrubara no chão.

Provavelmente, fora ele quem abrira a porta.

Josiane trincou o maxilar, girando lentamente nos calcanhares.

Nada naquele cenário fazia sentido.

E o fato de ter recebido uma inesperada ligação de uma das vítimas, que não tinha sido atendida a tempo...

O pensamento de Josiane foi interrompido.

Pois, no mesmo instante, escutou o som de uma arma sendo engatilhada atrás dela.

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